André Estima

Bruno Calabrich

Na última terça-feira (29/3), a <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/rosa-weber-nega-arquivamento-inquerito-bolsonaro-covaxin-30032022">ministra Rosa Weber, do STF, rejeitou a promoção de arquivamento</a> feita pelo procurador-geral da República em relação a uma investigação por crimes supostamente praticados pelo presidente da República (Inq. 4.875/DF). Independentemente do acerto ou desacerto da decisão do STF quanto ao mérito do arquivamento, causa perplexidade a leitura do seu dispositivo, que simplesmente indefere o pedido de arquivamento (sic) e devolve os autos à Procuradoria-Geral da República “para as providências que reputar cabíveis”.
Cremos que o sistema processual penal brasileiro, tal qual posto, oferece uma solução mais adequada ao interesse público e conforme a Constituição Federal.
Ao relacionar as funções institucionais do Ministério Público nos incisos do seu art. 129, a Constituição inscreve como a primeira destas a função de “promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”.
Investigar e acusar criminalmente altas autoridades como o presidente da República são tarefas sensíveis, em razão das suas graves e inevitáveis repercussões políticas. Em algumas democracias modernas, o chefe de Estado submete-se ao sistema de persecução penal como qualquer cidadão, sem privilégios. Em outros países, como no Brasil, o mandatário máximo goza de foro especial por prerrogativa de função no Supremo Tribunal Federal, conforme previsto no art. 102, I, “b”, da Constituição.
Da leitura do art. 129 em conjunto com o art. 102 da CF, tem-se que cabe ao Procurador-Geral da República, órgão agente do Ministério Público Federal com atribuição para atuar perante o STF, investigar e processar, nas infrações penais comuns, o presidente da República, o vice-presidente e os membros do Congresso Nacional, dentre diversas outras autoridades.
Assim, distintamente dos crimes de responsabilidade (que são de competência do Congresso Nacional), diante da notícia de uma infração penal comum atribuída ao presidente da República e relacionada ao exercício de suas funções, cabe ao procurador-geral da República promover sua investigação, diretamente ou por meio de requisições à Polícia Federal, sob o controle do STF, que deve autorizar previamente, se for o caso, medidas sujeitas à reserva de jurisdição.
Quando a investigação estiver madura o suficiente para permitir a formação de convicção sobre a existência ou não de evidências mínimas da ocorrência de um crime (opinio delicti), o procurador-geral da República deve oferecer denúncia contra o chefe do Poder Executivo Federal ou promover o arquivamento do caso. Apresentada a acusação, competirá ao STF o processo e o julgamento.
E se o procurador-geral da República resolver arquivar um caso criminal contra o presidente da República – ou contra qualquer outra autoridade com foro no STF – e o tribunal discordar dos argumentos para o arquivamento, como se deve proceder? A Constituição e as leis não trazem uma solução específica expressa.
Numa democracia liberal de formatação republicana não há espaço para o arbítrio individual. É imprescindível, portanto, haver mecanismos de controle do poder que previnam o abuso, seja pela ação, seja pela omissão. Assim, por mais proeminente que seja sua função, a ninguém é dado tomar sozinho decisões importantes, graves e irreversíveis, em desconformidade com o Direito. Decisões monocráticas, isto é, tomadas por um só agente público, devem estar sujeitas a alguma forma de controle e revisão de sua adequação jurídica.
O oferecimento de uma denúncia por um membro do Ministério Público será sempre sujeito ao controle do Poder Judiciário, que pode rejeitá-la ou recebê-la, dando início ao processo penal condenatório. Por outro lado, em relação ao exercício da atribuição de promover o arquivamento do caso criminal – ou seja, do poder-dever de não acusar –, a regra prevista no Código de Processo Penal é que esse ato seja submetido ao controle de órgãos superiores do próprio Ministério Público (art. 28 do CPP).
No caso do Ministério Público Federal, a Lei Complementar n.º 75/93 prevê, em seu art. 62, IV, que compete às Câmaras de Coordenação e Revisão “manifestar-se sobre o arquivamento de inquérito policial, inquérito parlamentar ou peças de informação, exceto nos casos de competência originária do Procurador-Geral”. Homologada a promoção, o caso é arquivado. Rejeitada a promoção de arquivamento, o membro do Ministério Público que a subscreveu torna-se impedido de oficiar no caso, sendo designado extraordinariamente outro membro para prosseguir com a persecução penal.
Todavia, quanto às promoções de arquivamento formuladas em casos relativos a autoridades com foro especial, a jurisprudência do STF vem repetindo que tais atos do Ministério Público são insindicáveis pelo Judiciário. Noutras palavras: o arquivamento promovido pelo PGR é, de regra, irrecusável<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Tal compreensão vem a propósito de se respeitar o princípio acusatório, que consagra a estrita separação entre as funções de acusar e julgar e impede o Poder Judiciário, pois, de dar início ao processo penal de ofício, bem como de compelir o Ministério Público a apresentar uma acusação. Obrigar o MP a denunciar ou iniciar um processo sem a provocação de um sujeito processual distinto violaria, a um só tempo, o princípio acusatório – pilar de um sistema processual garantista –, o dever de imparcialidade do julgador, a titularidade privativa da ação penal de iniciativa pública e a independência funcional dos membros do Ministério Público.
De fato, não pode o STF substituir-se à acusação e manifestar-se favoravelmente à deflagração de um processo criminal sem o oferecimento de uma denúncia pelo Ministério Público. No entanto, daí não se pode dar um salto lógico e concluir-se pela inexistência de controles dos atos do procurador-geral da República em investigações de autoridades com foro especial. A Constituição e a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp75.htm">Lei Complementar n.º 75/93</a> garantem a todos os membros do Ministério Público independência funcional para não serem constrangidos a agir ou a não agir. Trata-se de ferramenta essencial para uma atuação republicana. Contudo, não consagram, nem expressa nem implicitamente, uma pretensa imunidade revisional absoluta dos atos dos membros do MP – nem mesmo do procurador-geral da República.
Ao procurador-geral da República, como chefe do Ministério Público Federal, compete exercer as funções do Ministério Público junto ao Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 103, § 1º, da Constituição e dos arts. 37, I, 45 e 46 da Lei Complementar n.º 75/93, podendo delegá-las a subprocuradores-gerais da República, conforme preveem os arts. 47 e 66 da referida lei. Portanto, a atuação perante a Suprema Corte dá-se, principalmente, pelo procurador-geral, mas também por subprocuradores-gerais da República, ocupantes do último cargo da carreira do Ministério Público Federal.
A Lei Complementar n.º 75/93 também estatui, em seu art. 57, X, que compete ao Conselho Superior do Ministério Público Federal, dentre tantas outras atribuições de gestão superior da instituição, “designar o Subprocurador-Geral da República para conhecer de inquérito, peças de informação ou representação sobre crime comum atribuível ao Procurador-Geral da República e, sendo o caso, promover a ação penal”. Ou seja, a lei já prevê situações em que o Ministério Público Federal pode ser representado perante o STF por subprocuradores-gerais da República em vez do próprio procurador-geral.
Quando problema semelhante acontece em casos de atribuição dos Ministérios Públicos estaduais, já há solução expressa. A Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8625.htm">Lei 8.625/93</a>), em seu art. 12, inciso XI, dispõe que cabe ao colégio de Procuradores de Justiça “rever, mediante requerimento de legítimo interessado, nos termos da Lei Orgânica, decisão de arquivamento de inquérito policial ou peças de informações determinada pelo Procurador-Geral de Justiça, nos casos de sua atribuição originária”.
Assim, uma solução possível para harmonizar o sistema acusatório, a titularidade privativa da ação penal pública, a necessidade de controles dos atos individuais definitivos e as normas quanto à atuação do Ministério Público perante o STF é a de, quando for o caso, submeter as promoções de arquivamento do procurador-geral da República à apreciação do Conselho Superior do Ministério Público Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/csmpf">CSMPF</a>). Este órgão colegiado, formado pela cúpula da instituição, poderá deliberar pela homologação da promoção de arquivamento ou, caso divirja do entendimento do procurador-geral, pela continuidade da persecução penal, designando um subprocurador-geral para fazê-lo, à semelhança do procedimento já previsto no art. 28 do CPP<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
A interpretação proposta, que também pode ser aplicada em processos de competência originária do Superior Tribunal de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/superior-tribunal-de-justica">STJ</a>), tem amparo no art. 28 do CPP, no art. 12 da Lei 8.625/93 e no art. 57, X, da Lei Complementar 75/93, por analogia (como permite o art. 3º do CPP). Assim se procedendo, estarão preservadas a estrutura acusatória do processo, a independência do Ministério Público e a imparcialidade dos órgãos do Poder Judiciário. Impedir-se-á, também, que eventual equívoco perpetrado por uma autoridade singular (o procurador-geral da República) seja um ato absolutamente inatingível por qualquer forma de controle e correção.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Os precedentes do STF sobre o tema foram reunidos pela min. Rosa Weber em sua decisão proferida em 29.03.2022 no Inq. 4.875/DF: “Como regra, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reputa inviável a recusa a pedido de arquivamento de inquérito ou de peças de informação deduzido pelo Ministério Público, quando ancorado na ausência de elementos suficientes à persecução penal (Inq 4.134/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJe 13.06.2018; Inq 4.178/PE, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, DJe 10.02.2016; Inq 3.563/PR, Rel. Min. LUIZ FUX, DJe 07.03.2014; Pet 5.566/RJ, de minha relatoria, DJE 05.08.2015; Inq 4.087/MG, Rel. Min. TEORI ZAVASKI, DJe 01.02.2017; Inq 4.532/RJ, Rel. Min. GILMAR MENDES, DJe 26.10.2017; Inq 4.620/SP, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, DJe 20.04.2018; Inq 4.410/DF, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, DJe 13.09.2018; Pet 7.786/DF, Rel. Min. EDSON FACHIN, DJe 07.02.2019; e Inq 4.452/DF, de minha relatoria, DJe 18.02.2019).”
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Seja na redação original e atualmente vigente (conforme decisões proferidas nas ADIs 6.298, 6.300 e 6.305), seja na redação dada pela lei nº 13.964/2019, o que importa é que exista um mecanismo que permita o controle da atuação do MP e preserve a imparcialidade do juiz.

ARAS

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JOTA

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