OMC

Contratos internacionais fracos?

Operação Carne Fraca e lições na contratação internacional

30/06/2017|13:22
Atualizado em 03/07/2017 às 12:14
Pixabay

Deflagrada em março de 2017, a operação “carne fraca” ocupou amplamente os meios de comunicação brasileiros. Nas análises empreendidas, três enfoques predominaram. Primeiramente, os aspectos penais da operação. Em segundo lugar, sendo a carne, bovina e de frango, item relevante na pauta de exportação brasileira, as “suspensões comerciais” aplicadas e, por fim, a capacidade (ou não) de gestão da crise por parte do Governo brasileiro. Afinal, em diferentes graus, autoridades sanitárias estrangeiras anunciavam desde pedidos oficiais de informações (ex. Israel) ao governo brasileiro até a suspensão total das importações (ex. México, Catar e Argélia).

Pouca atenção foi direcionada, entretanto, às questões que interpolam o direito internacional público (como as suspensões de importação), e o direito internacional privado, envolvendo os contratos nos quais os frigoríficos brasileiros eram partes na qualidade de exportadores. São questões distintas. Mas se comunicam. É o que se desenvolve nesse breve artigo.

No direito internacional público, a possibilidade de governos adotarem suspensões de importação com base em medidas sanitárias visando a proteção de seus nacionais e residentes decorre do próprio exercício da soberania Estatal. As regras de comércio internacional refletem naturalmente essa prerrogativa. No âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), por exemplo, em se tratando de um caso de urgência visando a proteção à população, procedimentos formais de notificação entre governos de medidas dessa natureza são relativizados pelos dispositivos do Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (SPS).

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Na crise, primeiramente, protege-se. Posteriormente, governos poderão esclarecer a razoabilidade das medidas adotadas. As normas e a jurisprudência da OMC prestam deferência, assim, a situações de urgência bem como aos critérios para distinguir quando, sob a justificativa de resguardo à saúde, encobrem-se medidas puramente protecionistas. Nesse sentido requer-se que medidas sanitárias sejam aplicadas na medida do necessário à proteção almejada e se baseiem em princípios e evidências científicas (art. 2 do SPS). Nessa seara existem mecanismos próprios de consultas e solução de controvérsias (painéis e Órgão de Apelação da OMC) que se baseiam em regras 2 de direito internacional público, caso exista divergência sobre a legalidade das medidas adotadas pelos Membros da OMC.

A adoção de suspensões de importação, porém, poderá refletir igualmente na relação contratual privada; isto é, os negócios jurídicos – contratos de compra e venda internacional - realizados entre os frigoríficos brasileiros (exportadores) e importadores mundo afora. O nível micro dessa análise pode ser intricado e, certamente, as consequências extrapolam meras relações contratuais.

Por exemplo, quem arcaria com o risco de não desembaraço das mercadorias nos portos de destino, em função do bloqueio da autoridade sanitária no país importador de mercadorias em trânsito? Normalmente, as partes contratantes incorporam nos instrumentos de compra e venda os Incoterms - elaborados pela Câmara de Comércio Internacional (CCI) em 1936 e cuja última versão é de 2010. Nessas cláusulas-padrão as responsabilidades e os riscos entre vendedores e compradores são definidos. Na exportação de carne, bastante comum a utilização dos Incoterms FOB e CFR. No primeiro caso, o vendedor (frigorífico brasileiro) encerra suas obrigações e suas responsabilidades quando a mercadoria é entregue a bordo do navio no porto de embarque. No segundo caso, além dessa obrigação, o vendedor contrata e paga frete e custos necessários para levar a mercadoria até o porto de destino combinado. Em comum, e de importância, nos dois casos, os riscos de perda ou danos à carga são transferidos ao importador.

Além disso, qual seria a força do argumento do importador que alegasse a ocorrência de eventos de força maior para se desobrigar? A cláusula modelo de força maior proposta pela CCI estabelece que quando uma parte descumpre suas obrigações por um motivo razoavelmente fora de seu controle e imprevisto, ela resta exonerada, liberada de suas obrigações. A CCI propõe, inclusive, uma listagem exemplificativa de eventos que incluem guerra, terrorismo e os denominados “atos governamentais” (ou “fatos do príncipe”, do direito administrativo), que podem acomodar os episódios relativos às medidas sanitárias de suspensão comercial. A Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG), recentemente promulgada no Brasil pelo Decreto n. 8.327/2014, contém 3 previsão similar em seu artigo 79, sob a rubrica “exclusão de responsabilidade”, embora não disponha de uma lista exemplificativa de eventos.

Tudo dependerá de uma apreciação caso-a-caso dos fatos, das inúmeras combinações de cláusulas nos contratos, da forma de pagamento prevista (advanced payment, com carta de crédito ou a prazo) bem como o subsistema de direito aplicável no foro competente (arbitral ou estatal). O devido know-how sobre os dois planos de análise (direito internacional público e privado) é fundamental para que pontos fracos e fortes dos contratos internacionais de compra e venda sejam conhecidos e, principalmente, caso os eventos se transformem em futuros litígios que os riscos jurídicos e econômicos possam ser devidamente mensurados ex-ante de modo a tornar as relações mais seguras.logo-jota

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