Danilo Dias

Ignaz Philipp Semmelweis nasceu no início do século XVIII sob os auspícios do então imponente Império Austríaco. Formou-se em medicina e ainda jovem mudou-se para Viena, onde trabalhou como médico do departamento de obstetrícia da Universidade de Viena.
Naquela época, a febre puerperal assolava a Europa. No departamento em que Ignaz trabalhava, 1 em cada 6 mulheres morriam em decorrência da infecção puerperal, no processo de parto. O jovem médico não se conformava com o fato, e encontrar uma solução para o problema tornou-se a sua obsessão. A morte de um colega de departamento por febre puerperal, após cortar-se com uma faca ao realizar autópsia em uma mulher que morrera do mesmo mal, provocou o insight desejado. Era óbvio que os médicos transmitiam a doença às pacientes. A tese era simples: os médicos do departamento realizavam autópsias e, sem higienizar as mãos, promoviam o trabalho de parto. Com isso, matéria putrefata contaminava as parturientes e provocava as morte destas mulheres. O fato foi empiricamente demonstrado por duas evidências: a primeira, o índice de morte pela mesma doença entre as mulheres que realizavam seus partos com enfermeiras era de menos de 3%, enquanto entre os médicos chegava a 20%; a segunda, após instituir em sua enfermaria o hábito de lavar e desinfetar as mãos, Semmelweis obteve uma queda imediata de 50% na taxa de mortandade das pacientes pela enfermidade puerperal.
O jovem médico húngaro tinha tudo para brilhar como um expoente de sua época, mas isso não aconteceu. Ao contrário, com suas ideias inovadoras, feriu imperdoavelmente a vaidade do establishment da medicina de então. Como aceitar que um jovem da Hungria tivesse a competência e a pachorra de realizar descoberta de tamanha relevância? E o que dizer de acusar os colegas de serem responsáveis por mortes de suas pacientes, quando estas lhes deviam a vida? Por óbvio, a tese de Semmelweis angariou muitos aliados, especialmente entre os jovens médicos. Mas encontrou ainda maiores obstáculos e perseguição entre acadêmicos de renome do seu tempo. O temperamento mercurial e a incapacidade de ser claro na exposição de sua tese afastou seus aliados de primeira hora e fortaleceu os seus inimigos. Ignaz Semmelweis morreu aos 47 anos em descrédito e abandonado por todos.
O desfecho da história do médico húngaro parece-nos hoje chocante. É óbvio que ele estava certo. A evolução da medicina comprovou cabalmente a sua tese. Era preciso lavar as mãos. Mas antes os mestres contemporâneos de Ignaz precisavam mesmo era limpar a alma dos ressentimentos, da vaidade e da arrogância.
Saltamos quase duzentos anos na história, cruzamos a Europa de leste a oeste, atravessamos o Atlântico, descemos até o Hemisfério Sul. O ano é 2016. Estamos no Brasil. O paciente é o próprio país. Estamos infectados pela matéria pútrida da corrupção que faz a sociedade arder em febre letal. Já temos o diagnóstico. Os homens de boa-fé concordam que, mesmo sendo a sétima economia do mundo, o peso da doença infecciosa verga sobre os ombros dos cidadãos e se torna quase insuportável. É preciso agir.
Mas, por outro lado, como aceitar que jovens – ou não tão jovens assim – procuradores, juntamente com o aparato de persecução penal, desmascarem o estado avançado de decomposição do nosso sistema político? A conclusão inevitável é: aqueles que deveriam curar as chagas do povo são a causa primeira da doença que corrompe e destrói o tecido social. Um paradoxo de difícil solução.
Estamos diante de um desafio de proporções consideráveis. A corrupção endêmica é uma fato empiricamente comprovado no país, como a morte por febre puerperal também o era na Viena de antanho. Temos o prognóstico certo e preciso para a moléstia. Há também um arsenal de fármacos para a sua cura. Enfrentamos, no entanto, uma artilharia pesada contra as propostas que buscam combater o mal. É verdade que os inimigos da mudança não podem ser personificados: surgem da acomodação do establishment político e acadêmico; são filhos diletos da desconfiança no novo; brotam ainda de interesses variados, inconfessáveis e dificilmente catalogáveis.
A Lei da Ficha limpa, por exemplo, uma das medidas de assepsia da nossa política partidária, mal começou a produzir os seus efeitos benéficos e já foi tolhida pelo STF em sua potencialidade, com a exigência de que as câmaras de vereadores aprovem os pareceres técnicos dos tribunais de contas para que a rejeição das contas dos prefeitos sirva como causa de inelegibilidade. Sob outro ângulo, já é possível ouvir ao longe farpas contra o uso “abusivo” da colaboração premiada, embora tenha sido esse instituto o responsável por revelar o maior e mais extenso caso de corrupção de que se tem notícia no Brasil.
Mas não é só. Lançadas pelo Ministério Público Federal na esteira da indignação social provocada pela Lava Jato e formalmente apoiadas por mais de 2 milhões de pessoas, as 10 Medidas começam a enfrentar resistências e obstáculos em seu caminho. Muito embora todas as propostas apresentadas encontrem similar em democracias consolidadas e com índice de corrupção muito menores do que o nosso, arautos do direito fundamental à impunidade assacam já sem pejo aleivosias e leviandades contra a iniciativa.
Não pretendemos nos arrogar a condição de medida das coisas. Podemos estar errados sim. A Lei da Ficha Limpa, a colaboração premiada ou as 10 Medidas podem ser um equívoco. Certo. Mas se a solução teórica para os problemas aqui postos não está nessas propostas, pois que se apresentem soluções alternativas. É preciso lembrar que a corrupção é um problema prático, real e mata milhões de pessoas.
Ignaz tinha os seus pecadilhos. O mais importante, porém, é que a sua descoberta salvava vidas. Olhando sua história em perspectiva é fácil perceber como sua tese se agiganta diante de seus defeitos. O médico húngaro não tinha, é verdade, a solução definitiva da medicina, mas tinha uma proposta que representava uma escolha pela vida de muitas mulheres e de seus filhos.
De nosso turno, sentimo-nos diante do enigma decifrado da corrupção. As soluções estão postas à mesa. Resta-nos apenas escolher entre a mesquinhez e a grandeza, entre o ressentimento e a generosidade, entre o cinismo e a fé, entre a morte e a vida. É hora de mudar. A história saberá nos fazer justiça.

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Corrupção: entre o mal e a cura

Pelo MP