Fabrício Sarmanho de Albuquerque

Era uma vez, no Reino das Águas Profundas, um monstro chamado afretamento. A Petrobrás, ao contratar plataformas de petróleo para a exploração marítima criou o chamado split contratual, ao separar artificialmente a prestação de serviços de prospecção, por exemplo, em dois contratos: um de afretamento da plataforma e outro de prestação de serviços.
Para se valer da isenção de IRRF prevista em lei, alocava 80% ou mais dos recursos no afretamento, deixando apenas 20% ou menos dos valores no contrato de prestação de serviços. Um artificialismo que não se justifica, pois obviamente a empresa contratada não gastava 80% do valor do contrato apenas alugando a plataforma. O serviço abocanhava uma parcela muito maior do contrato, não sendo custeado apenas com 20% dos recursos.
<ul class="jota-article__internal-links">
<li>+JOTA:<a href="https://www.jota.info/cadastre-se"> Faça o cadastro e leia até dez conteúdos de graça por mês! 
</a></li>
</ul>
Esse artificialismo não visava apenas burlar a incidência de IRRF. Ele também impedia a incidência de CIDE-remessa e de PIS/COFINS importação. Um negócio da China, se não estivéssemos falando do Reino das Águas Profundas.
Mas eis que apareceu o monstro. A SRFB percebeu esse artificialismo contratual ardiloso. Percebeu também que plataformas não eram embarcações de apoio, já que não realizavam frete. Então, autuou a Petrobrás e várias empresas exploradoras de Petróleo. O caos se instaurou no Reino. A nobreza, formada pelos agentes de mercado envolvidos, se movem rapidamente e pedem uma solução para o caos e a insegurança jurídica.
Eis, então, que surge um Príncipe, a MP n. 651/2014, convertida na Lei n. 13.043, de 13 de novembro de 2014, que altera a Lei n. 9.481/1997 para inserir o seguinte dispositivo:
Art. 1º A alíquota do imposto de renda na fonte incidente sobre os rendimentos auferidos no País, por residentes ou domiciliados no exterior, fica reduzida para zero, nas seguintes hipóteses: (...)
§ 2o Para fins de aplicação do disposto no inciso I do caputdeste artigo, quando ocorrer execução simultânea de contrato de afretamento ou aluguel de embarcações marítimas e de contrato de prestação de serviço relacionados à exploração e produção de petróleo ou de gás natural, celebrados com pessoas jurídicas vinculadas entre si, a redução a 0% (zero por cento) da alíquota do imposto sobre a renda na fonte fica limitada à parcela relativa ao afretamento ou aluguel, calculada mediante a aplicação sobre o valor total dos contratos dos seguintes percentuais:
I - 85% (oitenta e cinco por cento), quanto às embarcações com sistemas flutuantes de produção ou armazenamento e descarga
II - 80% (oitenta por cento), quanto às embarcações com sistema do tipo sonda para perfuração, completação e manutenção de poços;
III - 65% (sessenta e cinco por cento), quanto aos demais tipos de embarcações.
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - CARF, que sempre considerou válidas as autuações feitas nos contratos de afretamento, se balançou. No Acórdão n. 3201-003.150, em 26/9/2017, esse conselho resolveu cancelar um lançamento de COFINS e PIS com base naquela alteração legislativa:
COFINS. PETRÓLEO E GÁS NATURAL. EXPLORAÇÃO. EMBARCAÇÕES. AFRETAMENTO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. EXECUÇÃO SIMULTÂNEA. MEDIDA PROVISÓRIA N° 795/17.
Nos termos do § 2° ao art. 1° da Lei n. 9.481, de 1997, com as alterações promovidas pela Lei n. 13.043, de 2014, quando ocorrer execução simultânea do contrato de afretamento ou aluguel de embarcações marítimas e do contrato de prestação de serviço, relacionados à prospecção e exploração de petróleo ou gás natural, celebrados com pessoas jurídicas vinculadas entre si, a parcela relativa ao afretamento ou aluguel não poderá ser superior a 80% (oitenta por cento) do valor total dos contratos, no caso de embarcações com sistema do tipo sonda para perfuração, completação ou manutenção de poços, os chamados navios-sonda.
A Procuradoria da Fazenda Nacional tentou mostrar que a lei não se aplicaria ao caso. Isso, porque a lei somente trata de uma isenção de IRRF, nunca podendo ser aplicada a outros tributos, como COFINS/PIS e CIDE. Ademais, tratar-se-ia de renúncia de receita, tanto que a medida provisória foi acompanhada do demonstrativo de perdas arrecadatórias. Esse demonstrativo é requisito essencial a toda norma que renuncia receitas tributárias, nos termos do atual art. 113 do ADCT, que já fazia parte do ordenamento jurídico brasileiro antes mesmo da EC n. 95/2016. Assim, essa norma nunca poderia ter efeito retroativo, como norma interpretativa, porque isso não foi calculado dentro dos limites da renúncia orçamentária.
O CARF não aceitou a argumentação. Entendeu que esse Príncipe, salvador da pátria, representaria a vontade governamental de considerar que o split feito na proporção 80/20 era válido e plausível. E isso valeria para tudo: IRRF, CIDE, COFINS/PIS, inclusive de forma retroativa.
O príncipe, agora coroado, ficou preocupado com as contas do Reino. Isso, porque seu ato de bondade foi originalmente calculado apenas para isentar IRRF após a edição da norma, a partir de 2014. Viu, portanto, que estavam extrapolando sua vontade. Então publicou a MP 795/2017 para proibir que a Secretaria da Receita Federal do Brasil – SRFB aplicasse sua medida retroativamente. Para tanto, inseriu o seguinte dispositivo ao artigo já citado:
§ 10. O disposto nos §§ 2o e 9o deste artigo não se aplica às embarcações utilizadas na navegação de apoio marítimo, definida na Lei no 9.432, de 8 de janeiro de 1997, vedada, inclusive, a aplicação retroativa do § 2o deste artigo em relação aos fatos geradores ocorridos antes da vigência da Lei no 13.043, de 13 de novembro de 2014.
A exposição de motivos e os pareceres da Procuradoria oferecidos durante o processo legislativo demonstravam a natureza de renúncia de receita, de isenção, que deve ser interpretada restritivamente. Nunca seria uma norma interpretativa. Vejamos a exposição de motivos:
11.3. Para o ano de 2018, em relação à opção prevista no art. 3º que permite o recolhimento do IRRF mediante aplicação dos limites previstos no § 2º do art. 1º da Lei nº 9.481, de 1997, sem incidência de multa, a renúncia estimada será de R$ 11,14 bilhões.
Durante esse processo legislativo a nobreza tentou ampliar o benefício legal, algo que o Príncipe não podia fazer, pelo impacto orçamentário que geraria. Há registro dessa negociação na NOTA/PGFN/CAT/Nº 689/2017:
2.2. No texto da minuta de ato normativo, suprimiu-se o § 7º do art. 3º, o qual concedia benefícios fiscais no âmbito do IRRF, da CIDE de que trata a Lei nº 10.168, de 29 de dezembro de 2000, e do PIS/PASEP-importação e COFINS-importação. Sem objeções.
Como se vê, não havia margem para se pensar que a norma em discussão se aplicaria a todos os tributos. E nem mesmo que ela poderia se aplicar retroativamente.
Vejamos aqui uma peculiaridade. Diferentemente do que dispositivos legais que tratam de início de vigência normalmente fazem, o Príncipe não disse a partir de quando a norma seria vigente. Mais do que isso, ele proibiu a aplicação da norma para autuações anteriores a 2014. Foi muito enfático, portanto.
Além disso, fez questão de inserir o § 12 à norma, para dizer que a isenção de IRRF em nada interfere nas cobranças de CIDE e PIS/COFINS. Vejamos o que disse a exposição de motivos:
4.6. Por fim, o § 12 traz norma que esclarece que os percentuais definidos nos §§ 2º e 9º não se aplicam à apuração da contribuição de intervenção de domínio econômico - CIDE de que trata a Lei nº 10.168, de 29 de dezembro de 2000, da Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público incidente na Importação de Produtos Estrangeiros ou Serviços - PIS/PASEP-Importação e da Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social devida pelo Importador de Bens Estrangeiros ou Serviços do Exterior - COFINS-Importação, permanecendo válidas, para efeitos de apuração desses tributos, a natureza e as condições do contrato de afretamento ou aluguel.
A norma era clara! Disse Arnaldo, o comentarista Mor do Reino. Achou o Príncipe que assim as contas do Reino estariam resguardadas, pois ele foi claro ao dizer o tamanho da benesse que lhe rendeu a Coroa.
A Procuradoria da Fazenda Nacional, então, aliviada, levou em embargos essa questão, mostrando que houve uma omissão na análise dos dispositivos legais, que não foram lidos por completo, com todos os parágrafos que a lei agora possuía. Mas o Príncipe não foi mais ouvido. No julgamento dos embargos (Acórdão n. 3201-003.507), o CARF entendeu que a lei salvadora, antes um Príncipe encantado, agora era um mero vassalo. Poderia a Turma, agora, abandonar a lei e dizer que mesmo sem ela teria chegado ao mesmo resultado. Que a lei foi apenas um reforço de argumento para mostrar que o split 80/20 era totalmente normal e que eles, julgadores, poderiam renunciar às receitas, mesmo contra a vontade do rei e mesmo sem avaliar se o Tesouro Nacional suportaria aquilo.
Na Corte, então, o Príncipe percebe mais um equívoco. Percebeu que os percentuais que havia criado na primeira norma não eram plausíveis. Viu que em nenhuma hipótese a exploração de petróleo gastaria 80% do valor contratual só com o aluguel da plataforma. Viu também que poderia arrumar problema com os reinos vizinhos, já que os parâmetros internacionais de split contratual nunca admitiriam esses percentuais, sob pena de se configurar uma concorrência desleal. A matéria foi objeto do PARECER/ PGFN/CAT/Nº 763/2017. Constou da exposição de motivos da MP n. 795/2017:
4.1. A alteração promovida pelo art. 106 da Lei nº 13.043, de 13 de novembro de 2014, no § 2º do art. 1º da Lei nº 9.481, de 1997, estabeleceu, para fins de redução a zero da alíquota do IRRF, percentuais máximos atribuídos aos contratos de afretamento ou aluguel de embarcações marítimas relacionados à prospecção e exploração de petróleo ou gás natural. A referida alteração visava a limitar o benefício fiscal de redução a zero da alíquota do IRRF e, simultaneamente, dar segurança jurídica, uma vez que o Fisco estava desconsiderando os contratos de afretamento realizados pelas empresas do setor.
4.2. Entretanto, os percentuais atualmente estabelecidos apresentam um desequilíbrio econômico e não estão compatíveis com os percentuais adotados por outros países. Nesse sentido, o § 9º ajusta os percentuais a fim de manter a segurança jurídica.
Diante dessa constatação o § 9º passou a prever que o percentual de afretamento passaria a ser de 65% (sessenta e cinco por cento), quanto às embarcações com sistema do tipo sonda para perfuração, completação e manutenção de poços.
Em outras palavras, agora o split poderia acontecer apenas até a proporção 65/35, o que excluiria quase todos os contratos fraudulentos da Petrobrás. Isso gerou alvoroço na nobreza, como há de se esperar. Para evitar uma revolta, o Príncipe, nada maquiavélico, fez um ato de clemência. Criou um parcelamento para que essa nobreza pudesse regularizar os valores, recolhendo as diferenças que deixaram de ser pagas. O parcelamento consta do art. 3º da Lei n. 13. 586/2017, decorrente da conversão daquela MP. Constou da sua exposição de motivos da MP:
<ol start="5">
<li>O art. 3º deste Projeto possibilita que, para os fatos geradores ocorridos até 31 de dezembro de 2014, as empresas possam adotar os percentuais máximos previstos no § 2º do art. 1º da Lei nº 9.481, de 1997, mediante recolhimento em janeiro de 2018 da diferença de IRRF, acrescida de juros de mora, com redução de 100% (cem por cento) das multas de mora e de ofício, condicionada à desistência expressa e irrevogável das ações administrativas e judiciais. Isso porque, antes do estabelecimento dos percentuais expressamente em lei, havia grande divergência de entendimento entre o Fisco e os contribuintes, o que gerava litígios administrativos e judiciais.</li>
</ol>
5.1. Os §§ 3º e 4º possibilitam o pagamento da diferença de IRRF em doze parcelas, sendo a primeira parcela com vencimento no mês de janeiro de 2018 e as demais onze parcelas com vencimento no último dia útil dos meses subsequentes.
5.2. Estima-se que, com a alteração promovida pelo art. 3º, haja uma recuperação de IRRF apurados, em relação às operações realizadas entre 2012 e 2014, de R$ 546,13 milhões.
O Príncipe, ingênuo, como podemos perceber, achava que esse parcelamento até geraria receitas para o Reino. Mas ele esqueceu que o Reino se situava no lado de baixo do Equador, aonde não existe pecado. Foi aí que viu os contribuintes saírem em cortejo, pelas ruas, cantando: “nós não vamos pagar nada, lá, lá, lá, lá, a solução é alugar... as plataformas”.
E a matéria, então, voltou a ser discutida no CARF, em lançamento de CIDE, no Processo n. 16682.720407/2014-79, da BP Energy, no qual o contribuinte passou a defender que aquela lei, outrora salvadora, que levou à famosa guinada jurisprudencial do Acórdão n. 3201-003.150, já não vale mais nada. Que aquele entendimento inicial seria o mesmo, ainda que a lei não tivesse sido editada.
E corre a notícia de que ultimamente o Príncipe anda sumido. Que ninguém mais lembra dele. E já se especula que ele tenha virado sapo, contrariando a ordem natural das histórias de contos de fadas.

petrobras-carf-cobranca-repetro

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Um negócio da China, se não estivéssemos falando do Reino das Águas Profundas

Contratos de afretamento da Petrobras. Como terminará esse conto de fadas?

Um negócio da China, se não estivéssemos falando do Reino das Águas Profundas