Pandemia

Coronavírus, a marca de uma época

Uma análise do ponto de vista da propriedade industrial

vacinação compulsória stf direito do trabalho
Foto: Cesar Lopes/PMPA

Após o início do surto do novo Coronavírus (causador da COVID-19) no mundo inteiro, tem se discutido intensamente sobre diversas questões jurídicas relacionadas à pandemia, como, por exemplo, a necessidade de proteção de dados de pacientes e a patenteabilidade de tecnologias e invenções que visam ao combate ao vírus. No entanto, percebe-se que não são só essas áreas relacionadas à propriedade intelectual que estão em voga. Ao redor do mundo, diversos players do mercado têm procurado obter registros de marca para os termos “coronavírus”, “COVID-19” e outros relacionados ao fenômeno global.

A partir de uma simples análise do banco de dados da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), vê-se que, desde o início de fevereiro de 2020 até a presente data, mais de 40 pedidos de registro contendo uma dessas expressões foram depositados. No Brasil, por sua vez, há somente um pedido de registro para o termo “Coronavírus” publicado até o momento, conforme se verifica na base de dados do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).

Dessa forma, indaga-se: é possível registrar o termo “Coronavírus” ou outros ligados à pandemia como marca? O presente artigo tem como finalidade contribuir para o debate dessa questão e pontuar aspectos jurídicos relevantes para tal análise. Para tanto, necessário endereçar, ainda que de forma breve, qual é o escopo de proteção conferido por um registro de marca e quais são as funções que a marca exerce (ou deve exercer).

No Brasil, a marca é regulada pela Lei 9.279/96 (Lei da Propriedade Industrial – LPI), que dispõe que somente os sinais distintivos visualmente perceptíveis são passíveis de registro (Art. 122, LPI). Via de regra, a proteção é obtida por meio da concessão do registro expedido pelo órgão competente, o INPI (Art. 129, LPI), e abrange todo o território nacional.

Em decorrência desse título conferido pelo INPI, o titular adquire exclusividade sobre a marca, podendo proibir o uso, sem autorização ou consentimento, do sinal marcário por terceiros. Apesar disso, é importante ressaltar que nem toda marca pode ser registrada e que a proteção decorrente de um registro não é irrestrita.

O motivo por trás disso é justamente o fato de que, ao se conceder uma marca, é conferido um monopólio do sinal – que, embora imaterial, não deixa de ser um ativo patrimonial – para uma empresa ou indivíduo, representando uma verdadeira exceção ao princípio constitucional da livre concorrência, previsto no Art. 170, IV, da Constituição Federal.

Nesse sentido, ao estabelecer restrições à registrabilidade de determinados sinais, o legislador impede a concessão de tal monopólio em casos que não o justificam. Para tanto, o Art. 124 da LPI elenca uma série de situações em que o pedido de registro deverá ser negado pelo INPI, que, muitas vezes, estão intrinsecamente relacionadas às funções da marca propriamente ditas.

As marcas desempenham vários e simultâneos papéis. Para além de simplesmente identificar o produto ou serviço, a marca tem como uma das principais funções a de distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos demais existentes no mercadoi, conforme se depreende da leitura do Art. 123, I da LPI. Ademais, uma marca visa, igualmente, a atestar a origem e a qualidade do produto ou serviçoii.

Deste modo, por meio da criação de uma marca e do respectivo branding (seu conceito, seus valores) é estabelecida uma relação de confiança (em termos de qualidade e reputação, por exemplo) entre o consumidor de um determinado produto ou serviço, por um lado, e a empresa produtora ou prestadora do serviço, por outroiii.

Tendo tais considerações em vista, passemos a analisar a possibilidade de alguns pedidos de registro mencionados (referentes ao termo “coronavírus” e a outros ligados à doença) serem concedidos.

Numa primeira hipótese, caso a marca seja depositada para classe de produtos e serviços relacionados à saúde, o inciso XVIII do Art. 124, que veda o registro de termo técnico utilizado na ciência para a identificação de produto ou serviço relacionado, seria um potencial obstáculo à concessão do registro.

Ademais, é possível que o órgão competente (no caso do Brasil, o INPI) entenda que, independentemente da classe, o sinal seja de uso comum e careça de distintividade, não sendo, então, passível de registro, de acordo com o Art. 124, VI, LPI. Isso porque o termo “coronavírus” já foi, de certo modo, vulgarizado por conta da atual pandemia que assola o mundo, uma vez que o impacta das mais diversas formas.

Não obstante, deve-se cogitar da situação em que o sinal em análise conte com outros elementos, e não somente com o termo “coronavírus”. Nesses casos, conforme prega a melhor doutrina sobre o assuntoiv, será necessário analisar o sinal como um todo, por seu conjunto, a fim de determinar se o mesmo é distintivov, tendo sempre em conta a classe e a especificação reivindicadas.

Vejamos, por exemplo, o pedido de registro já depositado perante o INPI, o qual visa assinalar o comércio de desinfetantes e preparações farmacêuticas. Em tal caso, a marca conta somente com o termo “Coronavírus” e não possui qualquer outro elemento, nominativo ou visual, o que permite concluir que a marca possui um grau de distintividade baixo.

É provável que o INPI, ao analisar o pedido mencionado, venha a indeferi-lo pelos seguintes motivos: (i) o sinal é comum ou vulgar, sobretudo considerando a classe aplicada e respectiva especificação; (ii) o sinal é um termo técnica da área científica; e (iii) o sinal não é distintivo e, portanto, não cumpre com as funções principais da marca – ou seja, por meio de tal marca, não fica claro para o consumidor a origem do produto e, por consequência, a sua qualidade e distintividade comparada a dos demais existentes.

Em outro exemplo, o pedido de marca pode ser negado por outros motivos, vide pedido de registro feito nos Estados Unidos para a marca “FXCK CORONAVIRUS”. Apesar de o termo “FXCK” não existir no dicionário da língua inglesa, é fácil e rápida a associação de tal sequência de letras com a expressão “FUCK”, que é uma palavra de baixo calão no idioma inglês. Caso tivesse sido depositado no Brasil, seria possível ao INPI negar o registro por ser contrário à moral e aos bons costumes (tal proibição se encontra no Art. 124, III, LPI).

Ainda, a rejeição do pedido pode decorrer do risco de confusão ou associação com marca alheia já registrada, hipótese prevista no Art. 124, XIX, LPI. Afinal, em determinadas classes de produtos ou serviços, algumas empresas já consolidaram o uso de termo contido na expressão “coronavírus”. Assim é que, a princípio, seriam baixas as chances de êxito de um pedido para a marca nominativa “coronavírus” a identificar cervejas ou chuveiros, diante das marcas já existentes para as duchas “Corona” a para a homônima cerveja “Corona”.

Conclui-se da breve análise acima, portanto, que muitos casos similares, de pedidos que venham a ser depositados no Brasil, provavelmente serão indeferidos pelo INPI, pelo fato de tais sinais não cumprirem com o papel essencial de uma marca (o de identificação de origem, baseado em sua carga de distintividade) e, consequentemente, por serem vistos como sinais meramente descritivos, comuns ou, inclusive, vulgares, já que a repercussão do assunto banalizou o uso dos termos nas mais diversas áreas de atividades comerciais.

É certo que, como já mencionado, a análise deverá sempre avaliar a marca como um todo – considerando o conjunto de seus elementos – o que poderá levar o INPI a conceder alguns pedidos de registro que contenham a expressão “Coronavírus” ou “corona”, por exemplo, principalmente em circunstâncias futuras, em que a pandemia não esteja no centro das atenções. Exemplo eloquente dessa possibilidade é a existência de diversos registros perante o INPI para marcas que utilizam o termo “gripe”.

De toda forma, ao requerente ou, eventualmente, ao titular de uma marca contendo algum desses termos, não deve ser dada a (errônea) expectativa de que o mesmo terá o direito de uso exclusivo de tais sinais, pois o baixo grau de distintividade dessas marcas provavelmente resultará em registros para sinais que poderão ser considerados como “fracos” e que deverão suportar o ônus de coexistir, de forma harmônica, com outras marcas que contenham a mesma expressão.

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i BARBOSA, Denis Borges. Uma introdução à propriedade intelectual, 2ª ed. rev. e atual., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 799.

ii SILVEIRA, Newton. A propriedade intelectual e as novas leis autorais, 2ª ed. rev. e ampl., São Paulo: Saraiva, 1996, p. 24-25.

iii IDS-Instituto Dannemann Siemsen de Estudos Jurídicos e Técnicos, Comentários à lei da propriedade industrial, 3ª ed. rev. e atual., Rio de Janeiro, Renovar, 2013, p. 230-231.

iv MORO, Maitê Cecília Fabbri. Marcas tridimensionais: sua proteção e os aparentes conflitos com a proteção outorgada por outros institutos da propriedade intelectual, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 171.

v Manual de Marcas – Diretoria de Marcas, Desenhos Industriais e Indicações Geográficas do INPI, 3ª edição, 1ª revisão (02/10/2019), p. 109.