Raquel Scalcon

Em 2020, duas importantes alterações na política cambial brasileira foram introduzidas no ordenamento jurídico pelas Resoluções 4.841 e 4.844, ambas emitidas pelo Conselho Monetário Nacional (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cmn">CMN</a>). Trata-se do órgão superior do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/sistema-financeiro-nacional">Sistema Financeiro Nacional</a>, responsável, sobretudo, pela estabilidade da moeda. Enquanto a Resolução CMN 4.841 alterou a obrigação anual de apresentar, ao Banco Central do Brasil, Declaração de Capitais Brasileiros no Exterior (DCBE) para pessoas físicas e jurídicas residentes e domiciliadas ou com sede no país (de 100 mil dólares para 1 milhão de dólares em 31.12), já a resolução CMN 4.844 alterou a obrigação de registrar operações de câmbio no SISBACEN (de 10 mil reais para 100 mil reais).
Ambas as mudanças impactaram a Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei 7.492/86), especialmente o art. 22, que criminaliza a evasão de divisas e a manutenção de depósitos não declarados no exterior. Isso porque tanto o caput do art. 22 (“Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do país”), quanto o seu P. Único (“Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente”) são consideradas normas penais em branco. Significa dizer que a adequada compreensão da conduta efetivamente criminalizada depende, sempre, de um complemento normativo proveniente do setor regulado, no caso, de órgão do Sistema Financeiro Nacional. Complemento que, assim, dá contornos precisos aos delitos em questão.
Portanto, somente com a leitura conjunta do art. 22 da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7492.htm">Lei 7.492/86</a> e das Resoluções emitidas pelo CMN é possível saber, afinal, qual é a conduta criminalizada. Por exemplo: comete crime um cidadão brasileiro ou uma empresa que tendo, em 31.12.2021, o equivalente a 500 mil dólares em ativos no exterior, não os declara ao BACEN? Se considerarmos as recentes Resoluções do CMN, a resposta será negativa, i.e., não houve crime, porque despiciente, na hipótese (ativos inferiores a 1 milhão de dólares), a apresentação de declaração à autoridade administrativa. Quanto a isso, parece não haver maior discussão. O debate que surgiu após a emissão das referidas Resoluções deu-se quanto ao tempus regit actum, indagando-se como seriam tratadas as condutas que, embora violassem as Resoluções e a política cambial da época, aparentemente teriam perdido relevo à luz das novas regras administrativas.
Diante desse dilema, muitos defenderam se tratar de verdadeira descriminalização, de tal maneira que as Resoluções deveriam, sim, ser aplicadas retroativamente, em benefício de investigados, réus e até mesmo de condenados. Outros tantos sustentaram o oposto, argumentando que não houve mudança na regra penal (o art. 22 da Lei 7.492/86), mas apenas em seu complemento administrativo (as Resoluções do CMN), de tal maneira que os complementos anteriores seriam ultra ativos, ou seja, seguiriam regulando as condutas realizadas durante a sua vigência, sendo indevida a retroação das novas regras. Neste caso, não haveria que se falar em qualquer tipo de descriminalização.
Passado pouco mais de um ano do início do debate, as Cortes começam a se debruçar sobre o tema, posicionando-se, ao que tudo indica, pela corrente que aplica retroativamente as Resoluções CMN 4.841 e 4.844, inclusive com o reconhecimento da ocorrência de descriminalização de condutas. Observa-se que a 2ª Turma do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">Supremo Tribunal Federal</a>, no HC 162.404, decidiu, por maioria, pela aplicação retroativa da Resolução 4.844/2020, enquanto complemento da norma penal do art. 22, caput, da Lei 7.492/86. Afirmou-se, ainda, haver verdadeira descriminalização, uma vez que tal mudança normativa seria “responsável por uma nova percepção quanto ao próprio conteúdo do injusto do fato, capaz de retroagir o ato integrador em função de abolitio criminis”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. 
Também o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em decisão recentemente publicada no bojo de Embargos de Declaração em Apelação Criminal (n. 0028776-47.2007.4.01.3800, 4ª Turma, unânime)<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, afirmou que “com o advento da Resolução CMN nº 4.841, de 30/07/2020, que estipulou um novo valor para a dispensa de declaração de depósitos mantidos no exterior, a conduta do acusado de não declarar valores mantidos no exterior tornou-se atípica”.
Portanto, como se observa, ambas as decisões, embora se refiram a diferentes complementos do art. 22 da Lei 7.492/86 (Resoluções CMN 4.841 e 4.844), reconhecem com acerto que a relevante mudança na política cambial brasileira representou verdadeira alteração na percepção do que deve ser considerado um risco potencial ao Sistema Financeiro Nacional. Trata-se, pois, de efetiva descriminalização, com a consequente extinção de punibilidade de condutas passadas que se tornaram penalmente insignificantes.
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Cf. &lt;https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5549273&gt;.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Cf.   &lt;https://arquivo.trf1.jus.br/PesquisaMenuArquivo.asp?p1=200738000293340&amp;pA=200738000293340&amp;pN=287764720074013800&gt;

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JOTA

Resoluções aprovadas pelo CMN impactam Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional

Cortes reconhecem abolitio criminis no âmbito da evasão de divisas

Resoluções aprovadas pelo CMN impactam Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional que criminaliza a evasão de divisas