Eduardo Baker

Em 28 de novembro de 2018, a Corte Interamericana determinou, em uma <a href="https://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/curado_se_06_por.pdf">resolução relativa a medidas provisórias</a>, que o Estado brasileiro passasse a contar “em dobro cada dia de privação de liberdade cumprido no Complexo [Penitenciário] do Curado” — localizado no Recife, diante das condições desumanas de cárcere constatadas. Passados quase quatro anos da ordem internacional, nenhuma pessoa pessoa presa (ou melhor, <a href="http://www.global.org.br/blog/stf-concede-habeas-corpus-e-determina-computo-em-dobro-preso-no-complexo-do-curado-pe/">quase nenhuma</a>) teve esse direito respeitado. Durante este tempo, morreram mais de quarenta internos no Complexo.  
Para, em tese, finalmente dar início ao cumprimento da decisão internacional, foi instaurado um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) em 2021 perante o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE). Mais de um ano depois, enquanto eu redigia um texto sobre os pontos supostamente controversos que teriam justificado a instauração do incidente ao invés da implementação direta da decisão da Corte Interamericana, o TJPE publicou o acórdão da ação.  
Ainda que a decisão não tenha tornado inócua a discussão que propunha naquele artigo opinativo (pode ser consultado <a href="https://www.global.org.br/blog/enquanto-complexo-do-curado-produz-mais-mortes-e-violacoes/?preview_id=16303&amp;preview_nonce=73d0983105&amp;preview=true">aqui</a>), as cinco teses firmadas no IRDR merecem uma análise urgente e em separado, na esperança de que os atores do sistema de justiça responsáveis pela proteção dos direitos das pessoas presas no Complexo do Curado atuem para reverter a flagrante violação da ordem internacional que é tal decisão do TJPE, publicada em 8 de setembro de 2022. 
A Corte Interamericana havia determinado que o Estado brasileiro passasse a contar em dobro o tempo de prisão de todas as presas encarceradas no Complexo do Curado com a possibilidade, não a obrigação, de que o Estado optasse por fazer uma análise individualizada dessa aplicação nos casos de crimes sexuais, crimes contra a vida e crimes contra a integridade física. Nesses casos, uma comissão multidisciplinar poderia reduzir e, no limite, até afastar o cômputo em dobro. 
No entanto, na decisão do TJPE no IRDR aqui comentado, a pedido do Ministério Público de Pernambuco, o Judiciário introduziu limitações e restrições ao cômputo em dobro com a aparente intenção de inviabilizar ou, ao menos, dificultar ao máximo que os presos no Curado tenham esse seu direito respeitado. 
A Tese 1 afirma que a cômputo em dobro tem “natureza jurídica de remição sui generis”. Não se trata de um simples enquadramento da ordem internacional em categorias do direito interno, mas da imposição de uma natureza jurídica contrária à ordem internacional como maneira de criar formas de limitar o acesso ao direito.  
O §8º do artigo 126 da Lei de Execução Penal (LEP) afirma que a remição “será declarada pelo juiz da execução, ouvidos o Ministério Público e a defesa” – ou seja, não há remição automática, como deveria ocorrer com a ordem do cômputo em dobro para as pessoas presas no Complexo do Curado.  
Mais grave ainda é a possibilidade de aplicação do artigo 127 da LEP ao cômputo em dobro. Este dispositivo permite ao juiz, em caso de falta grave, “revogar até 1/3 (um terço) do tempo remido”. Ou seja, o Estado do Brasil criou uma hipótese de exclusão da contagem em dobro para a pessoa presa no Complexo do Curado que não é autorizada pela Corte Interamericana. 
As Tese 2 e Tese 3 vão além na criação de subterfúgios para burlar a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Primeiro, através de sua leitura conjunta, elas colocam o cômputo em dobro como medida subsidiária à aplicação da Súmula Vinculante n° 56, que trata da vedação de cumprimento da pena em regime mais grave que o fixado pelo juízo. Ou seja, se a pessoa é “beneficiada” pela Súmula Vinculante n° 56, não teria direito, no fim, ao cômputo em dobro pela redação das teses fixadas. Segundo, ao invés de implementar a análise individualizada, o IRDR veda absolutamente o cômputo em dobro nos casos de crimes sexuais, crimes contra a vida e crimes contra a integridade física. Enquanto a Corte Interamericana exigia uma análise individual e especializada, o Tribunal de Pernambuco estabeleceu um veto absoluto e genérico para esses casos.  
Terceiro, não bastasse a criação de um veto geral e abstrato, o Judiciário expandiu o rol taxativo estabelecido pela Corte Interamericana e inclui nas exceções ao cômputo em dobro os crimes hediondos e equiparados. Dentre esses, temos alguns crimes que não poderiam ser enquadrados nas exceções permitidas pela Corte Interamericana, como a falsificação de medicamentos e o tráfico de drogas. Para este último, considerando que, segundo informações prestadas pela própria administração penitenciária, há quase seis mil condenações ou acusações no Curado por crimes de tráfico de drogas (em relação a aproximadamente 6.500 internos), a limitação inventada pelo Judiciário brasileiro tem o potencial de tornar inócua a medida desencarceradora determinada pela Corte Interamericana. 
A decisão do TJPE vem após uma visita do Conselho Nacional de Justiça provocada pela existência e não implementação das medidas provisórias impostas pela Corte Interamericana. Após a visita, a ministra Maria Thereza de Assis Moura publicou decisão nos autos da correição extraordinária instaurado sobre o Curado afirmando ter constatado “falhas graves no dever de fiscalização dos estabelecimentos penais, negativa de prestação jurisdicional, descumprimento do prazo legal para julgamento de processos envolvendo presos provisórios e fortes indícios de violações dos deveres relativos à realização de audiência de custódia e à observância das resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em matéria criminal e de execução penal”. 
Na mesma decisão, o CNJ também fixou o <a href="https://www.cnj.jus.br/corregedoria-da-ao-tjpe-oito-meses-para-tirar-70-dos-presos-do-complexo-do-curado/">prazo de oito meses para que o TJPE reduza em 70% a população carcerária do Complexo do Curado</a>, vedando a transferência de seus internos para outras unidades já superlotadas. É neste contexto que vemos as recentes movimentações do <a href="http://www.tjpe.jus.br/-/tjpe-institui-grupo-especial-para-avaliar-situacao-carceraria-do-complexo-prisional-do-curado">TJPE </a>e <a href="https://www.mppe.mp.br/mppe/comunicacao/noticias/16761-complexo-do-curado-grupo-de-promotores-inicia-trabalho-voltado-a-acompanhar-resolucao-de-violacoes-de-direitos-nas-maiores-unidades-prisionais-de-pernambuco">MPPE </a>para fiscalizar o Complexo do Curado. 
Essas iniciativas são importantes, porém, não podem servir como argumento para que esses mesmos órgãos ignorem o cumprimento da determinação do cômputo em dobro pela Corte Interamericana. Na mesma correição extraordinária já citada, o CNJ indicou que é necessário apurar a responsabilidade dos juízes pelas condições de detenção no Curado, além da própria superlotação. A recusa em cumprir adequadamente a ordem internacional sem dúvida contribui para a permanência do quadro de superlotação no Complexo do Curado. 
A Justiça Global, uma das organizações envolvidas no litígio internacional do caso, acompanha de perto o julgamento do IRDR e os próximos passos a serem adotados pelos atores do sistema de justiça envolvidos na expectativa de que a decisão injusta e frontalmente contrária à ordem internacional dada pela Corte Interamericana seja revertida e que os agentes públicos responsáveis pelo atraso ou não implementação da decisão respondam pelos danos aos internos do Curado pela permanência acima do tempo. A medida é importante não apenas para as pessoas presas no Complexo do Curado, mas para o futuro do sistema carcerário brasileiro e da forma como o nosso sistema de justiça interage com a justiça internacional.

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JOTA

O caso do IRDR sobre o cômputo em dobro no Complexo do Curado (PE) 

Como usar o direito interno para descumprir decisões internacionais

O caso do IRDR sobre o cômputo em dobro no Complexo do Curado (PE) e o desrespeito à decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos