
Ao longo das últimas décadas, o modelo das agências reguladoras se solidificou na esfera federal enquanto instrumento adequado para a regulação dos serviços públicos e setores econômicos de interesse geral ou estratégico. Não obstante, tal popularização também foi acompanhada do enfraquecimento de pressupostos importantes que justificaram a opção por esse modelo institucional a partir década de 1990[1].
Notadamente, fazemos referência aos elementos considerados como primordiais para assegurar a qualificação técnica e independência decisória das agências reguladoras, de modo a viabilizar a neutralidade de sua atuação perante os agentes regulados e assegurar um ambiente institucional seguro e compatível com o desenvolvimento das atividades econômicas, em especial daquelas que demandem investimentos de longo prazo.
O que se observa é que o tratamento conferido, na prática, às agências reguladoras tem colocado esses pressupostos em risco, com prejuízos não apenas à qualidade de atuação regulatória, como também à credibilidade e efetividade das normas e ações tomadas pelos órgãos reguladores. Corroboram essa constatação:
- O uso político das nomeações dos dirigentes das agências reguladoras, inserido em um processo de barganha com o Congresso Nacional, que retira, por vezes, o necessário caráter técnico dessas indicações;
- A morosidade nos processos de nomeação dos dirigentes que cria vácuos decisórios;
- O afastamento de servidores experientes e o enfraquecimento da burocracia estatal associada à atividade regulatória;
- A não destinação dos recursos orçamentários necessários a viabilizar a autonomia financeira e a qualificação dos processos decisórios dos órgãos reguladores;
- O esvaziamento das competências das agências reguladoras mediante avocação ou interferência em suas atribuições pelo Executivo, Legislativo ou pelos órgãos de controle externo.
Diante desse cenário, deve-se relembrar o importante papel designado às agências reguladoras com a abertura de serviços estratégicos à iniciativa privada, como também os pressupostos fundamentais para que possam exercer sua missão com qualidade.
Um relevante passo nesse sentido foi dado recentemente com a promulgação da Lei 13.848/2019 (Lei das Agências Reguladoras), que buscou resgatar, em norma geral e abstrata, os elementos formais, de ordem estrutural, procedimental e gerencial a serem observados no âmbito de atuação de todas as agências reguladoras federais. Não obstante, a necessidade de promulgação de uma lei que disciplina o regime jurídico das agências, após uma suposta solidificação deste aparato institucional, é também sintomática da urgência de ações voltadas ao aprimoramento estrutural e procedimental dos entes reguladores, bem como do maior conhecimento público sobre seu papel e sua relevância.
Nesse contexto, é importante que o novo governo federal, assim como os membros das casas legislativas se apropriem deste novo marco legal e se valham dele para dar seguimento a um plano consistente de fortalecimento das agências reguladoras. Assim, não bastam as garantias formais de autonomia, é preciso assegurar que o arranjo institucional das agências reguladoras contribua para, efetivamente, viabilizar o seu funcionamento adequado[2].
O objetivo final é proporcionar uma maior qualidade e efetividade das intervenções regulatórias, com a salvaguarda de objetivos de interesse público que justificaram sua criação e a manutenção de um ambiente institucional salutar para a atração de investimentos, aumento da competitividade e preservação da segurança jurídica.
De modo a colaborar com essa agenda, apresentamos nossas contribuições com 5 aspectos que consideramos fundamentais para o fortalecimento institucional das agências reguladoras federais no novo governo[3], a serem apresentados semanalmente nesta série de artigos.
Espera-se que as singelas contribuições aqui trazidas possam auxiliar o novo governo na definição de uma agenda prioritária para as políticas regulatórias, como também o Congresso Nacional e os órgãos de controle no desempenho de suas respectivas competências. Ainda, busca-se, com os passos listados, atentar para a importância de uma participação ativa da sociedade civil nesse debate e na vigilância das práticas regulatórias em curso.
Neste primeiro artigo, abordaremos um aspecto relevante para o aprimoramento institucional do modelo de agências reguladoras: o fortalecimento de seu corpo diretivo.
Passo 1: Fortalecimento do corpo diretivo das agências reguladoras
O primeiro aspecto considerado fundamental para o fortalecimento institucional das agências reguladoras é a garantia da capacidade técnica do seu corpo diretivo. A Lei das Agências alterou a Lei 9.986/2000 e fixou requisitos mínimos mais claros e objetivos para a nomeação do seu Conselho Diretor ou Diretoria Colegiada, entre os quais o notório conhecimento no campo de especialidade do membro, a experiência profissional mínima e a formação acadêmica compatível com o cargo. É preciso levar o comando legal e suas finalidades a sério.
Para tanto, a nomeação de dirigentes capacitados deve ser uma prioridade do chefe do Poder Executivo, o que pressupõe a indicação de diretores com formação técnica e acadêmica, bem como experiência profissional compatíveis com a complexidade das funções a serem desempenhadas. Aqui não basta qualquer formação ou experiência profissional, por melhor que seja: é necessário que ela tenha alguma conexão específica com o setor regulado.
A experiência setorial específica é um requisito quase intuitivo e subjacente ao próprio modelo de agência. Afinal, a ideia de alocar a um órgão autônomo especializado a tarefa de regular um setor parte exatamente da competência técnica específica de seus integrantes, principalmente de sua Diretoria Colegiada ou seu Conselho Diretor. Não por outra razão, a própria legislação exige, para a maioria das hipóteses, que a experiência profissional tenha se dado no “campo de atividade da agência reguladora ou em área a ela conexa”.
Portanto, a legitimidade da atuação das agências reguladoras passa pelo reconhecimento de sua capacidade técnica para normatizar e supervisionar um determinado setor econômico, sendo fundamental que essa premissa seja garantida pelo chefe do Executivo.
Complementarmente, também é esperado que o Senado Federal desempenhe adequadamente a função de sabatinar e aprovar os dirigentes indicados, exercendo o seu papel de controle e blindagem contra nomeações que possam não corresponder às qualificações desejadas. Isso não significa qualquer tipo de ingerência sobre a prerrogativa do chefe do Poder Executivo. Mas, sim, um salutar controle entre os poderes, em consonância com as atribuições que, constitucionalmente, lhes foram atribuídas.
Espera-se, com tais providências, a garantia de decisões técnicas de qualidade, que levem em consideração as características e peculiaridades do setor regulado, a redução das assimetrias entre regulador e regulados, como também o fortalecimento da reputação institucional das agências – aspectos que têm se mostrado relevantes para uma maior efetividade e deferência[4] de suas decisões, especialmente quando analisadas ou questionadas perante órgãos de controle, como constata análise empírica sobre o tema.
O necessário compromisso do novo governo com essa pauta é aqui destacado em função de práticas observadas desde a criação das primeiras agências, nem sempre alinhadas com esse objetivo.
É fato que diversas administrações, buscando garantir sua governabilidade, realizam coalizões que, muitas vezes, resultam na nomeação de dirigentes de agências reguladoras por razões eminentemente políticas. Isso prejudica o modelo institucional que motivou a sua criação, como evidenciam pesquisas a respeito. Segundo estudo conduzido pela FGV-SP, apenas 58% dos dirigentes das agências selecionadas possuíam, até 2016, trajetória profissional conexa à função desempenhada. O fato pode ser uma explicação para certo descrédito que os órgãos reguladores têm passado e para as reações advindas dos órgãos de controle e do próprio Poder Legislativo[5], contestando o mérito de normas e decisões expedidas pelas agências.
Também é conveniente que as nomeações a serem conduzidas pelo Executivo se atentem para a importância da constituição de um órgão colegiado que congregue múltiplas visões do setor regulado, considerando não apenas as perspectivas do próprio governo, como também dos usuários e dos agentes econômicos que atuam no respectivo segmento, além da sociedade civil. Trata-se de aspecto relevante para se alcançar o equilíbrio decisório esperado da atuação das agências reguladoras e que deve ser frisado diante da tendência, verificada nos últimos anos, de nomeação de quadros com atuação preponderantemente estatal[6].
Igualmente, é imprescindível evitar vacâncias de cargo que gerem paralisias decisórias (ainda que informalmente), assim como nomeações em blocos e de diretorias interinas, que prejudicam a premissa de uma visão autônoma das agências em relação às políticas de cada ocasião, aspecto essencial para garantir a neutralidade de sua atuação e segurança jurídica.
Enfim, a efetiva aplicação dos critérios legais para a indicação de membros para a Diretoria Colegiada ou Conselho Diretor de agências reguladoras constitui importante instrumento para assegurar o cumprimento do papel esperado dos referidos órgãos, compromisso que deve ser tido como fundamental e irrenunciável pelo chefe do Executivo.
*
Agradecemos a valiosa contribuição da Camila Cavalcanti Garcia como assistente de pesquisa de base para a elaboração deste artigo.
[1] Diversos estudos têm se dedicado ao tema nos últimos anos, entre os quais: (i) JORDÃO, Eduardo e RIBEIRO, Maurício Portugal. Como desestruturar uma agência reguladora em 3 passos simples. Revista de Estudos Institucionais, v. 3, p. 180-209, 2017; (ii) Grupo das Relações entre Estado e Empresa Privada – FGV-SP GRP. Processo de nomeação de dirigentes das agências reguladoras: uma análise descritiva. 2016 e (iii) Centro de Estudo em Regulação e Infraestrutura – FGV-RJ CERI. Autonomia financeira das agências reguladoras dos setores de infraestrutura no Brasil. 2016.
[2] O tema foi aprofundado em: (i) PEREIRA NETO, Caio Mário da Silva; LANCIERI, Filippo Maria e ADAMI, Mateus Piva. O Diálogo Institucional das Agências Reguladoras com os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário: uma proposta de sistematização. In: Sundfeld, Carlos Ari; ROSILHO, André Janjácomo (Org.). Direito da Regulação e Políticas Públicas. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 140 – 185 e (ii) PEREIRA NETO, Caio Mario da Silva; ADAMI, Mateus Piva; LANCIERI, Filippo Maria. O Diálogo Institucional entre Agências Reguladoras e os Diferentes Poderes: algo muda com a Lei 13.848/19?. In: MATTOS, César (Org.). A Revolução Regulatória: na nova Lei das agências. São Paulo: Singular, 2021. p. 755 – 800.
[3] Os pontos ora apresentados são compatíveis com aqueles trazidos pela Carta da Regulação Brasileira, recentemente divulgada pela Associação Brasileira de Agências de Regulação (ABAR).
[4] Destaca-se, nesse sentido, manifestação do Ministro Bruno Dantas do TCU, expressamente reconhecendo este fato, ao afirmar que “O que justifica que com a ANTT o TCU seja rigoroso e com a ANEEL a fiscalização não seja tão apertada? A resposta é simples: governança e credibilidade de que as agências desfrutam”, fala reverberada e comentada pelo seguinte artigo: Jordão, Eduardo. iNFRADebate: Mais deferência para as agências com melhor reputação?. Agência Infra, 2019.
[5] Veja-se, por exemplo, a criação da curiosa figura do “abuso de poder regulatório”, constante do art. 4º da Lei n.º 13.874/2019.
[6] Conforme dados levantados até 2016 em relação a 18 Agências Reguladoras federais (ANATEL, ANTAQ, ANAC, ANEEL, ANP e ANTT) e estaduais (ARSEP, AGERBA, ARSAE, AGENERSA, AGETRANSP, ARTESP, STM, AGEPAR, AGESAN, AGESC, AGERGS e AGR), apenas 6% dos nomeados eram originários da iniciativa privada e somente 10% dos dirigentes das Agências Reguladoras nunca haviam exercido qualquer cargo em comissão antes da nomeação (Grupo das Relações entre Estado e Empresa Privada – FGV-SP GRP. Processo de Nomeação de Dirigentes das Agências Reguladoras: uma Análise Descritiva. 2016, p. 02).