Vaza Jato

Corrupção: quem vai pagar o preço da mudança?

Quem violava o Estado de Direito era o conchavo espúrio entre políticos e empreiteiros, e não o MPF

15/08/2019|08:22
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Crédito: Pixabay

Quanto custa mudar uma cultura? Mandela perdeu trinta anos de liberdade em troca da superação do apartheid na África do Sul. Para que os negros americanos tivessem acesso aos direitos civis em igualdade de condições com os brancos, Martin Luther King pagou com a própria vida. O fim da escravidão no Brasil valeu a queda de um império.

Não são poucos os exemplos que ilustram a força reativa de sistemas decadentes que lutam pela própria perpetuação e o elevado preço que se cobra de quem os desafia em seu anacronismo.

Um olhar lançado pela história da humanidade é instrutivo e revelador de um padrão constante e inexorável: sempre que uma mudança profunda na base das relações sociais se anuncia, tem lugar um movimento violento, insidioso e obstinado em sentido contrário. Medo do novo, apego a tradições, interesses de grupos poderosos. Diversas e variadas são as razões que levam a sociedade a resistir ou a apoiar resistências pertinazes contra o novo que se apresenta.

Assim foi com a escravidão no Brasil. Abolir essa instituição abjeta demandou empenho contra resistências poderosas por quase 100 anos. Como nos dá notícia a socióloga Ângela Alonso1, os abolicionistas eram vistos e tachados pelo establishment do Século XIX como arruaceiros, desrespeitadores de leis e costumes, imprecações que, hoje, espantam e ferem a sensibilidade de qualquer pessoa moralmente saudável.

Como destaca a autora, o fato é que enquanto a maioria a viu como estado de coisas natural, a escravidão foi moralmente defensável e socialmente invisível. Para o escravo passar de coisa ou animal doméstico diluído na paisagem a pessoa escravizada e merecedora de ação política em seu favor teve de haver reviravolta nos esquemas de percepção do mundo social2.

A situação não parece ser tão diferente quando tratamos da corrupção no país. Em matéria de tradição, desde a fundação de nossa primeira Capital em 1549, a corrupção é um mal que segue firme no trato da coisa pública em nosso país. O sistema político, fundado no compadrio, na troca de favores, na apropriação da coisa pública, deitou raízes profundas na nossa cultura. Mudar essa realidade não seria um passeio agradável e gratuito no parque em uma manhã ensolarada de domingo.

Na linha de enfrentamento desse crônico problema, o Ministério Público Federal, por meio da chamada operação Lava Jato, em cinco anos de atividade tem números superlativos para mostrar à sociedade. Foram mais de 13 bilhões de reais devolvidos aos cofres públicos, políticos de alto coturno processados e condenados, empresários da fina-flor de nossa elite submetidos ao império da lei como qualquer cidadão comum. Efeitos da investigação que se espraiaram para uma dezena de países das Américas e da África. Uma verdadeira revolução virtuosa em nossos costumes judiciários.

Mas muito mais do que processar e prender figuras antes inatingíveis pela lei, o sistema de Justiça criminal deixou desnuda a forma espúria de fazer política no Brasil. O Ministério Público Federal traduziu em provas robustas, pela primeira vez em nossa história, algo que todos intuíam: o Estado brasileiro foi privatizado, transformado em um clube particular para desfrute de poucos privilegiados, mas custeado por todos os brasileiros.

Essa realidade palpável e comprovada empiricamente não foi forjada pelo MPF, tampouco pelo Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba. Ao contrário do que se propaga a plenos pulmões nos dias atuas, não foram as instituições judiciárias que criminalizaram a política; foram os políticos corruptos, sem escrúpulos e gananciosos, que fraudaram o espírito democrático talhado na Constituição de 1988; foram eles mesmos que transformaram política partidária num balcão de negócios rentável e seguro para criminosos dos mais variados matizes. Por óbvio que com essa constatação não se está a condenar indiscriminadamente a Política, expressão maior do engenho humano que tornou possível a convivência pacífica de interesses contrapostos e viabilizou o próprio sentido de civilização. O problema, assim, não está na Política em si, mas no seu desvirtuamento.

Mas, na lógica dos beneficiários dessa corruptela, o interesse está em confundir conceitos, em lançar desinformação e meias-verdades. Para esse grupo, não é conveniente mudar nada, ainda que seja para melhor. Ao fenômeno Lava Jato, então, era preciso reagir vigorosamente e atacar aqueles que ousaram tentar a mudança.

O discurso repetido, ad nauseam, de supostos excessos do Ministério Público, e propagado por boa parte da imprensa, não foi suficiente para inculcar na população brasileira a ideia de que o mal do país, de que o entrave para o crescimento econômico e a estabilidade seria a gana e o entusiasmo de procuradores no combate à corrupção. Ficou claro para a população que quem violava o Estado de Direito era o conchavo espúrio entre políticos e empreiteiros, e não o MPF. Enquanto o sistema corrompido falava e mentia à nossa razão, os fatos gritavam vigorosamente aos nossos sentidos.

Nessa toada, em um último e desesperado golpe contra a mudança, membros do Ministério Público e o Ministro da Justiça foram vítimas de uma invasão criminosa e covarde em seus aparelhos celulares, com furto de dados e informações sigilosas. É muito provável que essa ação delituosa tenha sido patrocinada por pessoas interessadas na desqualificação do trabalho de combate à corrupção — as investigações deverão nos dizer —, mas o certo é que, apesar do ataque vil, até o momento, o que se revelou está muito longe de secundar as teses maliciosas de uso político das investigações para prejudicar ou beneficiar quem quer que seja.

Mesmo após o ato ousado de um grupo de assaltantes digitais – sem que se saiba até o momento a serviço de quem –, não se logrou trazer a público nenhuma evidência de que o Ministério Público, por si ou conluiado com o Juízo, tenha forjado provas ou direcionado investigações com finalidades político-eleitorais. Isso não é pouca coisa se considerarmos a brutalidade da investida sofrida pela Lava Jato, bem como por outros membros do Ministério Público e do Poder Judiciário vinculados à investigação.

Afora o sensacionalismo em torno de mensagens trocadas entre juiz e procurador, cuja veracidade e integridade não se pode sequer comprovar, nada, absolutamente nada, do que se divulgou coloca em xeque o trabalho sério de combate à corrupção realizado pelo MPF. O esforço para macular as investigações têm sido grande. Na impossibilidade de negar fatos provados, o caminho que restou foi desqualificar os investigadores e os magistrados que participaram do caso, plantando dúvidas sobre a legitimidade de seus trabalhos e a idoneidade de suas motivações, por meio de atos de verdadeiro terrorismo digital.

Com isso, não se está a afirmar que não foram cometidos erros pelo MPF e pelo Judiciário nesse processo, nem se quer evitar a tão necessária autocrítica em relação à conduta das instituições em feito de tamanha complexidade e envergadura. Nenhuma obra humana é perfeita, porque somos essencialmente falíveis. A sabedoria consiste em reconhecer essa falibilidade ontológica da nossa natureza e das nossas instituições, por consequência, mas também em aceitar a possibilidade de refazer caminhos e de aprender com as próprias falhas.

A questão relevante, no ponto, não é tanto se erros foram cometidos, mas a boa-fé dos procuradores e juízes, além da capacidade de autocensura e de correção de rumos que os anima. Não se pode jamais esquecer que os agentes públicos são antes de tudo homens e mulheres forjados do mesmo barro que todas as demais pessoas, e não super-heróis imunes às contingências humanas. Julgá-los fora dessa dimensão da realidade é injusto e diz mais sobre nossa própria miséria moral do que sobre a gravidade dos erros que eventualmente tenham sido por eles cometidos.

O fato incontornável em todo esse processo, contudo, é que o Brasil precisa e quer dar um salto qualitativo em sua democracia. A sociedade já manifestou por diversas formas seu descontentamento com o sistema político que hoje nos serve. Estamos em um processo evidente de mudanças profundas de práticas há muito enraizadas na nossa vida social e política, o que traz embutido um movimento renhido de reação e conservação do status quo.

Em outros tempos, para superar essa barreira, seria necessário oferendas de mártires no altar do Deus da Mudança. No passado, muitos morreram, outros perderam a liberdade e incontáveis tiveram a dignidade subtraída, tudo para que o obscurantismo cedesse e novas ideias florescessem em benefício da coletividade, permitindo assim que o progresso tivesse seu curso desobstruído.

Depois de revelar o maior esquema de corrupção e desvio de recursos públicos de que se tem notícia no mundo, não é crível que a punição se volte exatamente contra aqueles órgãos responsáveis pela mais bem sucedida investigação de combate à corrupção até hoje realizada. Não podemos normalizar e aceitar que o revanchismo, a ideologia e os interesses subalternos persigam e emasculem o MPF, o Poder Judiciário, a Polícia Federal, a Receita Federal e o COAF, impedindo-os de exercerem legitimamente suas atribuições constitucionais, a pretexto do falacioso argumento de defesa do Estado de Direito. Erros judiciais, em um verdadeiro Estado de Direito, são corrigidos por recursos previstos na lei processual e de acordo com a Constituição, não por canetadas arbitrárias de excelências, por mais graduadas e ilustradas que sejam elas.

Felizmente, vivemos em outra era. Estamos no mundo da informação, interconectados e cada vez mais próximos do conhecimento. Os exemplos da história estão ao alcance de todos. A ignorância, assim, não justifica a reincidência nos mesmos erros de outrora. Não precisamos mais, como sociedade, ofertar o sangue real ou moral de homens, mulheres ou de instituições em troca do nosso progresso.

Sinto não poder servir à emancipação de outra forma senão renunciando a tudo que a escravidão atualmente oferece aos que transigem com ela: as posições políticas, a estima social, o respeito público, disse Joaquim Nabuco aos seus companheiros de causa, quando deixou o Brasil no início dos anos 80 do século XIX, após ser alijado da política nacional em acachapante derrota dos liberais.

As palavras do ilustre pernambucano ecoam através de mais de cem anos de história e chega até os dias de hoje como um aviso soturno de um passado distante, mas paradoxalmente atual: nem sempre a justiça e o progresso podem ser encontrados com os pretensos guardiões das leis. É preciso, portanto, muito cuidado com os falsos profetas do Estado de Direito: é com eles que, iludidos, podemos nos deparar, muitas vezes, com a injustiça e com o atraso.

O Brasil, apesar dos percalços, certamente saberá conduzir seu processo de transformação social e não permitirá que aqueles que ousaram mudar pereçam ou paguem o elevado preço de contrariar interesses mesquinhos e egoístas de um mundo que já passou, mas que teima em não nos deixar seguir.

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1 ALONSO, Angela. Flores, Votos e Balas: o movimento abolicionista brasileiro. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 15.

Cf. ALONSO, Angela. Obra citada, p. 91-92.

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