Wallace Corbo

No dia 12 de maio, o presidente da República ratificou a Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (CICR). O ato concluiu um longo processo que ampliou a lista de tratados internacionais de direitos humanos com hierarquia constitucional, nos termos do artigo 5º, §3º da Constituição. A pergunta que permanece é: qual o impacto dessa recente aprovação para nosso ordenamento jurídico?
A internalização da convenção com status de norma constitucional evidentemente amplia novamente nosso bloco de constitucionalidade – em especial, o sistema constitucional antidiscriminatório de nosso ordenamento jurídico. Até recentemente, esse sistema encontrava fundamento, especialmente, (1) no texto originário de nossa Constituição (especialmente nos artigos 3º, inciso IV; artigo 5º, caput e incisos XLI e XLII); (2) e na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD).
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Neste sistema constitucional antidiscriminatório, a Constituição Federal estabeleceu princípios fundamentais do direito à igualdade e à não discriminação. Destes princípios, decorreu uma série de decisões políticas e jurídicas que progressivamente reconheceram direitos específicos em favor de diferentes grupos sociais.
É na promoção da igualdade e no combate à discriminação que se assentaram a legitimidade constitucional das políticas de ações afirmativas em favor de grupos raciais marginalizados, a garantia do direito a homens gays de doarem sangue em exercício de sua cidadania e solidariedade social, o direito ao casamento igualitário, a criminalização da homofobia, a proteção da mulher no acesso ao mercado de trabalho e tantos outros direitos.
Pode-se dizer que princípios gerais estabelecidos entre as promessas da Constituição de 1988 permitiram avanços substanciais em conquistas específicas. A despeito disso, a previsão constitucional expressa, em texto, de conceitos normativos (ainda que já reconhecidos pela doutrina) possibilita avançar ainda mais no campo do direito antidiscriminatório.
O primeiro e importante avanço no sentido de incorporar ao sistema constitucional antidiscriminatório inovações em forma de texto normativo se deu ainda em 2009. Com a aprovação da CDPD, equiparada à emenda constitucional, foram internalizados definitivamente em nosso bloco de constitucionalidade os conceitos de discriminação indireta e o direito à adaptação razoável, <a href="https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rfduerj/article/view/27257" target="_blank" rel="noopener noreferrer">do qual já tratamos anteriormente</a>.
Agora, com a aprovação da CICR, o campo do direito antidiscriminatório passa a gozar de mecanismos ampliados de promoção da igualdade. Exemplo disso é o fato de a CICR estender, de maneira expressa, aquilo que já vínhamos reconhecendo: a discriminação racial pode se caracterizar tanto pela existência de vontades específicas (o propósito discriminatório), quanto em razão de efeitos de anulação ou restrição de direitos (o efeito discriminatório).
Da mesma forma, a discriminação racial pode se dar na modalidade direta (com o emprego de critérios raciais expressos) ou indireta (com o emprego de critérios aparentemente neutros em relação a raça). Diante da discriminação, a Convenção ainda impõe deveres ao Estado – como o dever de apoiar medidas antirracistas – denominadas “políticas especiais e ações afirmativas” – que não podem ser consideradas discriminatórias (pondo fim ao argumento já afastado por outros atos normativos, no sentido de que políticas afirmativas seriam uma forma de “discriminação reversa”).
<blockquote class="jota-article__eye">É preciso destacar, pelo momento atual, uma importante providência trazida pela Convenção. Trata-se daquela identificada pelo artigo 8º, que estabelece que, também em matéria de segurança, os Estados devem assegurar que não se discrimine direta ou indiretamente pessoas ou grupos racializados. Trata-se de previsão pontual que guarda extrema relevância.</blockquote>
É que, como sabido, no próximo dia 21 de maio, o Supremo Tribunal Federal (STF) dá início ao julgamento de embargos de declaração opostos no âmbito da ADPF 635 – a chamada ADPF das Favelas – que busca conter a crescente letalidade policial subjacente à política de segurança pública do Rio de Janeiro.
Nesta ação, restou evidenciado o impacto desproporcional que a política de segurança pública produz, naquele estado, sobre a parcela negra e periférica da população – algo tristemente exemplificado pela recente Chacina do Jacarezinho. Quem morre em razão de operações policiais e confrontos com forças de segurança – em todos os lados – são pessoas negras. Quem carrega o trauma de crescer com a lembrança de ver um <a href="https://oglobo.globo.com/rio/mortes-no-jacarezinho-menina-de-nove-anos-nao-voltou-ao-seu-quarto-apos-homem-ser-morto-em-sua-cama-25008847" target="_blank" rel="noopener noreferrer">homem brutalmente assassinado em sua cama</a>, são crianças negras e pobres.
O STF tem então a oportunidade de dar concretude, em sentido absolutamente vanguardista e ágil, a esta nova previsão de nosso ordenamento jurídico – assegurando, ao impor que o Estado do Rio de Janeiro elabore Plano de Segurança voltado à contenção da letalidade policial, que também se atente aos impactos raciais que tal política pode produzir. Tudo, enfim, para contribuir para o fim do ciclo de morte e marginalização de nossa população negra.
A aprovação da CICR é bem-vinda, portanto, em nosso ordenamento e, em especial, em nosso bloco de constitucionalidade. Sua previsão, no entanto, não basta. É preciso aplicá-la e assegurar não apenas a proteção aos direitos nela previstos, como também o respeito aos deveres que ela impõe. Há muito ainda sobre o que se debruçar, mas o potencial que se pode vislumbrar é imenso para avançarmos no necessário aprofundamento das promessas igualitárias da Constituição de 1988.
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