Pergunte ao Professor

Coronavírus: quais os impactos jurídicos nas relações trabalhistas?

Confira 6 questões sobre o tema analisadas pelo professor Ricardo Calcini

Foto: Alex Pazuello/Semcom

É com muita alegria que hoje se comemora o primeiro ano do projeto “Dúvida Trabalhista? Pergunte ao Professor!”, dedicado a responder às perguntas dos leitores do JOTA, sob a coordenação acadêmica do professor de Direito do Trabalho e mestre nas relações trabalhistas e sindicais, Dr. Ricardo Calcini.  

O projeto tem periodicidade quinzenal, cujas publicações são veiculadas sempre às sextas-feiras. E a você leitor que deseja ter acesso completo às dúvidas respondidas até aqui pelos professores, basta acessar aqui.

E neste episódio especial de nº 27 da série, a dúvida a ser respondida não poderia ser outra que não debater as repercussões trabalhistas do COVID-19:

Pergunta ► Quais os impactos jurídicos nas relações trabalhistas do coronavírus?

Resposta ► Com a palavra, o próprio Professor Ricardo Calcini.[1]

Antes de mais nada, importante registrar que este texto aqui reproduzido não tem a pretensão de esgotar a matéria, na medida em que muitos são os desdobramentos provocados pelo novo coronavírus nas relações de trabalho. A despeito disso, procurou-se compilar o maior número de dúvidas acerca da controvérsia, até para que o artigo sirva de orientação para milhares de advogados, profissionais de DP e RH, contadores, além dos departamentos jurídicos das empresas e seus respectivos colaboradores, que estão lidando com a atual problemática em todo o Brasil.

Dito isso, o primeiro ponto a ser destacado é o Legislativo. Até o presente momento, frise-se, a única norma infraconstitucional que trata acerca do coronavírus é a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. E, no caso, o §3º do artigo 3º da legislação assevera que “será considerado falta justificada ao serviço público ou à atividade laboral privada o período de ausência decorrente das medidas previstas neste artigo” (g.n.).

Aqui temos, portanto, uma hipótese de interrupção do contrato de trabalho, na qual o funcionário continuará a receber normalmente seu salário, cujo período de afastamento será computado inclusive para todos os efeitos legais, quer dizer, para fins de contagem do tempo de serviço, cálculo da gratificação natalina e das férias, além dos depósitos do FGTS devidos na conta vinculada do empregado.

Entrementes, ressalvada a especificidade da lei acima mencionada, todas as demais controvérsias serão esclarecidas com base nos preceitos da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, como também na legislação previdenciária, as quais não sofreram nenhuma alteração por força de um nova lei ordinária aprovada pelo Congresso Nacional, ou de medida provisória editada pelo presidente da República.

Com efeito, segundo aspecto relevante é que, por força da legislação previdenciária, regra geral a empresa arcará com o pagamento dos salários até os primeiros 15 (quinze) dias e, após, sendo justificada a prorrogação do prazo, tal obrigação passa ser do INSS, mediante o pagamento de auxílio-doença comum, o qual impede que o contrato de trabalho seja rescindido enquanto perdurar a fruição do benefício.

Aqui não há se falar em doença de natureza ocupacional, não sendo necessária a emissão de Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT) ou recolhimento do FGTS, não se cogitando, igualmente, de estabilidade provisória no emprego pelo prazo de 1 (um) anos após a alta previdenciária. Estar-se-á, portanto, após o 15º dia, diante nítida hipótese de suspensão contratual, e não de interrupção do pacto laborativo.

Terceiro cenário a ser considerado é o incentivo ao home office e/ou ao teletrabalho pelos funcionários que assim conseguirem desempenhar suas atividades laborativas em casa, desde que essa mudança seja de iniciativa da empresa, uma vez que não é direito potestativo do emprego exigir tal condição. Aliás, a adoção do sistema home office não exige maiores formalidades, bastando uma mera previsão em regulamento empresarial ou política interna a ser adotada pela empresa.

Os funcionários continuarão a deter idênticos direitos trabalhistas como se estivessem executando seus afazeres nas dependências da companhia, inclusive com o recebimento de horas extras e adicional noturno, se for o caso.

Hipótese distinta, contudo, não ocorrerá com o teletrabalho, o qual passou a ser regulamentado pela Lei da Reforma Trabalhista, em que o empregado não estará submetido ao regime da jornada de trabalho, inviabilizando o recebimento de horas extraordinárias.

Relevante ponderação é que, pela Lei nº 13.467/2017, o sistema de teletrabalho, para sua validade, exige o cumprimento de maiores formalidades legais, inclusive mediante a celebração de um aditivo contratual entre patrão e empregado. Nele serão obrigatórias, dentre outras, estipulações contratuais concernentes às condições em que o serviço será executado; às atividades que serão realizadas; à responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho remoto; ao reembolso de despesas arcadas pelo empregado; ao salário “in natura”; como também ao cumprimento das normas de segurança e medicina do trabalho.

Por certo, é natural que muitas empresas, doravante, optem justamente pelo sistema do teletrabalho, ainda que seja ele dotado de maior rigor burocrático, porquanto aqui a legislação desobriga, em tese, o empregador do pagamento de horas extras. Contudo, essa assertiva deve ser vista com bastante cautela, até porque o controle remoto imposto ao colaborador pode justificar o pagamento de horas suplementares.

De outro norte, se o serviço não puder ser executado à distância, como ocorre, por exemplo, com a indústria, alternativas devem ser adotadas, sendo a mais comum a concessão de férias individuais e coletivas. Aqui também pode ser levado em consideração o chamado “lay-off”, desde que previsto nos instrumentos normativos (acordo ou convenção coletiva), quando o funcionário se afasta para participar de cursos ou programas de qualificação profissional oferecidos pelo empregador.

A própria redução da jornada de trabalho, mediante o pagamento proporcional dos salários, é também uma saída factível de ser construída, como medida a evitar a rescisão dos contratos de trabalho, ou, no pior cenário, o fechamento do próprio estabelecimento empresarial. Nesse diapasão, a legalidade do procedimento passa pela chancela do sindicato profissional, sendo o part time uma prática existente na legislação celetista há anos e apropriada exatamente nesses momentos de crises.

Lado outro, outras licenças remuneradas são igualmente bem-vindas, até porque muitas delas são oriundas de atos de mera liberdade do empregador, ou, ainda, estão previstas na norma celetária e nos instrumentos normativos de trabalho. O cuidado maior, entretanto, ficará com a suspensão do contrato sem vencimentos, pois, ultrapassado o período de 30 (trinta) dias, a rescisão indireta do contrato de trabalho por falta grave praticada pelo empregador é medida que se impõe.

Quarta questão bastante preocupante é com os suspeitos do COVID-19, mas sem confirmação oficial, o que, atualmente, representa a maioria dos casos.

Aqui não há que se impor o denominado “isolamento”, que está adstrito aos colaboradores doentes ou contaminados, e sim a conhecida “quarentena”, que se relaciona à restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus.

E justamente neste ponto é que reside uma das dúvidas mais recorrentes dos leitores, afinal, a empresa pode obrigar o empregado a se submeter ao exame diagnóstico, ou, ainda, exigir a aferição de temperatura, sem prejuízo, claro, da adoção de medidas profiláticas, a exemplo de higienizar as mãos com álcool gel antes de entrar no ambiente de trabalho?

É certo que algumas matérias jornalísticas já foram veiculadas na imprensa pela negativa de tal procedimento de parte das empresas. Sucede, porém, que a Lei nº 13.979/2020 é bastante clara ao estabelecer, por ordem oficial, a determinação de realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas.

Logo, o direito à privacidade e intimidade do trabalhador, conquanto tenha assento constitucional, cede lugar ao interesse coletivo, devendo, em tal situação excepcional, ser relativizado.

De mais a mais, a consequência jurídica pelo não cumprimento das recomendações sanitárias, inclusive aquelas referendadas pela empresa e que já estejam sendo adotadas pelas autoridades de saúde, implica na penalização do colaborador mediante advertências e suspensões, podendo chegar, no último caso ou a depender da gravidade do ato, em rescisão do contrato de trabalho por justa causa.

As viagens de trabalho, como quinto elemento a ser enfatizado, devem ser evitadas, sobretudo para o exterior. É claro que a empresa não pode interferir na vida particular do seu empregado caso ele deseje viajar aos finais de semana ou em gozo de férias. Porém, pode imiscuir-se naquelas oriundas de razões profissionais.

Agora, pode acontecer de a companhia pretender impor ao funcionário que ele faça a viagem quando o cargo assim exigir. Nessa situação, por óbvio, não há uma resposta correta, até porque isso dependerá da casuística do destino da viagem (nacional ou internacional), e, mais, se o local já possuí ou não muitos casos confirmados de COVID-19, a ponto de não ser possível embarcar ou desembarcar.

A propósito, é de bom alvitre relembrar que, segundo a lei previdenciária, não é considerada como de natureza ocupacional a doença endêmica adquirida por funcionário habitante de região em que ela se desenvolva. Em sentido contrário, se a contaminação do colaborador ocorreu porque a empresa o obrigou a viajar, aí se estará diante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho, ocasião em que se reconhecerá o COVID-19 como acidente do trabalho.

E a partir do reconhecimento do acidente do trabalho e, por conseguinte, da concessão de benefício previdenciário de natureza acidentária, importantes consequências legais repercutirão no pacto laboral do funcionário.

Exemplo disso será a manutenção do contrato laboral pelo prazo mínimo de 12 (doze) meses após a cessação do benefício; a obrigação do empregador em depositar o FGTS durante o período do auxílio-doença acidentário; o eventual impacto na estatística da empresa para fins de majoração da contribuição do SAT/RAT em até 100%; responsabilização civil com indenizações reparatórias por danos morais e materiais (danos emergentes, lucros cessantes e pensionamento); além, claro, do ajuizamento de ações regressivas em nome da Fazenda Nacional para a restituição dos valores dos benefícios previdenciários pagos pelo INSS por culpa da empresa.

Em sexto lugar não se poderia olvidar dos equipamentos de proteção individual e coletivo de trabalho, até porque a manutenção de um ambiente laboral sadio e salubre é obrigação da empresa. Nesse sentido, deve ela fornecer os materiais de proteção aos funcionários, seguindo os protocolos das autoridades sanitárias. O comportamento omissivo da empresa pode gerar sua responsabilização para efeitos civis e trabalhistas, podendo ensejar pleitos de rescisões indiretas dos pactos laborais, sem prejuízo de indenizações reparatórias, mormente se comprovado que o colaborador contraiu o COVID-19 em seu ambiente de trabalho.

A esse respeito, portanto, o empregador, de acordo com a dinâmica de sua atividade empresarial, deverá adotar as medidas que hoje estão sendo divulgadas pela Organização Mundial da Saúde, tudo a promover a redução do risco do contágio do COVID-19 nos ambientes laborais. Algumas dessas orientações são: (i) superfícies como mesas e telefones devem ser higienizadas com desinfetante frequentemente; (ii) empresas devem orientar seus funcionários a lavarem com frequência suas mãos e oferecer sabonete nos banheiros; (iii) prover máscaras e papel; (iv) funcionários que tenham sintomas, mesmo que leves, devem ficar em casa.

Aliás, será natural que muitos empregados passem a faltar ao serviço a cada dia em que coronavírus se espalhar em nosso país. E, claro, as hipóteses para que isso aconteça serão as mais diversas, passando de meras suspeitas de contágio do vírus, até casos de pessoas efetivamente contaminadas. A problemática fica ainda pior se levado em consideração o fato de que os suspeitos e as eventuais pessoas contaminadas estejam frequentando o mesmo ambiente laboral daquele funcionário que não deseja ali estar por uma questão de saúde pública.

Dessarte, se as faltas serão justificadas, não há espaço para o desconto em folha de pagamento, sendo preservados todos os direitos trabalhistas do colaborador, como férias com 1/3, 13º salário, depósitos do FGTS e o descanso semanal remunerado.

Em sentido contrário, se não há hipótese a justificar a ausência ao posto de trabalho, a empresa não é obrigada a abonar as faltas, sendo uma saída factível o desconto do dia no banco de horas coletivo celebrado com o sindicato, ou, se for o caso, no banco de horas individual celebrado diretamente com o funcionário.

Em arremate, já é esperado que daqui a algumas semanas ocorra a paralisação temporária de certos estabelecimentos empresariais, como escolas, shoppings, teatros, bares, restaurantes e etc, por ato de autoridade municipal, estadual ou federal. E isso trará consequências ainda mais drásticas nas relações trabalhistas entre empresas e empregados, afinal, em caso de filhos menores que estejam em casa, os pais poderão de ausentar justificadamente de seus empregos?

Ainda, quem arcará com os salários dos trabalhadores, ou, pior, em caso de fechamento da empresa, quem ficará responsável pelo pagamento da indenização devida por ocasião da rescisão contratual? Trata-se de caso de força maior a justificar, por exemplo, o pagamento pela metade da multa de 40% do FGTS?

 


[1] Coordenador Acadêmico do Projeto Dúvida Trabalhista? Pergunte ao Processor!” organizado pelo Portal Jurídico JOTA. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC/SP. Professor de Direito do Trabalho em Cursos Jurídicos e de Pós-Graduação. Instrutor responsável pelos eventos corporativos em nome de RICARDO CALCINI | CURSOS E TREINAMENTOS, empresa especializada na área jurídica trabalhista, com foco nas companhias, escritórios de advocacia e entidades de classe. Palestrante, escritor e autor de obras e artigos jurídicos. Contatos: [email protected] (e-mail) | www.ricardocalcini.com (site).