Sandro Rafael Matheus Pereira

Quase toda discussão que passe pela temática envolvendo políticas públicas tem como ponto de partida os direitos fundamentais. A razão é simples. A execução de programas governamentais que forneça bem-estar à população, a exemplo da prestação de serviços essenciais como educação, saúde, segurança, moradia, entre outros, evidencia a efetivação de direitos sociais estatuídos na Constituição Federal.
No âmbito da atividade administrativa, as políticas públicas devem refletir direitos sociais almejados pelo Poder Constituinte, por meio de prestações positivas do Estado, haja vista que a realização de tais direitos exige a mobilização do aparelho estatal para a execução de programas governamentais que são custosos, sobretudo se for considerada uma realidade de elevada carência social e de forte restrição orçamentária, o que revela considerável grau de dificuldade e esforço dos governos para a implementação das políticas públicas referentes aos direitos sociais de conteúdo econômico, cultural e social.
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A concretização de direitos sociais depende da atuação coordenada dos Poderes Legislativo e Executivo, além de contar com a participação da sociedade civil organizada, agindo muitas vezes em parceria com o Estado.
Assim, não basta a aspiração do Poder Constituinte de que a educação “deve ser” um direito de todos e dever do Estado, se não houver a edição de lei que organize e estruture o sistema de ensino e principalmente se não houver a construção de escolas, contratação de professores, compra de materiais e fornecimento de transporte e alimentação, além de outras ações concretas a cargo do Poder Executivo. Daí porque a previsão constitucional de um direito não cria, por si só, as condições socioeconômicas para sua implementação.
Há inegavelmente um forte viés político relacionado à concretização dos direitos sociais, notadamente quanto ao processo de “escolhas” que se desenvolve no Poder Legislativo, evidenciado pela decisão de alocação de recursos e definição de prioridades na aprovação das leis orçamentárias, como também no Poder Executivo no que se refere à condução das atividades concretas do “como fazer” e suas diversas implicações na realidade administrativa, com vistas à realização do bem comum.
Restar saber, nesse contexto, quais seriam os limites do Poder Judiciário no sentido de conferir efetividade aos direitos fundamentais sociais ante a omissão dos demais poderes quanto ao cumprimento das normas constitucionais e legais que obrigam o poder público à realização de serviços essenciais ao cidadão.
<blockquote class="jota-article__eye">Ou seja, a face jurídica que deve pautar a avaliação das políticas públicas, pois, no Estado de Direito, toda a ação governamental se funda precipuamente nas normas jurídicas que lhe conferem legitimidade.</blockquote>
Cumpre mencionar que o Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 45, da relatoria do ministro Celso de Mello, reconheceu a possibilidade de que as políticas públicas sejam objeto de controle jurisdicional, in verbis:
Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, [...] – e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico –, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado.
Um dos maiores obstáculos à atuação do Poder Judiciário quanto à efetivação de direitos sociais reside na invocação da chamada “reserva do possível”. Num cenário de notória crise fiscal, prescinde-se de análise exaustiva para concluir que seria impossível ao poder público atender a todas as demandas sociais, ainda que albergadas no texto constitucional.
Assim, o Estado precisa definir prioridades e fazer escolhas, de forma que os direitos sociais não contemplados no processo democrático de eleição das necessidades coletivas não deveriam ser oponíveis aos gestores públicos, haja vista que “ninguém pode ser obrigado a fazer o impossível”. Neste caso, o limite é ditado pelos recursos financeiros disponíveis.
Contudo, a reserva do possível não pode ser vista como “desculpa de prateleira” que fica à disposição do gestor sempre que ele quiser justificar a omissão estatal no que se refere à realização de uma política pública indispensável ao interesse coletivo, eis que, em muitos casos, a omissão não decorre simplesmente da falta de dinheiro, mas, sim, da negligência, do descaso e da incompetência administrativa na gestão dos recursos que lhes são confiados pela sociedade; sem falar, é claro, dos inúmeros episódios de desvio de verbas públicas decorrentes de atos de corrupção.
Conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal (ADPF nº 45), a reserva do possível encontra limite no mínimo existencial. Verifica-se que tais institutos se encontram em constante tensão, competindo ao Poder Judiciário, quando instado a suprir a omissão do Poder Executivo na concretização de determinado direito social, avaliar com cautela a justificativa que ampara a alegação da reserva do possível e cotejá-la com o direito fundamental que está sendo negado ao cidadão, principalmente se estiver em jogo direito que diga respeito ao mínimo vital que deve ser assegurado a todo cidadão para uma vida com dignidade (acesso à saúde, educação básica, etc.).
Decerto que o Judiciário não pode ignorar a realidade imposta pela escassez orçamentária que acomete quase todas as entidades federativas, bem como desconsiderar o sistema de competências definido pela Constituição Federal, em que as discussões referentes à alocação de recursos, planejamento e execução das políticas públicas se estabelecem nas arenas dos poderes Legislativo e Executivo.
Assim, a pretexto de dar efetividade a determinado direito fundamental social, não seria legítimo que o Judiciário se fizesse às vezes de administrador público, substituindo-o nas “escolhas” sobre política pública que a lei reservou à discricionariedade administrativa.
Por outro lado, as normas constitucionais que consubstanciam direitos sociais apresentam eficácia apta a fundamentar direitos subjetivos públicos positivos, exigíveis em face do Estado, de modo que limitações orçamentárias não teriam o condão de esvaziar por completo a densidade normativa de tais garantias, em especial quando se nega o que há de mais básico para uma existência minimamente digna do cidadão.
Muito embora o planejamento e execução de políticas públicas tenham sido confiados precipuamente aos ocupantes de mandatos eletivos, por delegação popular, isso não significa dizer que o poder de determinar as escolhas públicas no campo das ações e programas governamentais possa ser exercido de maneira ampla e irrestrita.
A omissão na efetivação de políticas públicas passa a ser assunto sindicável ao Poder Judiciário quando se postula em juízo contra a inércia irresponsável e abusiva dos poderes públicos, sem que se forneça justificativa plausível para a recusa ao cidadão das condições mínimas e necessárias à existência digna.
No Estado de Direito, marcadamente regido pelo sistema da “civil low”, o arcabouço normativo funciona como substrato para a legitimação e validade das opções de políticas públicas. No entanto, o próprio legislador reconhece que, em muitos casos, o modelo abstrato legal não é capaz de antever todos os problemas e definir as possíveis soluções ante uma realidade pulsante e dinâmica, o que o leva a preferir esquemas normativos mais abertos e menos engessados.
Nesse passo, mas sem abrir mão de delimitar as diretrizes e princípios a serem observados pelos órgãos e entidades executores das políticas públicas, a lei, propositadamente, pode conferir maior margem de liberdade aos gestores públicos para que façam a escolha que melhor atenda ao interesse coletivo, pois, em tese, quem está mais próximo do problema possivelmente encontrará a solução mais adequada para enfrentá-lo.
<blockquote class="jota-article__eye">Trata-se de conceito amplamente difundido no direito administrativo e que se aplica perfeitamente ao estudo do controle de políticas públicas, uma vez que o ciclo de tais políticas ocorre no âmbito da atividade administrativa.</blockquote>
Registra-se, porém, que a existência de escolhas discricionárias na condução de políticas públicas não afasta a possibilidade de controle judicial, tendo em vista que a liberdade de agir do administrador público apenas se legitima dentro da moldura imposta pela lei e pela Constituição.
Na democracia, não é tolerável opções arbitrárias, inconsequentes ou desarrazoadas, com grave prejuízo ou neutralização absoluta da eficácia das normas de direitos sociais garantidas constitucionalmente.
No exercício do controle externo, caberia ao Judiciário percorrer a trilha jurídica sobre a qual devem ser conduzidas as políticas públicas, no sentido verificar o atingimento das diretrizes e prioridades definidas no ordenamento jurídico.
Forçoso reconhecer, todavia, que a questão não é tão simples, sobretudo quando envolve omissões na efetivação de direitos sociais, pois, a depender da extensão do controle judicial, corre-se o risco de o juiz se substituir na figura do legislador e do administrador público, o que pode caracterizar interferência indevida na competência dos demais poderes; além do que, os ocupantes de cargos no Legislativo e o chefe do Poder Executivo são eleitos mediante sufrágio universal, razão por que devem responder prioritariamente pela agenda das políticas sociais e econômicas.
Nada obstante, o Poder Judiciário não pode se furtar da sua atribuição constitucional como garantidor dos direitos fundamentais sociais, o que, inevitavelmente, para tal desiderato, deverá dirigir sua atuação à execução de políticas públicas, de maneira que tanto maior será sua legitimidade quanto mais próximo estiver das regras e valores estatuídos na lei e na Constituição.
Em tempos de ativismo judicial e de hipertrófica do controle, sempre que possível, o juiz deve buscar uma maior aproximação com a realidade que será alcançada pela sua decisão, com vistas a que o órgão julgador se veja no lugar de quem está sendo julgado, num exercício de prognose sobre possíveis dificuldades de dar cumprimento à decisão controladora, sem embargo de dar transparência às razões que o levaram a entender dada medida como necessária e adequada frente às demais opções igualmente possíveis no exercício da discricionariedade administrativa.
De fato, o Poder Judiciário não é o gestor de orçamentos e, por isso, precisa compreender em que medida a sua intervenção poderá afetar a realização de outras despesas públicas, pois a efetivação de um direito social que é dado com uma mão não pode ser recusado a terceira pessoa com a outra.
Do contrário, pode-se gerar uma corrida infindável às portas da justiça, a fim de se saber quem terá acesso, em primeiro lugar, à fruição de direitos sociais, o que fatalmente produziria distorções profundas no ciclo de políticas públicas, com sério risco de tornar o órgão julgado um agente de definição de prioridades, beneficiários e cronograma de desembolsos, na condução de políticas públicas.
Assim, com vistas a preservar a harmonia do sistema de tripartição de poderes, a atuação do Judiciário deve voltar-se ao controle finalístico da execução de políticas públicas, com vistas à concretização do núcleo dos direitos fundamentais sociais, de forma a suprir as falhas do processo político na efetivação das condições mínimas de proteção ao cidadão no tocante ao fornecimento do mínimo vital para uma existência digna.
Na condição de garante dos direitos fundamentais, o Poder Judiciário poderá compelir os demais poderes a darem cumprimento às políticas públicas, em conformidade com os preceitos constitucionais e legais.
No entanto, deverá fazê-lo pautado pelos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, tendo em conta, ainda, as disponibilidades orçamentárias para tanto; avaliando, sempre que possível, os impactos da sua decisão sobre a realidade e as dificuldades inerentes à atividade administrativa, de maneira a evitar que a proteção do direito social do cidadão que recorreu à justiça não implique o comprometimento de direitos sociais de outros indivíduos.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE

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JOTA

Algumas reflexões acerca da efetivação de direitos sociais, mínimo existencial e reserva do possível

Controle judicial sobre políticas públicas

Algumas reflexões acerca da efetivação de direitos sociais, mínimo existencial e reserva do possível