Análise

Covid-19 e a reforma do direito da insolvência: debate de hoje e o debate de amanhã

Se o cenário já contava com suficiente atrito, a pandemia de coronavírus parece colocar lenha na fogueira

Crédito: Pixabay

A pandemia desencadeada pelo COVID-19 gerou – como seguirá gerando –deletérios impactos sociais e econômicos a nível mundial. Em que pese sequer seja possível prever a magnitude desses efeitos, as autoridades competentes, tanto no cenário nacional quanto no internacional,desde já vêm tomando providências para mitigá-los. A nível legislativo, como não poderia ser diferente, a legislação concursal – desenhada precisamente para endereçar a crise econômico-financeira– ocupa papel de destaque nesse debate.

Antes mesmo da deflagração da pandemia de COVID-19, já tomava lugar em nosso País um debate quanto à reforma da Lei Federal nº 11.101/2005 (Lei de Recuperação de Empresas e Falências, “LREF”), o que vinha ganhando corpo com o Substitutivo ao Projeto de Lei 6.229/2005. À luz da atual crise mundial, contudo,o Substitutivo deixou os holofotes.

O centro das atenções passou a ser o Projeto de Lei 1.397/2020, de escopo mais específico: o Projeto não visa a uma alteração global do Direito da Insolvência, mas sim a instituir medidas pontuais e transitórias que pretendem favorecer a superação do estado de crise econômico-financeira desencadeado pela pandemia de coronavírus.

Ainda, para além do campo legislativo, caminharam no mesmo sentido as recomendações elaboradas pelo Conselho Nacional de Justiça no ato normativo n° 0002561-26.2020.2.00.0000, de 31 de março de 2020 (“Recomendação CNJ”). O CNJ buscou uniformizar recomendações quanto à atuação judicial durante este particular período que enfrentamos – algumas das medidas sugeridas incluem a priorização de decisões envolvendo levantamento de valores e a autorização de apresentação de Plano de Recuperação Judicial modificativo.

Em síntese, por ora, as reformas no Direito da Insolvência têm foco no “hoje”: o primeiro passo é encontrar mecanismos que, supostamente, sejam capazes de favorecer a preservação da atividade econômica. Contudo, não se pode esquecerdo segundo passo, que é a contrapartida dos devedores, garantindo que tais mecanismos não deem ensejo a comportamentos abusivos dos agentes que enfrentam a crise.

Portanto, o Legislativo tem o desafio de encontrar medidas que são, de fato, capazes de favorecer a manutenção da atividade produtiva. Infelizmente, não parece ser o caso boa parte das disposições do PL 1.397/2020.

Faz-se um destaque à medida prevista no art. 13, inciso III, do Projeto: tornar momentaneamente inaplicável o art. 49, §1º, da LREF. Ocorre que o art. 49, §1º, é aquele que mantém incólume o direito do credor contra os coobrigados. Ou seja, o Projeto parte do pressuposto de que não permitir a cobrança de fianças, avais, etc., seria uma maneira de favorecer a preservação da atividade econômica do devedor. Todavia, a pura e simples suspensão de garantias é diferente do que ocorre em sistemas reconhecidamente mais eficientes, como o norte-americano, em que o third-party release tem algumas exigências.

Ademais, tanto ou mais importante do que barrar execuções é permitir que o devedor tenha acesso a novas linhas de financiamento – e isso, infelizmente, não é a lei que faz: o que o ordenamento jurídico pode, e deve, fazer é criar os incentivos corretos para tanto. Todavia, o Projeto, ao afastar a incidência do art. 49, §1º, da LREF,acaba impossibilitando que oagente econômico que ainda não ingressou ou está em processo de reestruturação faça uso de fianças e avais para ter acesso a linhas de crédito. O resultado é reverso: no afã de fazer o bem (facilitar a reestruturação), faz-se o mal (diminui-se o acesso ao crédito).

De qualquer sorte, não nos esqueçamos, o desafio do Legislativo também é resguardar o interesse dos credores.Para além de encontrar soluções aptas a preservar a atividade do devedor, é necessário garantir que devedores não utilizarão os novos institutos de modo abusivo.

Essa dicotomia é explicitada, exemplificativamente, em relação às provisões quanto à apresentação de novo Plano de Recuperação Judicial. Tanto o Projeto 1.397/2020 quanto a Recomendação CNJ preveem que será facultada a apresentação de novo Plano de Recuperação Judicial pelo devedor cujo Plano já fora homologado em juízo. Se o PL 1.397/2020 dá liberdade ampla a tal hipótese, em contrapartida, a RecomendaçãoCNJ condiciona-a à configuração de força maior ou caso fortuito.

Em nosso sentir, andou bem o CNJ ao condicionar a apresentação de novo Plano à configuração dos institutos previstos no art. 393 do Código Civil. Isso porque o plano, como contrato que é, demanda a manifestação válida da vontade dos contratantes, constituindo uma relação obrigacional entre devedor e credores que não pode ser descumprida injustificadamente. Nos termos da LREF, o descumprimento do Plano faz incidir a consequência normativa da convolação em falência (art. 71, IV, LREF).

Ao que parece, o Projeto 1.397/2020 presume, de modo absoluto, que a pandemia causada pelo coronavírus constitui um evento de força maior ou caso fortuito para toda e qualquer recuperanda, independentemente de sua área de atuação e dos termos de seu Plano de Recuperação Judicial.

Não é, salvo engano, a melhor técnica. A um, as restrições impostas pelo combate ao coronavírus não atingiram a atividade econômica de todos os agentes da mesma maneira (há até mesmo os casos excepcionais em que aumentou a demanda por certos produtos e serviços); a dois, o Plano de Recuperação Judicial pode prever obrigações cujo cumprimento não fica impossibilitado (pense-se, por exemplo, em um Plano recém aprovado que prevê carência de dois anos para o início dos pagamentos).

O cenário descrito evidencia o outro lado da moeda em relação à difícil equação que se encontra diante do Legislativo. Não basta encontrar medidas capazes de favorecer a atividade produtiva, é preciso que as medidas tenham o devido contraponto, sob pena de possibilitar-se atuação abusiva por parte de agentes submetidos a processos concursais. Deve-se estabelecer um ponto de equilíbrio no diálogo entre credores e devedor.

Esse, porém, é o “debate de hoje”. Ocorre que a crise ocasionada com a proliferação do coronavírus deixa ainda mais evidente as insuficiências do Direito da Insolvência pátrio, insuficiências que dificilmente poderiam ser adequadamente endereçadas por meio das reformas pontuais e transitórias atualmente em debate. Entra em cena o “debate de amanhã”: o Direito da Insolvência pátrio é suficientemente abrangente quanto aos agentes que podem acessá-lo e usufruir de suas provisões?

As medidas restritivas impostas para combater o coronavírus impactaram os mais diversos agentes do cenário econômico. Ocorre que o Direito da Insolvência não está igualmente à disposição de toda essa gama de agentes – segundo o art. 1º da LREF, a recuperação judicial e a recuperação extrajudicial são instrumentos passíveis de uso pelos empresários individuais e pelas sociedades empresárias. Ninguém mais.

Isto é, a teoria da empresa é o portão de entrada do Direito da Insolvência. Isso significa que agentes não empresários – como cooperativas, firmas de contabilidade, sociedades de advocacia, times de futebol, associações religiosas, produtores rurais não registrados na Junta Comercial, etc. – não têm acesso aos regimes reestruturatórios e liquidatório previstos na LREF.

Esse cenário já causa problemas num ambiente de economia saudável. Invariavelmente, há um anseio social pela reestruturação de agentes não empresários, que simplesmente não têm mecanismo legal algum com que reestruturar seus débitos. Por outro lado, é legítima a resistência dos credores em opor-se a essa reestruturação, precisamente porque concederam crédito contando com que o devedor não passaria pelos regimes da LREF.

Esse conflitante cenário teve respostas judiciais das mais diversas, ora negando-se por completo o trâmite de eventual Recuperação Judicial de não empresário, ora possibilitando-o. Para além de questões de certo e errado, o fato é que se vive em meio a uma tremenda insegurança jurídica.

Se o cenário já contava com suficiente atrito, a pandemia de coronavírus parece colocar lenha na fogueira. E o procedimento de jurisdição voluntária denominado “negociação preventiva”, previsto no PL 1.397/2020, caminha no mesmo sentido.

Baseado em instituto similar previsto no Direito francês – que, diga-se de passagem, não é reconhecido como sendo um primor de eficiência –, o PL, após instituir a suspensão das obrigações pelo prazo de 60 dias, estatui provisoriamente a possibilidade de um devedor dar início a uma negociação coletiva com seus credores (na França, mandat ad hoc ou conciliation), a ser conduzida por negociador profissional,mantendo-se a suspensão de ações e execuções contra o devedor.

A grande inovação do Projeto de Lei 1.397/2020, porém, é a maior abrangência quanto aos legitimados a dar início a tal procedimento. Não mais se está diante da limitação imposta pela teoria da empresa: estão legitimados “qualquer pessoa natural ou jurídica que exerça ou tenha por objeto o exercício de atividade econômica em nome próprio, independentemente de inscrição ou da natureza empresária de sua atividade” (art. 2º, §1º, PL 1.397/2020); todavia, tal extensão subjetiva está, no plano da proposta legislativa, restrita a essa primeira fase, ou seja, não abarca os procedimentos recuperatórios e falimentar!

É crível que o não empresário – cooperativas, associações, etc. – fará uso da negociação preventiva e depois não conseguirá ter acesso aos processos de Recuperação Judicial ou Recuperação Extrajudicial caso a negociação falhe ou não seja suficiente? Não parece ser o caso. É mais provável que o procedimento de negociação preventiva acabe funcionando como uma porta de entrada para os outros regimes previstos na LREF – ainda mais diante das pressões sociais exacerbadas pelos impactos da crise que começa a se enfrentar.

E mais: se, por um lado, o PL 1.397/2020 tem o potencial de possibilitar um alargamento dos legitimados a requerer a Recuperação Judicial e a Recuperação Extrajudicial, por outro lado há ainda toda uma outra face do debate acerca das políticas públicas de crédito que segue sem qualquer resposta. Fala-se aqui do Direito da Insolvência para a pessoa física, mormente para o consumidor.

O PL 1.397/2020 expressamente exclui o consumidor de sua abrangência.A pessoa física, portanto, seguirá no histórico limbo em que se encontra – sem qualquer instrumento para reestruturar sua dívida e sem uma opção viável para liquidar seus débitos.

Em solo pátrio, a falência ainda é vista sob um estigma muito forte – como se fosse moralmente condenável falir. No entanto, em outros ordenamentos o consumidor pode fazer uso do instituto de maneira mais racional: quando não se configura um remédio demasiadamente forte (overly strong medicine) a tais pessoas,a falência pode conceder um novo começo (fresh start) necessário.

No Brasil, a falência do consumidor ainda é regulada pelo instituto da insolvência civil, prevista no Código de Processo Civil de – pasmem – 1973.Trata-se de procedimento praticamente desconhecido, tão ineficiente que faz com que o consumidor nunca o busque, sendo infinitamente executado. Ao fim e ao cabo, nem o credor consegue recuperar o que lhe é devido, nem o devedor consegue superar o estado de insolvência.

Resultado: um imbróglio que muito já se conhece. A execução forçada de créditos é frustrada, as garantidas ineficazes, a concessão de financiamentos fica restrita, os juros aumentam – uma verdadeira bola de neve.

Esse é o “debate de amanhã”: para além de todas as reformas de caráter transitório, de natureza intrinsicamente pragmática, cabe aos estudiosos do Direito da Insolvência ter em mente também as reformas globais por que pode passar o ordenamento pátrio. A crise econômica provocada pelas medidas de combate ao COVID-19 é um estressor que torna mais evidente o que precisa e o que não precisa ser reformado.

É possível que medidas governamentais como corte de juros e injeção de liquidez tenham repercussões muito mais impactantes que aquelas decorrentes de alterações legislativas quanto ao combate da crise econômica que toma corpo. Não obstante, há espaço para reformas no Direito da Insolvência pátrio: cabe ao legislador solucionar o hoje tendo em vista o amanhã.