Poder Público

Covid-19, direito à saúde e os 3Ds: diálogo, deferência e desastres

Urgência de formulação de respostas para superar a crise, pelos Poderes Públicos, incluindo o Judiciário, é um desafio inédito

Fotos: Andréa Rêgo Barros/PCR

A preocupação mundial de conter a propagação da CODIV-19 é cada dia majorada ante ao elevado índice de transmissibilidade do vírus SARS-CoV-2 somado à incapacidade de organização do sistema de saúde para atendimento simultâneo dos infectados, especialmente das pessoas com quadro mais severo.

Ainda que o mantra entoado pelas agências de proteção internacional, em especial a OMS, e também pela maioria dos atores locais, seja de que cada indivíduo importa – coincidente com a máxima kantiana dos sujeitos considerados como um fim em si mesmo, dotados de direitos intrínsecos inalienáveis – é certo que não haverá – em alguns lugares já não há – recursos e estrutura médica e hospitalar para atender às pessoas infectadas.

Esse cenário catastrófico tem provocado, ao redor do mundo, escolhas trágicas diante de recursos escassos numa crise sanitária deste quilate. Na arena local, os mesmos dilemas se repetem: Médicas e médicos na linha de frente do enfrentamento da pandemia poderão sofrer alguma interferência externa em sua decisão sobre melhor tratamento ou sobre a destinação do ventilador pulmonar ou sobre qual paciente merecerá a vaga da UTI?; Em que condições o gestor público deve responder pela falta de estrutura, de serviços e equipamentos para o tratamento?; Quais informações técnicas – sobre a doença e os doentes – devem ser resguardadas e quais precisam necessariamente ser divulgadas, por serem de interesse público? Estes são apenas alguns dos questionamentos possíveis que desaguarão – ainda que não se adote aqui a ideia de última palavra – no Poder Judiciário.

A urgência de formulação de respostas para superar a crise da COVID-19, pelos Poderes Públicos, incluindo o Judiciário, é um desafio inédito. Ainda que não haja paralelo com o que se vive, há imensa familiaridade do mundo jurídico com lides sobre o direito à saúde, desde o acesso de cidadãos a medicamentos e à internação, passando pelas causas consumeristas envolvendo planos de saúde até lides empresariais e tributárias de instituições que lidam com insumos de saúde, que adquirem equipamentos ou erguem estruturas hospitalares. Sem falar em questões do SUS e de gestão da saúde pelos entes federativos, que vão de repasses de verbas à contratação de Organização Social para prestação de serviços.

A judicialização da saúde tem efeitos sistêmicos, que afetam outros direitos e a prestação de serviços essenciais. Em 2009, o Supremo Tribunal Federal realizou audiência pública, presidida pelo Ministro Gilmar Mendes, que resultou na fixação de critérios que devem ser necessariamente observados e considerados pelo Judiciário nas demandas de saúde.

Na ocasião, mais de 50 especialistas (entre juristas dos mais variados setores, médicos, técnicos de saúde, gestores e usuários do sistema único de saúde) abordaram a saúde de maneira holística, indo além do olhar estritamente jurídico.

O farto material acadêmico e técnico disponível (no site do STF) constitui um importante acervo e legado para pesquisa do direito, especialmente para juízes, em momentos como este que questões centrais sobre a gerência da saúde batem às portas do judiciário. As boas práticas dos atores do sistema de justiça que, em tempos de normalidade, garantem a fruição do direito à saúde, em casos de acesso a medicamento ou de acesso às unidades de saúde para internação, por exemplo, precisam ser adaptadas para a situação de pandemia.

As discussões sobre as limitações do julgador quando as questões levadas ao Judiciário envolvem conhecimento específico e discricionariedade técnica também é assunto recorrente no controle de políticas públicas e separação dos poderes. Em matéria de saúde, especificamente no inédito contexto causado pela crise da COVID-19, o princípio da deferência técnico-administrativo serve de diretriz, mas não para limitar a atuação do Judiciário.

É importante que no julgamento de questões sobre a efetividade do resguardo do direito à saúde haja “diálogo deferente” com as instâncias especializadas, tanto os gestores públicos como os profissionais da saúde, desde que estas valorações possuam razoabilidade e tenham observado o procedimento adequado.

Neste sentido, o sistema de justiça brasileiro já tem mecanismos que garantem o devido processo legal em situações que demandam respostas rápidas do judiciário, com a possibilidade de que as partes sejam ouvidas logo no início e até que encontrem uma solução consensual para a lide ou para alguns pedidos desta. Ao pensarmos na situação de falta de leitos de UTI ou na escolha do melhor tratamento, a incorporação das falas dos profissionais de saúde e dos gestores será fundamental.

A previsão ou realização de gastos é sempre tema delicado, que não confere, na maioria das vezes, espaço para que o gestor público proponha ou adira a uma rápida resolução da demanda. No entanto, a Lei 13.979/2020, que dispõe sobre medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública em face do novo coronavírus, no seu art.4º, admite a dispensa da licitação para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da emergência, prevendo, no §2º, que todas as contratações ou aquisições realizadas serão imediatamente disponibilizadas na internet, dando publicidade ao nome do contratado, o prazo contratual, o valor, dentre outras informações. Esse parágrafo faz menção à necessidade de observância do §3º do art.8º da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), que apresenta os requisitos essenciais para que as informações e dados disponíveis na internet sejam considerados acessíveis.

Além disso, para situações não relacionadas na lei de emergência, Lei 13.979/2020, é válido ressaltar que o STF já considerou que há limites para a interferência do Judiciário, no exercício da judicial review, em políticas públicas e escolhas orçamentárias para sua implantação.

Na ADPF 347, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, o entendimento do Tribunal foi de que o papel do judiciário deve ser “coordenador institucional”, produzindo um “efeito desbloqueador”. Neste julgado, o voto Relator destacava que caberia a intervenção do Judiciário nas políticas públicas de direitos sociais quando as autoridades estivessem “em estado de letargia”.

Todavia, os movimentos de deferência não significam restrição excessiva do Poder Judiciário, ainda mais em cenários em que retrocessos e ameaças a direitos e à democracia se somam à letargia. Não se pode aceitar que informações sobre repasses e aplicação de verbas para combate da doença, sobre leitos disponíveis, sobre contratação de pessoal e sobre as medidas de prevenção e tratamento das e dos profissionais de saúde, dentre outras, sejam tratadas como questões meramente técnico-administrativas, já que, nesse caso, o direito à informação é um direito que resguarda a população e permite que se corrijam injustiças, especialmente em relação aos grupos mais vulneráveis.

Para que haja o diálogo deferente do Poder Judiciário com as instâncias especializadas, são necessários pré-requisitos e condições, sendo o acesso à informação a pedra fundamental para que qualquer deferência se estabeleça. Nesta perspectiva, o direito de acesso à informação sobre a pandemia e as formas que os atores locais estão lidando com a crise sanitária resguarda a liberdade de imprensa e também os titulares de direitos fundamentais diversos, pois permite o conhecimento de monitoramento desses diálogos entre judiciário e corpo técnico-administrativo por setores da sociedade que não seriam chamados a integrar a lide.

A lei brasileira que trata do direito de acesso à informação (Lei 12.527/2011) dá suporte à compreensão coletiva da crise sanitária e ao exercício do direito à saúde, não apenas quando fornece elementos à previsão de transparência da lei de emergência para enfrentar o novo coronavírus, mas também quando dispõe expressamente que não pode ser negado acesso à informação necessária à tutela judicial ou administrativa de direitos fundamentais (art. 21) e também que não pode haver qualquer impedimento ou restrição no acesso a informações ou documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticadas por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas (art. 21, parágrafo único).

Assim, a garantia do direito à informação, a começar pela imprensa, pode contribuir para que as deficiências na aquisição de equipamentos e preparação de leitos de UTI no cenário brasileiro sejam corrigidas por medidas judiciais ou extrajudiciais, estas de iniciativa dos Ministérios Públicos e das Defensorias Públicas.

Além disso, o acesso livre à informação sobre as medidas de tratamento e condições médico-sanitárias pode servir para estampar as injustiças com grupos mais vulneráveis. Não é desarrazoado considerar que um grupo preterido no tratamento médico, seja pela faixa etária seja por falta de acesso a leitos do sistema privado, seja o mesmo grupo que não consegue ter acesso à justiça e obter uma decisão judicial a tempo de salvar sua vida.

Com os sistemas de saúde locais chegando ao colapso, ações coletivas já batem às portas do Judiciário para busca de garantia de um atendimento mais equânime, a partir da transparência na gestão dos recursos. Neste sentido, o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado do Amazonas (MPAM) ingressaram na Justiça Federal, com ação civil pública, dia 14 de abril, para garantir a transparência das informações relativas às medidas adotadas pelo governo estadual no enfrentamento da pandemia de COVID-19. O Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) e a Defensoria Pública do Estado também ajuizaram, dia 17 de abril, ação civil pública para que o estado e o município do Rio desbloqueiem 155 leitos de Unidade de Tratamento Intensivo para pacientes com COVID-19.

A urgência das medidas, no entanto, exige respostas efetivas, que garantam os direitos de todos que esperam leitos de UTI ou que precisam de cuidados na prevenção para evitar desdobramentos mais graves. Tanto melhores serão as respostas quanto mais dialogadas e deferentes forem dentro do framework constitucional e internacional necessário para proteção do direito à saúde.

Além disso, é preciso que se dê uma inédita atenção às e aos profissionais de saúde que são contaminados pelo novo coronavírus, com a previsão de possibilidade de obtenção de cuidados médicos e acesso prioritário aos equipamentos de saúde dentro da rede, pública ou privada, que os contratou.

Não tem sentido que profissionais de saúde infectados exatamente por estarem na linha de frente no combate à doença, que se encontrem com quadro de saúde em estado de média e alta gravidade, tenham as portas de hospitais fechadas para socorrê-los. Aqui, certamente, o diálogo deferente terá de abandonar os sólidos conceitos que regem as relações cidadãos-planos de saúde ou cidadãos-SUS e buscar subsídios na doutrina no princípio da precaução e nos pilares do Direito dos Desastres, já que a pandemia do novo coronavírus se enquadra na categoria de desastre biológico, como bem alertou recentemente o jurista Délton Winter.

Nesse sentido, ao lançar mão dos fundamentos do chamado “direito dos desastres” para atenção aos profissionais que estão na linha de frente no combate à COVID-19, impõe-se que os gestores gerenciem o risco em todas as etapas, desde o fornecimento dos EPIs, passando pela testagem constante desse grupo até o pronto atendimento das pessoas infectadas.

Ao mesmo tempo, a gestão dos riscos, que continua a ser tarefa precípua do Poder Público, exige um trabalho em rede, com horizontalidade dos atores públicos e privados e da sociedade civil na realização das ações, no arranjo institucional que Fernanda Damacena define como governança dos desastres: “a governança fornece, por meio de redes de colaboração entre diversas entidades, uma forma de lidar com essas novas questões sociais”.

Ainda que mortes sejam inevitáveis no contexto de crise sanitária, o discurso de proteção dos indivíduos tem que ser de que cada vida importa. Isto aliado às políticas de contenção de riscos, especialmente de distanciamento social e de fornecimento de equipamentos de proteção para os que estão expostos, reforça o discurso de segurança na proteção dos direitos humanos. Este discurso será mais robusto se entoado de maneira dialogada e deferente entre os diversos atores institucionais, de quem a sociedade espera a condução responsável, solidária e democrática da pandemia.

Se a realidade dá claros sinais para o indizível, para a frustração coletiva de saber que as ações empreendidas com eficiência dificilmente serão suficientes para salvar todas as vidas, espera-se que o discurso dos atores públicos seja uníssono no sentido da proteção integral e não da barganha de vidas que importam mais ou menos.

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