Flávio Ramos

Viviane Tozzi Moro

Muito se discute, no Judiciário, se os fabricantes e fornecedores teriam o dever de indenizar seus consumidores quando se encontram corpos estranhos em alimentos e bebidas, sem a necessidade de se comprovar efetivo dano ou mesmo a ingestão do produto. É dizer, discute-se se o mero potencial de causar danos à saúde e ao bem-estar do consumidor já configuraria, ou não, o dever de indenizar.
É de se imaginar o impacto que o tema traz para a cadeia de produção e fornecimento no país: de acordo com o Código de Defesa do Consumidor (“CDC”), todos que participam do processo de colocar o produto no mercado (desde o fabricante, os fornecedores intermediários, até o comerciante) são responsáveis solidariamente pelos vícios e defeitos que um produto apresente.
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Para grandes fabricantes ou fornecedores, esse impacto é relevante: marcas consolidadas no mercado acabam sendo demandadas judicialmente por vícios causados muitas vezes por fatos não relacionados à fabricação, mas à má conservação no transporte ou o mal armazenamento no estabelecimento comercial que atende ao consumidor. Podem ser causados até mesmo pelos próprios consumidores, que deixam de seguir as orientações de uso ou conservação do alimento ou bebida.
A judicialização de casos como esses – envolvendo corpos estranhos no interior de alimentos e bebidas – foi, de alguma forma, impulsionada pelo debate trazido pelo CDC, que modificou pressupostos do direito processual e material aplicáveis às relações de consumo. Além de proteger o Consumidor na relação processual, o CDC trouxe distinções acerca da responsabilidade civil e do dever de indenizar dos fornecedores e fabricantes pelos vícios e defeitos de produtos e serviços.
É sobretudo nesse ponto – nas diferenças entre o conceito e alcance dos termos “vício” e “defeito” – que estão as principais discussões da jurisprudência que trata do potencial dever de indenizar quando um consumidor reclama de corpos estranhos em alimentos e bebidas.
Os vícios são características de qualidade ou quantidade capazes de tornar os produtos impróprios ou inadequados ao consumo ou lhes diminuam o valor (art. 18). São, assim, problemas inerentes apenas ao produto. Por outro lado, os defeitos caracterizam-se pelo risco à segurança e à saúde do consumidor (art. 12), é dizer, trata o vício de um problema capaz de atingir o consumidor (o dano não é inerente apenas ao produto, mas atinge o consumidor na esfera moral e/ou material).
Em recente julgamento sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi (Recurso Especial nº 1.828.026/SP, julgado em setembro/2019), a 3ª Turma do STJ, por unanimidade, entendeu que “A aquisição de produto de gênero alimentício contendo em seu interior corpo estranho, expondo o consumidor a risco concreto de lesão à sua saúde e segurança, ainda que não ocorra a ingestão de seu conteúdo, dá direito à compensação por dano moral (...).” Para a 3ª Turma, portanto, haverá dano moral (e, portanto, dever de indenizar) ainda que o consumidor não ingira o produto com o suposto corpo estranho.
Ao exarar o voto, a Ministra Nancy Andrighi invoca elementos da common law e cria uma subcategoria de defeito, que, inusitadamente, denomina de “vício de qualidade por insegurança”, associando conceitos aparentemente distintos de vício e defeito.
Vale dizer, no entanto, que casos semelhantes (produtos com prazos de validade vencidos, alterados, falsificados, corrompidos, nocivos à vida ou à saúde etc.) são considerados, pelo CDC, produtos impróprios ao uso e consumo, e são classificados pela lei como vícios, não defeitos. Justamente por isso, nesses casos, a mera ocorrência de vício não gera um automático dever de indenizar. Qualquer repercussão no patrimônio jurídico do consumidor (danos extras, morais e/ou materiais) deve ser demonstrada. É justamente isso que a 3ª Turma do STJ tentou superar para concluir que o dano moral seria automático, independentemente da ingestão do alimento ou bebida com suposto corpo estranho.
Em maio deste ano, a 4ª Turma do STJ se posicionou de forma diferente no Recurso Especial nº 1.765.845/SP. Concluiu pela ausência do dever de indenizar em ação na qual o consumidor encontrou corpo estranho em embalagem de refrigerante, mas não ingeriu o produto. Para o Ministro Raul Araújo “é necessário que haja a ingestão do produto considerado impróprio para o consumo ou, ao menos, que o produto seja levado à boca, para que fique caracterizada situação de desprezo à saúde pública e, assim, o dano extrapatrimonial.”
O Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) tem se debruçado sobre o tema, mas ainda não há consenso. A imprevisibilidade dos critérios adotados no tema, em especial aqueles relacionados ao dever de indenizar supostos danos morais, acaba estimulando a judicialização, a indústria do dano moral e a interposição de recursos aos tribunais superiores. Traz, por conseguinte, impacto significativo no setor de alimentos e bebidas. O debate segue aberto e a adequada condução de casos judiciais nesse tema será fundamental para a uniformização da jurisprudência, como impõe o CPC (art. 926).

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JOTA

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