Thaís Pinhata

Camila Jacome

Em 9 de abril de 2021, foi publicado neste espaço o artigo <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-juri-feminista-que-ninguem-viu-09042021">“O Júri feminista que ninguém viu”</a>.O texto tratava da sessão plenária de julgamento pelo Tribunal do Júri que tratou da morte de Ingriane, tendo a ré sido condenada no mínimo legal. Naquele dia, o julgamento do corréu foi separado e posteriormente agendado para o último dia 14 de outubro. Sobre ele, trataremos no presente texto.
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Itaipava, 14 de outubro de 2021. Na entrada do fórum vemos um burburinho de pessoas agitadas com o novo julgamento do caso que ficou popularmente conhecido nas manchetes nacionais e internacionais como o "caso do talo de mamona", após a fala da professora Débora Diniz na Audiência Pública sobre os temas trazidos na ADPF nº 442. O palco desse relato é uma cidade do interior do Rio de Janeiro, onde apenas essa audiência será realizada. É dia de escrever mais um capítulo dessa triste história repleta de sensibilidades que refletem o dramático quadro brasileiro sobre o aborto.
<a href="https://www.jota.info/produtos/saude?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Saude_materias"><img class="aligncenter wp-image-292716 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/cta-jota-pro-saude.png" width="688" height="688" /></a>
Sabemos que a narrativa não é a forma mais convencional de falar do Direito, entretanto, o pulso inicial do estudo deste caso é questionar qual o papel do Direito na perspectiva da igualdade de gênero, o que demanda uma leitura para além dos frames clássicos metodológicos.
É através do diálogo entre a teoria e a prática que se torna possível avaliar com detalhamento alguns aspectos sensíveis à temática, com o objetivo de realizar inferência sobre a atuação estatal frente a problemática. Reconhecer as sensibilidades que perpassam os objetos de análise permite, nesse sentido, identificar como os eixos de dominação atuam desigualmente sobre o cotidiano das mulheres, e é justamente por meio da identificação desses atravessamentos que o Direito será utilizado como ferramenta de transformação social.
No banco de cimento localizado à frente da entrada do prédio, encontra-se uma família com os olhos inchados e expressões faciais que refletem a angústia vivida nos últimos quatro anos. No centro desses corpos trêmulos e ansiosos, temos o réu do caso, cujos caminhos traçados para sua vida serão, mais tardar, definidos ao final do dia. Ao longo do processo conhecemos a sua história, foi ele quem indicou o telefone da também acusada, que realizou o procedimento na vítima Ingriane. Um amigo que viveu o drama da vítima e tentou ajudá-la no momento mais sensível da sua vida. Nesta história é importante termos em mente que a pobreza e o desamparo estão a andar de mãos dadas com seus personagens.
Por último, avistamos a chegada do suposto pai, que ao cruzar com os nossos olhares abaixa a cabeça. Em um sinal que nos transmite vergonha e indignação, é impossível não lembrarmos do seu depoimento anterior, no qual afirmou: “Eu não sei nem por qual motivo estou aqui, sinceramente”. Frase dita após os questionamentos acerca do apoio que este poderia ter dado à vítima. Nesse ponto, é importante recordarmos que não há nos autos nenhuma troca de mensagem ou depoimento que apresentem seu apoio tanto psicológico quanto financeiro a Ingriane ao descobrir a gestação. Não foi ele quem esteve ao seu lado, e sim o seu amigo, que hoje se encontra no banco dos réus.
A tensão é clara e se segue a um estranho momento de silêncio em que todos os jurados são convocados a entrar na sala de julgamento. Minutos depois, saem em debandada. Houve acordo, ainda que ninguém saiba ao certo como se deu. A família, perdida, espera por notícias. Entramos na sala e somos informadas que sim, houve “acordo”: após quatro anos de espera, Jonathan, com a desclassificação do crime previsto do artigo 126 para o 124, ambos do Código Penal, lhe teve oferecida a suspensão condicional do processo, como era de se esperar, considerando histórico da atuação jurisprudencial no Estado.
Nesse sentido cumpre informar que conforme o levantamento realizado pela Defensoria do Estado do Rio de Janeiro nos processos judiciais referentes à prática de aborto no estado no período compreendido entre 2005 e 2017, constatou-se que oito réus foram denunciados pela participação no crime de aborto praticado pela gestante, como trazido pelo caso “talo de mamona”.
Nesses casos, os acusados foram denunciados pelo art. 124 na forma do art. 29 do Código Penal, que prevê que quem concorre para a prática do crime também sofrerá reprimenda penal na medida da sua culpabilidade. Importa ressaltar que nos casos em que a pena atribuída à conduta proibida for igual ou inferior a um ano é cabível o benefício da suspensão condicional do processo.
Ficou claro que, em tendo sobrevivido, provavelmente o mesmo benefício seria oferecido a Ingriane. Bem como à mulher detida no último dia 2 durante um procedimento abortivo no Rio de Janeiro, em uma ação da Delegacia da Criança e Adolescente Vítima (DCAV).
A suspensão condicional do processo vem sendo uma ferramenta muito utilizada nos crimes de aborto, seja para penalizar mulheres grávidas, seja para penalizar participes que, como Jonathan, muitas vezes limitaram-se a fornecer um ombro amigo.
Acreditamos ser dispensável adereçar profundamente os efeitos prejudiciais de responder a processos criminais, mas ressaltamos que lidar com uma acusação de comportamento criminoso já é, por si só, uma pena para o acusado. Os procedimentos criminais têm o poder de Midas, mas com o resultado contrário: em tudo o que tocam, criam uma mancha indelével de sujeira e dor. Comparada com a pena específica aplicada na condenação, essa pena tem um impacto mais amplo e duradouro. Mesmo que processos tenham consequências graves em outras searas, como execuções, pensão alimentícia e improbidade administrativa, não se pode comparar aos fardos sociais negativos decorrentes do processo penal na vida do acusado.
E assim emergem os seguintes questionamentos: por qual razão o benefício que o acusado tinha por direito não lhe foi oferecido no início do processo? Será que impor o martírio será sempre o comportamento estatal frente aos casos de aborto? Em uma sociedade em que a prática de aborto é mais recorrente do que os discursos conservadores se negam a admitir, assistir ao sofrimento dos mais vulneráveis parece integrar a cartilha de atuação do controle penal.
Em um Estado que penaliza quem tenta amenizar as dores do abandono vivido pelas mulheres, o resultado do julgamento trouxe um alívio mesmo que tardio a quem se mostrou amigo, mas deixou um rastro de quatro anos de ansiedade e desamparo que não podem mais ser recuperados.
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congelamento de óvulos

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JOTA

Resultado do julgamento trouxe um alívio tardio, mas deixou rastro de quatro anos de ansiedade e desamparo que não podem mais ser recuperados

A continuação de um júri feminista que ninguém viu

Resultado do julgamento trouxe um alívio tardio, mas deixou rastro de quatro anos de ansiedade e desamparo que não podem mais ser recuperados