MP 950/2020

Covid-19 e o risco do desrespeito aos contratos

Análise das medidas de enfrentamento dos impactos sobre o setor elétrico

Crédito: Pixabay

Tão logo anunciadas as medidas de enfrentamento da Covid-19, começaram as manifestações no sentido de seu possível enquadramento como força maior, obviamente que com vistas à escusa do cumprimento de obrigações contratuais nas mais diversas áreas.

Abstraídas as questões de ordem técnico-jurídica, cuja devida análise necessariamente pressupõe a consideração de particularidades fáticas e contratuais, três fatores chamam a atenção diante do movimento anticontratualista – ainda não endêmico.

O primeiro está no caráter marcadamente democrático do coronavírus, desprovido de toda e qualquer preferência étnica, geográfica ou socioeconômica na sua tarefa de varrer o globo terrestre. Em conversa sobre o tema e sobre o enfrentamento da judicialização associada ao racionamento de energia elétrica decretado em 2001, ouvi de respeitado colega algo como: curiosa a invocação de força maior que atinge indistintamente as duas partes de um mesmo contrato.

Mas a invocação houve! E a circunstância ressaltada por meu colega não tardou a revelar sua face mais pitoresca: aqueles que notificaram seus fornecedores/vendedores com alegação de força maior a afetar seus contratos de compra foram, na semana seguinte, surpreendidos com citações e notificações em que seus contratos de venda eram questionados sob a alegação de… força maior!

O caráter global e democrático do vírus se desdobra no segundo fator: a aceitação irrestrita de sua caracterização como força maior conduziria a rupturas contratuais em série, em massa e escala poucas vezes vistas, talvez comparável apenas ao momento seguinte ao fim das grandes guerras nas nações derrotadas.

A resignação diante de tal possível resultado, que, pela razão óbvia de rompimento de diversas relações econômicas, acentuaria em intensidade e duração os efeitos deletérios da pandemia sobre a economia, seria, mais uma vez, confirmatória da baixa conscientização nacional sobre a importância de se respeitarem contratos.

Essa confirmação deixaria, com alcance e custos de longo prazo[1], a sensação de insegurança e a percepção de elevado risco sobre a qualidade do sistema jurídico brasileiro, justamente no momento em que, na busca pela reversão do impacto econômico provocado pela Covid-19, estará mais acirrado o franco jogo competitivo, entre nações, pela atração de capital.

O terceiro fator está na própria premissa de que a Covid-19, por si só, revestir-se-ia dos traços de imprevisibilidade e impossibilidade de contorno a caracterizarem força maior. A humanidade já havia vivenciado a peste bubônica, a cólera, a tuberculose, a gripe russa, a gripe espanhola, a gripe asiática e a gripe suína, todas a fazer vítimas em escala global. O mesmo se dá agora com a pandemia do coronavírus.

Apenas nas últimas duas décadas, vivenciaram-se eventos imprevisíveis como o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001, o mensalão, a crise econômica decorrente do boom imobiliário nos Estados Unidos, o petrolão, a crise da Grécia em 2009/2010, o ataque eleitoral-tarifário-dilmista de 11 de setembro de 2012 e a greve dos caminhoneiros.

A eloquência dos fatos confirma a lógica do cisne negro:

“o mundo é dominado pelo extremo, pelo desconhecido e pelo muito improvável (improvável segundo nosso conhecimento corrente) […] o futuro será cada vez menos previsível, enquanto tanto a natureza humana quanto as ‘ciências’ sociais parecem conspirar para esconder de nós essa ideia”[2].

Diante da frequência com que se apresentam eventos imprevisíveis, a automaticidade em aceitá-los como aptos a justificarem recusa ao cumprimento de obrigações contratuais conduziria à negação do próprio instituto contrato, cuja importância encontra sua melhor e mais inusitada comprovação em paradoxo pouco explorado da filosofia rousseauniana, que, como instrumento de contenção do suposto retrocesso moral provocado por avanços civilizatórios como a propriedade privada, propôs a adoção de outro instrumento marcadamente característico de progresso civilizatório: um contrato, qualificado como “contrato social”.

Conjugados, os três fatores revelam que a tentativa de enquadramento da Covid-19 como força maior pode consistir em atalho – talvez cognitivo, mas provavelmente estratégico – para mascarar ou evitar a discussão jurídica adequada ao caso, a qual, nos contratos administrativos, diz respeito a equilíbrio-econômico financeiro, e, nos contratos privados, gravita em torno da caracterização, ou não, de onerosidade excessiva, que pressupõe a comprovação da vantagem extrema da parte contrária, algo difícil de vislumbrar no cenário atual, em que ambas as partes são afetadas pela pandemia e pelas medidas adotadas para sua contenção.

A consideração de especificidades fáticas e contratuais e o enfrentamento da questão sob parâmetro normativo adequado são ao menos o início da contenção de potencial endemia anticontratual cujos efeitos de médio e longo prazo talvez não percam, em potencial danoso, para os decorrentes do vírus que ora se enfrenta.

 


[1] “Quando a lei não garante a execução dos contratos, ela coloca todos os que tomam empréstimo em pé de igualdade com os insolventes ou pessoas de crédito duvidoso em países melhor regulamentados. A incerteza da recuperação do seu dinheiro leva o emprestador a exigir os mesmos juros usuários que são requeridos dos que estão falidos.” (SMITH, Adam. A riqueza das nações, livro 2, p. 112).

[2] TALEB, Nassim Nicholas. A lógica do cisne negro: o impacto do altamente improvável. – 19 ed. – Rio de Janeiro: Best Business, 2019, p. 27.