Paulo Roberto Andrade

O art. 11<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> da lei nº 9.779/99 assegurou a manutenção do crédito de IPI na aquisição de insumos tributados pelo imposto, e que sejam empregados na industrialização de produtos que, na saída, desfrutem isenção ou alíquota zero<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. As saídas imunes lamentavelmente não mereceram do legislador a mesma menção expressa, e a controvérsia grassou a respeito. Afinal, a norma daquele art. 11 alcançaria também as saídas de produtos imunes ao IPI?
Em novembro de 2009, a 1ª Seção do STJ julgou, sob dinâmica repetitiva, o REsp nº 860.369, e assentou, na oportunidade, que o art. 11 da Lei nº 9.779/99 não tinha efeitos retroativos. Meses antes, o STF já havia decidido (RExt nº 562.980) que a manutenção do crédito nas saídas desoneradas não era uma decorrência inerente ao princípio da não-cumulatividade, mas uma mera opção de política fiscal infralegal.
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Ao recusar a retroatividade do art. 11, o que fez o STJ foi apenas dar concretude a esse entendimento recém consagrado no Supremo: não se tratava de norma meramente pedagógica, interpretativa do princípio constitucional, por isso seus efeitos seriam apenas prospectivos.
O REsp nº 860.369, portanto, versou uma questão pontual de direito intertemporal, sem nenhuma relação com a polêmica mui diversa acerca da extensão do creditamento às saídas imunes. Nada do debate sobre a retroação da norma se pode aproveitar, contrariamente ou a favor, para municiar o debate sobre os regimes desoneradores nas saídas. Os autos daquele repetitivo, aliás, tratavam de saídas sujeitas a alíquota zero, e não de saídas imunes.
O que sucedeu após o julgamento deste leading case é difícil de entender. Quando aportaram processos controvertendo a extensão da norma às saídas imunes, a Corte entendeu que o ponto estava solucionado no REsp nº 860.369. Sem maior aprofundamento, o colegiado passou a decidir que produtos NT (entre os quais se incluem, na taxionomia da TIPI, os produtos imunes) não eram alcançados pela Lei nº 9.779/99, em razão do decidido no REsp nº 860.369. Nesse sentido, os REsps nºs 1.189.846 (junho/10), 1.060.199 (setembro/10) e 1.294.669 (maio/12).
Subitamente, então, uma matéria que não havia sido sequer debatida na Corte ganhou status de assunto dirimido em recurso repetitivo! Em razão disso, a matéria atualmente tem sido julgada monocraticamente (REsp nº 1.127.440, abril/17).
Faça-se uma concessão. Se o art. 11 da Lei nº 9.779/99 não regulamenta ou explicita o princípio da não-cumulatividade – como se decidiu no RExt nº 562.980 –, mas, ao contrário, consiste em mero favor fiscal, então sua interpretação deveria ser literal, a teor do art. 111 do CTN. Com uma generosa dose de boa vontade hermenêutica, pode-se até buscar aí um racional para a jurisprudência que se construiu a partir do REsp nº 860.369 acerca das saídas imunes.
Isso poderia ser, talvez, e no máximo, um ponto de partida para a evolução pretoriana, nunca um postulado para, sem mais especulações dogmáticas, encerrar um debate que em verdade nunca floresceu naquela Corte.
A própria literalidade do art. 11 nunca foi examinada com vagar pelo STJ, e ela é reveladora. O legislador não foi tão descuidado como parece. O texto positivo não restringe, em absoluto, o direito de crédito aos casos de saídas isentas ou tributadas a alíquota zero, mas o assegura “inclusive” nessas hipóteses.
Ora, a utilização do termo “inclusive” confere caráter nada mais que exemplificativo às hipóteses de isenção e alíquota zero que se lhe seguem no texto legal. Se inclusive saídas isentas e sob alíquota zero mantêm o crédito de entrada, é porque outras saídas desoneradas – ou ao menos mais uma espécie delas – também ensejam igual consequência. Precocemente satisfeito com o que decidiu no REsp nº 860.369, o STJ, porém, nunca se interessou sequer pela análise literal do art. 11, muito menos por uma análise sistemática da norma.
O art. 11 da Lei nº 9.779/99 impõe, a nosso ver, somente dois requisitos à manutenção do crédito de IPI apropriado nas entradas, a saber: (i) as entradas devem ser normalmente tributadas pelo imposto; e (ii) o bem adquirido deve submeter-se a processo de industrialização, por qualquer das modalidades previstas no art. 4º do RIPI.
Não importa, pois, qual a disciplina de tributação do imposto na saída, importa a existência de um processo industrial. E se é assim, faz-se necessário distinguir situações que a TIPI trata uniformemente sob a rubrica “NT”.
A maioria dos itens catalogados como NT na tabela do IPI realmente não decorre de atividade industrial; são, digamos, situações NT “ontológicas”, ou “stricto sensu”. Essas hipóteses são simplesmente alheias à materialidade do IPI, e por isso em boa hora foram rejeitadas pelo art. 11 da Lei nº 9.779/99, que, repita-se, exige que o insumo seja “aplicado na industrialização”.
Mas também foram rotulados, na TIPI, como NT os bens imunes ao IPI, os quais, não fosse a imunidade, poderiam ser normalmente alcançados pelo imposto na medida em que resultam de inequívoco processo industrial. É o caso de derivados de petróleo e produtos minerais, por exemplo, imunizados contra o IPI pelo art. 155, §3º da CR.
<blockquote class="jota-article__eye">Se o bem imune resulta de processo industrial, por que conferir-lhe tratamento distinto e menos favorável que o dispensado a bens isentos? Subverte-se a lógica de que quem pode o mais, pode o menos...</blockquote>
A IN/SRF nº 33/99 desincumbiu-se muito bem da tarefa de disciplinar o art. 11 da Lei nº 9.779/99. No seu art. 2º, §3º, impôs o estorno de crédito por insumos utilizados na fabricação de bens NT<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Ato contínuo, no art. 4º, estendeu expressamente os efeitos da norma legal a produtos tributados à alíquota zero, isentos ou imunes<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
O choque antinômico entre os dois dispositivos da IN/SRF nº 33/99 resolve-se, sem maior dificuldade, pelo expediente da lex specialis. Sendo a imunidade uma, digamos, espécie de NT, prevalece para ela a regra do art. 4º da IN; o art. 2º, §3º resta, então, aplicável unicamente aos produtos NT “stricto sensu” a que se aludiu acima.
O famigerado ADI nº 5/06, portanto, à guisa de interpretar a IN nº 33/99, afronta-a direta e grosseiramente. Vinte e um anos depois de editada, pasme-se, a correta IN/SRF nº 33/99 segue inalterada e autorizando expressamente a manutenção do crédito de IPI nas saídas de produtos industrializados imunes. O fisco solenemente ignora sua própria norma infralegal expressa, com o beneplácito jurisdicional. Uma inacreditável “pegadinha do malandro” contra o contribuinte sério.
<blockquote class="jota-article__eye">Pois bem. O que o STJ pensa sobre a literalidade do art. 11? O que pensa sobre a distinção entre NT “stricto sensu” e NT por imunidade, e seu possível impacto sobre a manutenção dos créditos?</blockquote>
A Corte nunca enfrentou esses pontos, em razão da equivocada crença de que o debate restara interditado pelo REsp nº 860.369.
É hora de reabrir – ou melhor, de verdadeiramente inaugurar – esse debate no STJ, demonstrando que a Corte até aqui não enfrentou efetivamente a matéria, inobstante julgá-la hoje monocraticamente.
O exemplo virá, quiçá, das Cortes regionais. Na AC nº 0015144-47.2008.4.03.6100, o TRF da 3ª Região recentemente apreciou pleito de uma distribuidora de GLP, que pretendia manter o crédito de IPI na aquisição de botijões<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. A Sexta Turma do tribunal, então, negou o pleito, não porque as operações com GLP fossem imunes, mas porque o envasamento do GLP não configurava, no seu entender, uma atividade industrial.
A pretensão foi aí recusada a um fundamento adequado. Endireitou-se o debate. Esperamos que também o STJ tenha a clarividência e, por que não dizer, a humildade de finalmente enfrentá-lo adequadamente, como ainda não o fez.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> “Art. 11.  O saldo credor do Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI, acumulado em cada trimestre-calendário, decorrente de aquisição de matéria-prima, produto intermediário e material de embalagem, aplicados na industrialização, inclusive de produto isento ou tributado à alíquota zero, que o contribuinte não puder compensar com o IPI devido na saída de outros produtos, poderá ser utilizado de conformidade com o disposto nos <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9430.htm#art73">arts. 73 e 74 da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996</a>, observadas normas expedidas pela Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda”.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> O mesmo dispositivo assegurou, ademais, a compensabilidade do saldo credor trimestral do IPI com quaisquer outros tributos federais, nos termos do art. 74 da Lei nº 9.430/96.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> “Art. 2º. §3º. Deverão ser estornados os créditos originários de aquisição de MP, PI e ME, quando destinados à fabricação de produtos não tributados (NT)”.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> “Art. 4º. O direito ao aproveitamento, nas condições estabelecidas no art. 11 da Lei nº 9.779, de 1999, do saldo credor do IPI decorrente da aquisição de MP, PI e ME aplicados na industrialização de produtos, inclusive imunes, isentos ou tributados à alíquota zero, alcança, exclusivamente, os insumos recebidos no estabelecimento industrial ou equiparado a partir de 1o de janeiro de 1999”.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> TRF3. 6ª. Turma. AC 0015144-47.2008.4.03.6100. Rel. Des. Consuelo Yoshida.

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JOTA

Está na hora de reabrir a jurisprudência do STJ

Crédito de IPI na fabricação de produtos imunes

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