Tiago Luiz de Moura Albuquerque

<blockquote>— Boa esta! Aqui temos um súdito que existe mas não tem consciência disso e aquele meu paladino que tem consciência de existir mas de fato não existe. Fazem uma bela dupla, é o que lhes digo! ("O cavaleiro inexistente" de Italo Calvino, tradução de Nilson Moulin)</blockquote>
A Fazenda Pública foi inserida na recuperação judicial!
Alterando a ordem natural de qualquer texto, iniciamos pela conclusão que se obtém do exame das mudanças legislativas ocorridas no processo de recuperação judicial relativamente ao tratamento do crédito tributário (Leis n. 11.101/2005 e 10.522/2002, alteradas pela 14.112/2020).
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>No pressuposto de que o crédito tributário pertence ao Estado e, portanto, importa a todos nós, o tratamento que lhe é dispensado é de privilégio: tem preferência legal (CTN, art. 186) e não está sujeito a concurso de credores ou habilitação em recuperação judicial (CTN, art. 187).
Como consequência, já que o crédito tributário não concorre com os demais, a legislação previa que, mesmo com o deferimento do processamento da recuperação judicial, as execuções fiscais não estariam sujeitas a suspensão (Lei n. 11.101/2005, na redação antiga do § 7º, do art. 6º).
Constava na legislação (neste mesmo dispositivo: § 7º, do art. 6º) uma ressalva: de que seria possível a suspensão da execução fiscal na hipótese de parcelamento. Não obstante, a ressalva era absolutamente impertinente porque não havia mecanismos legais de parcelamento fiscal específicos para sociedades em estado de crise, em processo de recuperação judicial.
De outro lado, o pedido de processamento da recuperação judicial implicava determinação de dispensa de apresentação de certidões negativas para que o devedor exercesse suas atividades, mas não se possibilitava a dispensa de certidões para contratação com o Poder Público (Lei n. 11.101/2005, na redação antiga do art. 52, II); e, além disso, após a juntada do plano de recuperação aprovado pela assembleia-geral de credores, a legislação impunha (e continua a impor) ao devedor a apresentação de certidões negativas de débitos tributários para homologação do plano (Lei n. 11.101/2005, art. 57).
Pois bem, o resultado prático desse conjunto de dispositivos é que, mesmo em estado de crise, o empresário simplesmente não saneava sua dívida fiscal. Não havia meios de consolidar o débito tributário dentro de uma reestruturação de dívida no processo, já que o crédito tributário não era habilitado na recuperação judicial, nem havia mecanismos de parcelamento específicos.
A verdade é que o empresário tinha na recuperação judicial o meio para buscar a superação do estado de crise; mas um meio incompleto porque não abrangia a dívida tributária. Ansioso, o empresário aguardava um programa de recuperação fiscal (REFIS). A salvação da empresa devedora dependia de um milagre que se repetia de tempos em tempos: o REFIS. Era por meio desses programas, com as previsões de reduções do débito e de parcelamento, que se buscava equalizar a dívida tributária da devedora, embora fora do contexto do processo de recuperação judicial.
<blockquote class="jota-article__eye">Por assim dizer, neste cenário, a Fazenda Pública não existia, fisicamente, no processo de recuperação judicial. Estava presente e, por vezes, era a causa da situação de crise da empresa. Mas, simplesmente, não estava lá no processo.</blockquote>
A sua invisibilidade ficou cada vez mais ressaltada a partir do momento em que os tribunais passaram a suspender as execuções fiscais com o processamento da recuperação judicial, impedindo os atos de constrição e de expropriação contra os bens da recuperanda (assegurando a função social da empresa)<a href="#_edn1" name="_ednref1">[i]</a>; bem como, quando flexibilizaram a exigência de certidões de regularidade fiscal para homologação do plano de recuperação aprovado<a href="#_edn2" name="_ednref2">[ii]</a>.
Esse quadro era duplamente problemático: não havia verdadeira superação do estado de crise pela recuperanda, na medida em que o débito tributário não era equalizado na recuperação judicial; a Fazenda Pública não tinha meios de influir, participando do saneamento da recuperanda. E, na prática, contrariamente aos desígnios da norma, o crédito tributário era deixado de lado pelo empresário.
Daí vem a mudança de paradigma enfrentando essas dificuldades: embora sem alterar o Código Tributário Nacional, ou seja, sem revisar o privilégio do crédito tributário, a Lei n. 14.112/2020 incluiu a Fazenda Pública na recuperação judicial. Ela passou a existir no processo de recuperação judicial! E o fez da seguinte forma.
Na esteira de alterações importantes ocorridas também em 2020 (como a previsão de transação tributária com a Lei n. 13.988/2020), a Lei n. 14.112/2020, alterando a Lei n. 10.522/2002, criou mecanismos de parcelamento da dívida tributária específicos para empresa em recuperação judicial: (i) parcelamento em até 120 meses para débitos tributários ou não tributários, vencidos ou não, constituídos ou não, inscritos ou não em dívida ativa (Lei n. 10.522/2002, art. 10-A, V); (ii) parcelamento em até 84 meses, sendo possível nessa hipótese a liquidação de até 30% da dívida consolidado com a utilização de prejuízo fiscal e de base negativa de CSLL ou com outros créditos próprios relativos aos tributos administrados pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (Lei n. 10.522/2002, art. 10-A, VI); (iii) parcelamento em até 24 meses de débitos inscritos ou não inscritos em dívida ativa, relativos a tributos passíveis de retenção na fonte, de desconto de terceiros ou de sub-rogação, ou relativos a IOF retido e não recolhido (Lei n. 10.522/2002, art. 10-B). Além dos parcelamentos, sujeita a juízo discricionário da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, dispôs sobre a possibilidade de transação tributária para os débitos inscritos em dívida ativa da União, cujo parcelamento pode chegar a 120 meses e as reduções do débito a 70% (Lei n. 10.522/2002, art. 10-C).
A Lei n. 14.112/2020 também alterou o regime jurídico relativo à suspensão das execuções fiscais. Deferido o processamento da recuperação judicial, não são suspensas as execuções fiscais ajuizadas contra a recuperanda, mas (e este ‘mas’ é importante) atribuiu-se ao juízo da recuperação judicial a competência para determinar “a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial” (Lei n. 11.101/2005, art. 6º, § 7º-B).
Então, a regra geral de não suspensão das execuções fiscais (que estava em xeque conforme precedentes judiciais) foi alterada para que o juízo da recuperação decida sobre os atos de constrição. Ao nosso ver, tal regra terá o efeito prático de neutralizar as execuções fiscais quanto aos seus efeitos de constrição sobre o patrimônio da devedora. Em situações de crise, qual o bem da recuperanda não será tido como essencial à manutenção da atividade empresarial?
De toda forma, e fechando os apontamentos de alterações promovidas pela Lei n. 14.112/2020, tem-se a faculdade estabelecida na legislação (Lei n. 10.522/2002, art. 10-A, § 4º, IV) de a Fazenda Nacional requerer a convolação da recuperação judicial em falência por descumprimento dos parcelamentos e da transação tributária ou na hipótese de esvaziamento patrimonial que implique liquidação substancial da empresa, em prejuízo de credores não sujeitos à recuperação judicial (Lei n. 11.101/2005, art. 73, V e VI).
Não obstante a reforma promovida pela Lei n. 14.112/2020, não houve mudança na obrigatoriedade de apresentação de certidões de regularidade fiscal após a aprovação do plano (Lei n. 11.101/2005, art. 57). Houve alteração apenas na redação do inciso II, do art. 52, da lei n. 11.101/2005, para que, com o processamento do pedido de recuperação, fique dispensada a exigência de certidão de regularidade tributária para participação de licitações e para recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios.
É dessa maneira que a Fazenda Nacional passa a existir na recuperação judicial: com a possibilidade de equalização da dívida tributária por meio de mecanismos de parcelamento e transação tributária; com a possibilidade de se evitar atos de constrição na execução fiscal; com a possibilidade de requerer a convolação da recuperação judicial em falência.
Os limites de significado extraídos das normas introduzidas pela Lei n. 14.112/2020 serão delineados a partir da sua interpretação, considerando os princípios específicos do sistema jurídico próprio do regime de recuperação e falência, bem como dos princípios e das regras constitucionais que com elas interajam na situação posta em juízo. A partir dessas alterações, é provável uma revisão da jurisprudência sobre temas importantes para o correto funcionamento da recuperação judicial e da falência.
Mas há mais: depende também do uso que será dado a esses novos mecanismos pela Fazenda Nacional e pelos devedores. Nesse sentido e exemplificando, a dificuldade na pactuação de transação tributária (ou a limitação de parcelas ou de descontos) pode impedir o seu uso, redundando na impossibilidade de saneamento da dívida tributária. Esse comportamento pode (por exemplo) levar a manutenção da flexibilização (jurisprudencial) da regra que impõe a apresentação da certidão de regularidade fiscal para homologação do plano aprovado.
No fundo, o que se verifica é que a Fazenda Nacional<a href="#_edn3" name="_ednref3">[iii]</a> passa a existir e pode influir (inclusive ser decisiva) positiva ou negativamente para o saneamento do estado de crise de empresa em recuperação judicial.
No livro ‘Cavaleiro Inexistente’ de Italo Calvino há dois personagens que se contrapõem: o cavaleiro Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura e um súdito doidivanas conhecido (também) por Gurdulu. Aquele, não tinha presença física, mas era um modelo de soldado do exército de Carlos Magno: perfeccionista, cumpria com absoluta retidão os afazeres decorrentes da sua condição de paladino, dentro da sua armadura toda branca. Este, embora tivesse presença física, faltava-lhe um parafuso: imitava animais, frutos e plantas. Agilulfo, não existia, mas tinha consciência. Gurdulu, existia, mas não tinha consciência.
Agora que existe e participa da recuperação judicial, resta saber como a Fazenda Pública se comportará no processo, principalmente em relação ao saneamento da dívida tributária.
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[i]</a> Apesar dos precedentes flexibilizando a regra para impedir o prosseguimento da execução fiscal (vide REsp. 1.864.625-SP, rel. NANCY ANDRIGHI, j. 23/06/2020), o STJ afetou a questão sobre a possibilidade da prática de atos constritivos, em face de empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal de dívida tributária e não tributária (Tema 987), determinando a suspensão de todos os processos pendentes que tratem do tema.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[ii]</a> AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. EXIGÊNCIA DE APRESENTAÇÃO DE CERTIDÃO NEGATIVA DE DÉBITO. DESNECESSIDADE. PRECEDENTE. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. Segundo a jurisprudência da Terceira Turma, a apresentação das certidões negativas de débitos tributários não constitui requisito obrigatório para a concessão da recuperação judicial da empresa devedora ante a incompatibilidade da exigência com a relevância da função social da empresa e o princípio que objetiva sua preservação. Precedente. 2. Agravo interno desprovido. (AgInt no REsp 1802034/MG, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 01/03/2021, DJe 03/03/2021)
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[iii]</a> Infelizmente, permanece o déficit legislativo relativo a mecanismos específicos para situação de recuperação judicial de saneamento da dívida tributária contraída com os demais entes (Estados, Municípios e Distrito Federal).

recuperação judicial

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JOTA

Um novo paradigma na participação da Fazenda Pública no saneamento da situação de crise da devedora

O crédito tributário na recuperação judicial

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