Filipe Natal De Gaspari

O presente cenário político mundial é de ascensão de movimentos autoritários, como o populismo, e de respostas de emergência à crise pela Covid-19. Destacam-se ainda outros graves fatores de crise, como migrações em massa, calamidades naturais e terrorismo.
Desde os atentados de 11 de setembro de 2001 e a crise econômica de 2008, o uso de poderes de emergência tem sido disseminado e a possibilidade de que isso auxilie na consolidação de governos autoritários é uma preocupação de primeira grandeza para o constitucionalismo.
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Apesar desse cenário, no Brasil, os estudos constitucionais contemporâneos não privilegiam a compreensão do tema das “crises”. A crise pelo novo coronavírus desencadeou uma enxurrada de trabalhos sobre o assunto em esfera nacional.
Porém, antes disso, o tema era francamente marginalizado. Na literatura internacional, não obstante, ataques terroristas, a crise econômica de 2008 e migrações em massa suscitaram discussões recentes (e importantes) sobre o tema.
Crises costumam legitimar a transferência de poderes para o Poder Executivo central (em tese, mais hábil para oferecer respostas ágeis e eficazes no combate a crises), o que pode favorecer a hipertrofia das estruturas de Estado tradicionalmente comprometidas com propostas autoritárias.
Nesses cenários, Judiciário e Legislativo costumam ser deferentes à atuação do Executivo. Separação de poderes e federalismo costumam sofrer impactos diretos em contextos de emergência.
O temor, observa DYZENHAUS (2012), é que a adoção de um regime de emergência potencialize a ideia de um “estado administrativo”, que abandone os pressupostos de legalidade e de proteção de liberdades individuais.
Teme-se que regimes de emergência façam com que as ideias de “Estado de direito” e proteção da “rule of law” se transformem em noções vazias, meramente formais, manipuladas e reivindicadas pelo Executivo apenas como meio de conferir legitimação formal aos seus atos.
Esse cenário poderia estar na base de um ciclo vicioso, em que a obediência da legalidade se transformaria em algo protocolar, que não impõe restrições verdadeiras ao Executivo, e sem conformidade com valores constitucionais substantivos de proteção de direitos e garantias individuais.
Em análise sobre o populismo contemporâneo (forma de autoritarismo), MÜLLER (2016) argumenta que cenários de crise tendem a favorecer a sustentação de líderes populistas no poder. Manipular crises, ou mesmo forjá-las, é uma estratégia para perpetuar a polarização iniciada nas campanhas políticas desses governantes.
Seria ingênuo supor que líderes populistas, ao chegar ao poder, se conformariam com as limitações impostas pela ordem constitucional em que se inserem. Quando assumem o poder, em contrapartida, populistas costumam levar adiante a “confrontação” iniciada em suas campanhas. A oposição ao status quo é uma das bandeiras populistas e crises podem favorecer essa estratégia de ação.
Apesar desses temores, em trabalho recente, GINSBURG &amp; VERSTEEG (2020), por meio do uso de uma metodologia de direito comparado, desafiaram a ideia de que a crise pela Covid-19 tenha sido determinante para a erosão de democracias ao redor do mundo.
Segundo o estudo, o uso questionável de poderes de emergência tem ocorrido em países cujas bases democráticas já se encontravam em processo de degradação. A seu ver, os países que acabaram sofrendo mais impactos negativos para as suas democracias tinham “comorbidades”, isto é, já se encontravam em processo de degradação democrática. Esse seria o caso, por exemplo, da Hungria com Orbán.
Para eles, no cenário de crise pela Covid-19, a própria forma de condução da crise teria imposto um obstáculo à hipertrofia do Executivo. O Judiciário teria atuado diretamente em diversos países, ora controlando os poderes executivos, ora exigindo a sua atuação, assim como os governos regionais (sobretudo em países que adotam o federalismo) – como no Brasil.
Não teríamos visto juízes tão deferentes e decisões políticas tão centralizadas. Os autores defendem a visão de que, diferentemente de crises violentas (terrorismo, revoltas e guerras), as respostas ao coronavírus demonstraram que o Executivo estaria limitado em diversas frentes e não seria capaz de responder, de forma centralizada, às demandas de solução de crises.
<blockquote class="jota-article__eye">Porém, mesmo em face dessas conclusões, o reflexo do uso de poderes de emergência na degradação da democracia precisa ser repensado.</blockquote>
Os autores não ignoram a possibilidade de que o uso de poderes de emergência ajude a degradar a democracia (como fator auxiliar), mas se fiam muito facilmente na ideia de que o uso de poderes de emergência não é decisivo para o fenômeno de degradação democrática.
Se governos com inclinações autoritárias tradicionalmente recorrem ao uso de poderes de emergência, isso significa que pode haver nesse uso um risco em si. Além disso, o trabalho ignora as potencialidades autoritárias de outras instituições. O perigo autoritário não é apenas uma sombra que espreita os poderes executivos centrais.
Depois, essas conclusões consideram quase com exclusividade o cenário de crise pela Covid-19 – o que limita as conclusões do estudo. A melhor forma de compreender os efeitos da crise pela Covid-19 é analisá-la lado a lado com outras crises. Crises, sejam quais forem as suas causas, costumam suscitar questões importantes sobre a proteção de liberdades e segurança.
Em crises, essa tensão sempre estará presente, e a sua natureza, na minha sugestão, não é tão determinante quanto GINSBURG &amp; VERSTEEG sugerem. O risco autoritário espreita todos os cenários em que o Estado assume um paradigma de emergência.
Tudo leva a crer que o uso de poderes de emergência previstos nas ordens constitucionais das democracias liberais contemporâneas possa ser desvirtuado por governos com inclinações autoritárias.
Embora sejam, em tese, voltados à preservação de determinada ordem constitucional, quando usados por governantes com inclinações autoritárias, poderes de emergência podem favorecer a ruptura dessa ordem e instaurar indesejadas “novas normalidades” constitucionais.
Explico. Em países sem grande tradição democrática (e.g., Brasil, Índia, Polônia), mas que possuem relativa presença das ideias e valores liberais tanto em seus designs quanto em suas práticas constitucionais, poderes de emergência podem ser utilizados para minar o tecido da ordem constitucional vigente e criar novas normalidades.
Em Estados autoritários (e.g., China, Hungria, Venezuela), com quase nenhum respeito por eleições livres e por alternância de poder, marcados pelo desrespeito escancarado de regras supranacionais voltadas à proteção de direitos humanos, poderes de emergência podem ser utilizados para garantir que a normalidade autoritária consolidada se perpetue.
Para além dos limites da crise atual, seria importante que viéssemos a conhecer melhor como o uso de poderes de emergência previstos em ordens constitucionais diversas, por causas idênticas, similares ou diversas (crises violentas, crises econômicas, calamidades naturais e pandemias), pode favorecer ou desfavorecer as pautas de governos autoritários.
Considerar essa pluralidade de fatores e cenários pode ser de grande valia para a compreensão do tema das respostas constitucionais às crises. Independentemente de suas causas, o uso de poderes de emergência pode colocar em xeque nosso modo de considerar a higidez das instituições liberais dos Estados ao redor do mundo.
As características desse uso podem funcionar como um termômetro para a democracia liberal. Se um Estado usa indiscriminadamente e de forma não controlada poderes de emergência, e esse uso provoca a criação de novas normalidades, isso pode indicar que nesse país o respeito às instituições liberais não é uma prioridade. No final do dia, o risco é que poderes de emergência estejam sendo utilizados para legitimar tendências autoritárias.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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Referências bibliográficas
DYZENHAUS, D. (2012). States of Emergency. In: ROSENFELD, Michel &amp; SAJÓ, András. The Oxford Handbook of comparative constitutional law. Oxford University Press.
MÜLLER, J-W. (2016). What Is Populism?, Philadelphia: University of Pennsylvania Press.
GINSBURG, T. &amp; VERSTEEG, M. (2020). The bound executive: emergency powers during the pandemic (26.7.2020). <a href="about:blank">Virginia Public Law and Legal Theory Research Paper No. 2020-52</a> <a href="about:blank">U of Chicago, Public Law Working Paper No. 747</a>. Disponível em: &lt;<a href="about:blank">https://ssrn.com/abstract=3608974</a>&gt;.

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JOTA

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