Elisângela Machado Côrtes
Defensora pública federal
O Projeto Volta Grande (PVG), da mineradora canadense Belo Sun[1], pretende se instalar na região conhecida como Volta Grande do Xingu (PA), palco dos principais impactos socioambientais causados pela Usina Hidrelétrica Belo Monte. Se efetivado, o empreendimento instalará a maior mina de ouro a céu aberto do país, com uma barragem de rejeitos ainda maior do que a que se rompeu em Mariana (MG).
Desde seu início, os Ministérios Públicos Federal e do Estado e as Defensorias Públicas da União (DPU) e do Estado (DPE) têm apontado falhas no respectivo processo de licenciamento. Há decisão judicial vigente suspendendo sua instalação devido à falta de estudos dos impactos sobre as comunidades indígenas da região[2].
Além disso, a área pretendida pela mineradora é de terras públicas federais sob domínio do Incra, onde estão comunidades tradicionais que exercem atividades de agricultura, pesca e extrativismo de subsistência.
Nos últimos anos, vários instrumentos foram firmados para agilizar o repasse de terras do Incra à empresa, culminando, em 26 de novembro de 2021, na celebração do Contrato de Concessão de Uso n.º 1.224/2021. Com isso, a autarquia constituiu, em favor da Belo Sun, o “direito de Uso, de 2.428,00 hectares, sendo que a área sobreposta ao PA Ressaca corresponde a 1.439,00 ha e a área sobreposta à Gleba Ituna é de 989,00 ha”.
Contudo, esse acordo padece de diversos vícios insanáveis e, portanto, nulos de pleno direito, os quais são objeto de uma recente ação civil pública ajuizada na Justiça Federal em Altamira (PA) pelas Defensorias da União e do Estado. Elas apontam que, de 2012 a 2016, a Belo Sun se apossou de cerca de 3.500 hectares de terras no Projeto de Assentamento (PA) Ressaca e na gleba federal Ituna sem qualquer autorização válida do poder público federal[3].
O Incra teve ciência dessa situação, mas não adotou medidas para proteger os beneficiários e os pretendentes da reforma agrária que ali estavam. Pelo contrário, embora tenha reconhecido que a Belo Sun se apropriou ilegalmente das terras públicas, concluiu que, por isso mesmo, tais áreas já estariam desocupadas e desafetadas, e poderiam ser destinadas para benefício da própria mineradora.
Em acréscimo, a ação civil pública demonstra que o Incra não cumpriu com sua obrigação legal de realizar vistoria para fins de supervisão ocupacional no PA Ressaca antes da celebração do contrato. Ressalta-se que, em visita técnica realizada em fevereiro de 2022, a DPU identificou famílias com potencial de reforma agrária vivendo na área concedida ao empreendimento e nos lotes limítrofes.
A estreita relação entre Incra e Belo Sun também é questionada em razão do alinhamento do discurso de suposto abandono dos lotes do PA Ressaca pelos trabalhadores/as assentados/as, situação que, reitera-se, não foi confirmada[4].
Outro problema central no contrato apontado na ação é que o instrumento excluiu do seu objeto, de forma injustificada, uma parte significativa da área de influência direta (AID) do PVG, ou seja, da área onde ocorrerão os impactos diretos do empreendimento.
De fato, o próprio Incra apurou que a área direta e indiretamente afetada pelo empreendimento seria de 4.131,58 hectares, sendo que a área sobreposta ao PA Ressaca corresponderia a 2.049,55 hectares e o restante se sobreporia à gleba Ituna. Tais dados foram extraídos dos diversos mapas e relatórios apresentados pela própria Belo Sun ao longo dos anos. Sem embargo, em 2021, de maneira injustificada, a Belo Sun informou ao Incra ter interesse em apenas 2.428 hectares de terras (abrangendo o PA Ressaca e Gleba Ituna).
Em seguida, houve uma repentina redução da área de sobreposição ao PA Ressaca para 1.439 ha. Isso se deu a despeito de: 1) a própria empresa ter afirmado, no licenciamento ambiental, que a área sobreposta corresponderia a 2.049,55 ha e 2) a empresa ter adquirido ilegalmente 1.761,15 ha dentro do PA. Já a redução da área de sobreposição à gleba Ituna para 989 ha se deu apesar de a empresa ter adquirido ilegalmente 1.734,40 ha dentro da gleba. Isso caracteriza burla à competência do Congresso Nacional para aprovar a concessão de uso de terras públicas com área superior a 2.500 hectares (arts. 49, XVII, e 188, § 1º, da Constituição Federal).
Além disso, há ao menos 80 títulos minerários da Belo Sun registrados na Agência Nacional de Mineração (ANM). A área concedida pelo Incra corresponde a apenas 12% dos mais de 188 mil hectares pretendidos pela empresa, sendo apenas a porta de entrada para um megaempreendimento minerário que pretende se expandir muito mais ao longo dos anos.
A ação civil pública também aponta para a absoluta falta de participação social na elaboração do contrato. Com isso, foram estipuladas medidas compensatórias de maneira arbitrária e que não refletem melhorias concretas à população local, que não foi envolvida na discussão.
Outro problema identificado se refere à ausência de regularização fundiária dos imóveis da União denominados “Vila do Galo” e “Vila da Ressaca”, ambos inseridos na gleba Ituna e que integram a área concedida à Belo Sun no acordo com o Incra.
Em outra ação civil pública também em trâmite na Justiça Federal em Altamira, a DPU aponta que tais áreas foram declaradas de interesse do serviço público para fins de regularização fundiária de interesse social pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU) em 2015. Contudo, mais de seis anos após a publicação das portarias, os processos não tiveram resolução. Ao ser questionada sobre o assunto pela DPU, a SPU atribuiu tal demora ao Incra, a quem caberia realizar o desmembramento da gleba Ituna.
Tem-se, assim, a contínua recusa do Incra em prestar o serviço público que lhe compete (promoção da regularização fundiária e reforma agrária), violando direitos fundamentais como o acesso à terra e à moradia. A população que reside nessas vilas desde meados da década de 1970 e poderia se beneficiar da regularização fundiária continua privada desse serviço. Caso o projeto minerário prossiga, apesar de tudo que foi apontado, a compensação dessa população pelos impactos à sua moradia será limitada, pois sua posse não tem reconhecimento oficial.
É por esses e outros fundamentos que a DPU e a DPE-PA defendem a necessidade de anulação do contrato formalizado pelo Incra, e da licença de instalação concedida pela Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Estado do Pará. Pedem também o reconhecimento do direito de a população afetada se manifestar sobre o destino das áreas públicas que ocupa e que o processo administrativo de regularização fundiária tenha continuidade e seja concluído em prazo razoável, fixado pelo Judiciário.
[1] Reportagem da Agência Pública revelou as teias de relações envolvendo o banco Forbes & Manhattan, controlador dos ativos da Belo Sun, militares da reserva contratados como consultores e altas autoridades do governo federal, as quais teriam sido determinantes para o destravamento das demandas da mineradora canadense. Disponível em: Como o lobby de um militar da reserva favoreceu mineradoras canadenses na Amazônia - Agência Pública
[2] Belo Sun: Justiça mantém suspenso o licenciamento para projeto de extração de ouro no Pará | Pará | G1 (globo.com)
[3] Por força do disposto no art. 50 da Lei 6.766/1979, configura crime lotear, desmembrar ou fazer propostas sobre terras públicas, sem autorização do órgão competente e em desacordo com a legislação. Também se depreende do art. 72 do Decreto n.º 59.428/1966 que eventuais cessões e arrendamentos de lotes destinados à reforma agrária dependem de autorização expressa do Incra.
[4] SILVA, Elielson Pereira da. Dossiê: expropriação ecobiopolítica e mineração no Projeto de Assentamento Ressaca, Volta Grande do rio Xingu. Belém: Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia; UFPA/NAEA, 2022.