Covid-19

Coronavírus e medicamentos off label

Análise dos desafios regulatórios e princípio da precaução

Crédito: Pixabay

A corrida pela cura do novo COVID-19 tem impulsionado pesquisas científicas ao redor do mundo e exigido atuação estatal em tempo recorde. No Brasil, recentemente, o Ministério da Saúde emitiu Nota Informativa nº 5/2020 DAF/SCTIE/MS comunicando que disponibilizará para uso, a critério médico, a Cloroquina e  Hidroxicloroquina, no tratamento de pacientes graves do coronavírus.

Por outro lado, em Nota técnica[1], a Anvisa esclareceu que: (i) esses medicamentos são registrados pela Agência para o tratamento de outras doenças; (ii) apesar de promissores, não existem estudos conclusivos que comprovam a eficácia desses medicamentos para o tratamento da Covid-19.

Portanto, não há recomendação da Anvisa, no momento, para a sua utilização em pacientes infectados ou mesmo como forma de prevenção à contaminação pelo novo coronavírus; e (iii) a automedicação pode representar um grave risco à saúde da população. Qual a lógica, porém, que está por trás desta flexibilização regulatória do Ministério da Saúde?

A movimentação ocorreu após pronunciamento do Presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), em rede social, sinalizar a mobilização de órgãos médicos e sanitários para o uso do medicamento no tratamento do novo Coronavírus[2]. Evidências pré clínicas apontam que o medicamento, já utilizado há mais de 30 anos no tratamento de diversas doenças como lúpus, malária e artrite reumatoide, tem tido resultados relevantes no tratamento da COVID-19, o que, contudo, não significa que a sua eficácia ou segurança tenham sido comprovadas.

No Brasil, a competência para o registro de medicamentos é da Anvisa, entidade autárquica fundada através da Lei nº 9.782/1999, para a descentralização técnica da fiscalização, dentre outros, da distribuição de substâncias químicas. A regulação promovida pela agência fundamenta-se na obrigação estatal de normatizar regras sanitárias na sociedade. O procedimento de aprovação dos medicamentos envolve análise ponderada que visa atestar sua qualidade, eficácia, segurança e custo-efetividade da tecnologia, fundamental para a tutela do direito à saúde de toda a coletividade pelo Poder Público.

A despeito deste fato, no caso da Cloroquina e da Hidroxicloroquina, já existe aprovação da Anvisa para o uso em outras indicações, sendo irrelevante a sistemática acima referida. Portanto, não estamos diante de um medicamento desconhecido e o seu uso fora das hipóteses indicadas é chamado pela comunidade científica e jurídica como off label.

O uso off label é, por definição, não autorizado pela Anvisa, o que, no entanto, não implica que seja incorreto, pois essa classificação pode variar temporalmente, dada possibilidade de novo protocolo clínico vir a ser aprovado posteriormente.

Nesse caso, em âmbito federal, cabe à Comissão Nacional de Incorporação de Novas Tecnologias (CONITEC) no Sistema Único de Saúde (SUS) assessorar o Ministério da Saúde na alteração da diretriz terapêutica, que procede mediante instauração de processo administrativo. Para tanto, é imprescindível o prévio registro do medicamento na Anvisa, como é o caso da Cloroquina e Hidroxicloroquina.

Frisa-se que a prescrição de medicamentos off label é excepcional e controlada casuisticamente pelo médico responsável, que pode, inclusive, ser responsabilizado por erro. Entretanto, tendo em vista que no caso do Coronavírus estamos diante de grave problema de saúde pública que possivelmente atingirá milhões de brasileiros, como o Estado, então, poderá controlar essa excepcionalidade? A resposta está longe de ser clara, mas cumpre lembrar que a atividade de vigilância sanitária pelo Estado pauta-se primordialmente no princípio da precaução, com fundamento no direito direito à segurança (CF/1988, art. 5º, caput).

Baseando-se nisso, o Supremo Tribunal Federal suspendeu Lei que autorizava a distribuição da fosfoetanolamina, conhecida como “pílula do câncer”, sem autorização do órgão sanitário competente. Pelo caso se tratar de medicamento não testado, ao julgar a medida liminar da ADI 5501, o ministro Luís Roberto Barroso entendeu que “em tema de tamanha relevância, que envolve pessoas fragilizadas pela doença e com grande ânsia para obter a cura, não há espaço para especulações. Diante da ausência de informações e conhecimentos científicos acerca de eventuais efeitos adversos de uma substância, a solução nunca deverá ser a liberação para consumo”.

No caso, apesar de se tratar de medicamento que já possui autorização da Anvisa, ainda há controvérsias científicas sobre a eficácia para o tratamento de pacientes da COVID-19. A propósito, o Conselho Nacional de Justiça divulgou estudo visando orientar a atuação de magistrados no caso de requerimentos judiciais. A conclusão do estudo foi que “que a eficácia e a segurança da hidroxicloroquina e da cloroquina em pacientes com COVID-19 é INCERTA e seu uso de rotina para esta situação NÃO pode ser recomendado até que os resultados dos estudos em andamento possam avaliar seus efeitos de modo apropriado.”[3]

Fato é que a avaliação de efeitos de certo medicamento é longa e, no caso do Coronavírus, a corrida contra o tempo é um problema a ser considerado. Contudo, a decisão do Ministério da Saúde pela disponibilização da Cloroquina e Hidroxicloroquina no tratamento de pacientes graves do coronavírus, ao deixar de observar o processo de alteração de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas no SUS, regulado pela Lei nº 8.080/90, acende o alerta para os limites do Direito.

Afinal, mesmo em contexto de excepcionalidade, é preciso garantir a observância aos institutos e procedimentos legais, sob o risco de abertura a um perigoso precedente. Em vista disso, o que se conclui é que a cloroquina e hidroxicloroquina devem ser prescritas com cautela e excepcionalidade. A preservação da ciência e da tecnicidade nesses casos deve ser redobrada, e a atuação dos órgãos reguladores, mais do que nunca, deve se dar a evitar que uma possível cura traga ainda mais disfunções e perplexidade dos operadores do direito diante desse caso.

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[1] Nota técnica da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)  sobre Cloroquina e Hidroxicloroquina. Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/noticias/. Acesso em 01/04/2020.

[2] https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1241434576049840130

[3] https://www.cnj.jus.br/hidroxicloroquina-cnj-divulga-parecer-para-orientar-juizes/

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