Luiz Eduardo Camargo Outeiro Hernandes

Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros

O Estado brasileiro torturou, matou, ocultou corpos e promoveu uma série de violações sistemáticas de direitos humanos durante a ditadura militar. Argumentar de modo contrário a isso não é construir uma outra versão, mas ignorar os fatos que foram reiteradamente comprovados pela atuação do próprio Estado Brasileiro e das Cortes Internacionais.
Dentro da atuação do Estado brasileiro merece destaque o trabalho desenvolvido por Eugênia Gonzaga à frente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos - CEMDP, em especial na identificação dos restos mortais de pelo menos cinco vítimas do período de exceção na chamada “Vala das ossadas de Perus”<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a>, bem como na concessão das certidões de óbito retificadas<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a> aos familiares de mortos e desaparecidos políticos, nas quais passou a constar expressamente a responsabilidade do Estado pela morte dessas pessoas.
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Essa atuação, que permitiu o respeito à memória e o reconhecimento da verdade, bem como respostas para os familiares das vítimas, não se deu sob bases ideológicas, mas sob bases jurídicas, a partir da condenação do Brasil no caso “Gomes Lund” e mais recentemente no caso Herzog. 
E são com bases jurídicas que se observa com preocupação o afastamento de Eugênia Gonzaga dos trabalhos da CEMDP. A expertise acumulada e a dedicação por ela apresentada nos anos à frente da presidência da Comissão não a tornam insubstituível, mas torna imprescindível que sua substituição se dê com base em premissas técnicas, como a experiência na matéria, pluralidade na formação da composição da Comissão, independência, idoneidade e transparência na seleção de seus membros e na representatividade adequada do direito a ser tutelado, sob pena de que os trabalhos fiquem inviabilizados ou que não haja uma abordagem tecnicamente correta dos elementos já existentes acerca dos abusos cometidos durante o regime militar.
Isso porque a Corte Interamericana Direitos Humanos já estabeleceu que o direito dos familiares das vítimas de identificar o paradeiro dos desaparecidos e, se for o caso, saber onde se encontram seus restos constitui uma medida de reparação e, portanto, gera o dever correspondente, para o Estado, de atender a essa expectativa (Caso Velásquez Rodríguez; Caso Neira Alegría e outros versus Peru). Receber os corpos das pessoas desaparecidas é de suma importância para seus familiares, já que lhes permite sepultá-los de acordo com suas crenças, bem como encerrar o processo de luto vivido ao longo desses anos (Caso Gomes Lund; Caso Do Massacre de Las Dos Erres). A Corte já reconheceu que o direito dos familiares de vítimas de graves violações de direitos humanos de conhecer a verdade está compreendido no direito de acesso à justiça. Considerou também a Corte a obrigação de investigar como uma forma de reparação, ante a necessidade de remediar a violação do direito de conhecer a verdade em um caso concreto (Caso Gomes Lund; Caso Velásquez Rodríguez).
A Lei nº 9.140/95 se traduziu em ato de reconhecimento do Estado brasileiro acerca da responsabilidade interna na medida em que reconheceu como mortas, para todos os efeitos legais, as pessoas relacionadas em seu Anexo I, por terem participado, ou terem sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, desde então, desaparecidas, sem que delas haja notícias. 
Ademais, a Lei nº 9.140/95 criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos com a finalidade, entre outras, de localizar os restos das pessoas desaparecidas, reconhecê-las como vítimas e, conforme o caso, autorizar o pagamento de indenizações. A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos se constituiu como conquista dos familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil e foi expressamente reconhecida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como uma medida de reparação adotada pelo Estado brasileiro a respeito das vítimas do regime militar (Caso Gomes Lund).
A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos se constitui um ato de reparação estatal de boa-fé para com as vítimas e familiares no âmbito da reconstrução da memória e da verdade. Trata-se de órgão de Estado, e sua composição plural reflete os compromissos assumidos por força da boa-fé do Estado brasileiro ao adotá-la como medida de reparação. Além disso, conforma-se como mais um mecanismo de investigação ligado ao direito dos familiares quanto à memória e a verdade dos fatos. Nesse caso, a própria investigação é ato de reparação. 
Dessa forma, as modificações na composição da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos não podem implicar em violação ao dever de reparação do Estado brasileiro assumido de boa-fé com para com as vítimas e familiares quando da edição da Lei nº 9.140/95 e da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, bem como não podem configurar violação ao dever de investigar como forma de reparação expressamente reconhecido no caso Gomes Lund.
Da mesma forma, alterações na composição da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos não podem ferir os critérios de independência, idoneidade e transparência na seleção de seus membros, conforme reconhecido pela Corte Interamericana Direitos Humanos no Caso Gomes Lund, quando analisou os critérios para a criação da Comissão Nacional da Verdade, aplicáveis pelas mesmas razões de direito à Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. A garantia da independência da autoridade de investigação foi reafirmada pela Corte no Caso Herzog, na medida em que o Estado não pode eximir-se de suas “obrigações positivas de garantir o direito à verdade” e deve “envidar esforços substantivos” e “destinar todos os recursos necessários” para tanto.
Dessa forma, mudanças e substituições que possam eventualmente trazer risco ao cumprimento das decisões e à lei que instituiu a CEMDP não podem ser vistas como naturais, nem juridicamente corretas, posto que suas violações podem levar a nova responsabilização do Estado brasileiro perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
O dever do Estado brasileiro de promover a verdade acerca dos mortos e desaparecidos entre 1964 e 1985 não é uma questão de orientação ideológica, mas de justiça.
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<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1 </a><a href="https://oglobo.globo.com/brasil/comissao-de-mortos-desaparecidos-identifica-nova-ossada-de-opositor-no-cemiterio-de-perus-23276899">https://oglobo.globo.com/brasil/comissao-de-mortos-desaparecidos-identifica-nova-ossada-de-opositor-no-cemiterio-de-perus-23276899</a> . Uma abordagem mais detalhada do trabalho desenvolvido pode ser encontrado no artigo de Thaís Ferreira – Vala de Perus: A atuação do MPF e o desterro da memória, disponível em <a href="http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/publicacoes/coletaneas-de-artigos/07_18_coletanea_de_artigos_justica_de_transicao">http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/publicacoes/coletaneas-de-artigos/07_18_coletanea_de_artigos_justica_de_transicao</a>.
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<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2 </a><a href="http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/informativos/edicoes-2019/maio/familiares-de-desaparecidos-politicos-recebem-certidoes-de-obito-retificadas">http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/informativos/edicoes-2019/maio/familiares-de-desaparecidos-politicos-recebem-certidoes-de-obito-retificadas</a>
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JOTA

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