André Luiz Fonseca Fernandes

Em <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-litigio-zero-e-a-lei-de-transacao-tributaria-26052023">artigo</a> recentemente publicado neste JOTA e que abordou o Programa Litígio Zero (Programa de Redução de Litigiosidade Fiscal – PRLF, disciplinado pela Portaria Conjunta PGFN/RFB 1/23), Andréa Mascitto e Tathiane Piscitelli ilustraram relevante ponto de preocupação sobre o respeito e a observância de critérios de irrecuperabilidade e de definição de descontos na celebração da transação tributária.  
O artigo chama a atenção, inicialmente, para o artigo 12 da Portaria Conjunta RFB/PGFN 1/2023, segundo o qual: “o percentual efetivo do desconto observará a capacidade de pagamento do contribuinte” na modalidade de transação de créditos em contencioso administrativo fiscal prevista no programa. Tal observância da capacidade de pagamento implica a análise das condições econômico-financeiras do contribuinte e sua capacidade de quitar dívidas no prazo de cinco anos. 
Em seguida, o artigo destaca o parágrafo único do artigo 4º daquela portaria, segundo o qual: “são também considerados irrecuperáveis os créditos tributários em contencioso administrativo fiscal, no rito do Decreto 70.235, 6 de março de 1972, há mais de 10 anos”.   
A partir de tais normas, Andréa Mascitto e Tathiane Piscitelli propõem relevante questão: “essa classificação de crédito irrecuperável por ser objeto de contencioso administrativo há mais de dez anos seria suficiente para garantir o desconto máximo nessa transação por adesão, sem levar em conta o critério subjetivo da capacidade contributiva do contribuinte?”. 
A despeito da coerente resposta elaborada pelas autoras, e tendo em vista que o prazo de adesão ao programa foi recentemente prorrogado para o próximo dia 31 de julho[1], parece relevante voltar ao tema e propor solução de tonalidade um pouco distinta, que parte da mesma premissa: há critérios distintos – capacidade de pagamento do contribuinte e temporalidade dos créditos tributários (que tem ligação com as chances de sucesso na sua cobrança) — a serem considerados na correlação entre grau de recuperabilidade de tais créditos/fixação de descontos no âmbito da transação em contencioso administrativo fiscal[2].   
Não são, é verdade, os únicos critérios considerados na mencionada portaria. Tal correlação não está presente na transação no contencioso de pequeno valor, outra modalidade de transação prevista na portaria e que independe da capacidade de pagamento do contribuinte, da classificação da dívida ou de sua temporalidade[3]. Aqui parece ter prevalecido o critério do custo de cobrança, responsável pela definição de percentuais fixos de desconto da dívida[4]. 
Ao cuidar destas modalidades de transação, a portaria em causa privilegia e/ou mescla, assim, quatro critérios que conectam o grau de recuperabilidade dos créditos tributários à fixação de descontos: a capacidade de pagamento do contribuinte, a temporalidade da dívida, o sucesso na sua cobrança e o custo desta cobrança.  
Mas será que esta preferência/mescla de critérios responsáveis pela delimitação de grau de recuperabilidade/descontos foi validamente feita pela portaria? Na respectiva transação no contencioso administrativo fiscal, a classificação de crédito irrecuperável — objeto de contencioso administrativo há mais de dez anos — seria suficiente para definição dos descontos (inclusive em grau máximo), ou deveria prevalecer o critério da capacidade de pagamento do contribuinte? Ou seria necessária a conjugação de ambos? Já na transação no contencioso de pequeno valor, será que tal capacidade de pagamento poderia ser inteiramente desconsiderada? 
Embora a <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13988.htm">Lei 13.988/20</a> contemple estes e outros critérios, nem a preferência em relação a algum deles, nem a respectiva conjugação foi ali regulada. Com efeito, lê-se naquela lei que a transação poderá contemplar descontos em multas/juros/encargos legais dos créditos classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação, conforme critérios estabelecidos pela autoridade competente. Esta autoridade é, atualmente, o procurador-geral da Fazenda Nacional (PGFN), a quem cabe disciplinar os critérios para aferição do grau de recuperabilidade das dívidas e os parâmetros para a concessão de descontos, que abrangem o insucesso dos meios de cobrança, “a temporalidade, a capacidade contributiva do devedor e os custos da cobrança” (parágrafo único do artigo 14 da citada lei).  
Assim, a Lei 13.988/20 estabelece a ligação entre grau de recuperabilidade das dívidas e padrões de descontos e menciona alguns dos elementos objetivos a serem considerados nesta ligação (igualmente referidos pela Portaria anteriormente citada): o insucesso dos meios de cobrança, a temporalidade, a capacidade contributiva e os custos de cobrança. Compete ao PGFN a concretização desta ligação e a regulamentação destes elementos.   
Não há na lei, entretanto, a definição sobre os parâmetros aptos a autorizar a preferência por um destes elementos na seara transacional, ou mesmo a sua conjugação com outros elementos. Sem esta definição, a transação poderá — nas hipóteses de preferência ou conjugação de critérios estabelecidas pelo PGFN — ser maculada por uma discricionariedade não desejada, trazendo insegurança jurídica e possível desigualdade para o instituto.  
Trata-se de uma discricionariedade que não é inerente a este meio autocompositivo federal e que deve ser evitada. A <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Exm/Exm-MP-899-19.pdf">Exposição de Motivos</a> da Lei 13.988/20 assinala que a transação não tem apenas viés arrecadatório, mas também de correto tratamento dos contribuintes, o que significa que estes somente podem ser tratados de modo desigual com base em justificados parâmetros normativos. Ausentes tais parâmetros, como se nota em relação à preferência/conjugação de critérios de ligação entre grau de recuperabilidade das dívidas e padrões de descontos, a insegurança jurídica e a desigualdade são previsíveis consequências.  
De fato, insegurança jurídica e desigualdade estão presentes na Portaria Conjunta RFB/PGFN 1/23. Na transação na cobrança em contencioso administrativo fiscal, o percentual de desconto parece estar ligado, sobretudo, à capacidade de pagamento do contribuinte (artigo 12 da citada portaria). Mas seria este o principal ponto a se considerar no caso de créditos tributários em contencioso administrativo fiscal há mais de 10 anos? Os critérios de maior peso na concessão de descontos não deveriam ser a temporalidade e o possível insucesso na cobrança de tais créditos? Sem dúvida, a concretização do correto tratamento dos contribuintes passa pela maior relevância destes últimos critérios para determinação dos descontos na via da transação.  
Já a transação no contencioso de pequeno valor prevista na portaria independe da capacidade de pagamento do contribuinte e da classificação da dívida. Ou seja: os custos de cobrança parecem ter sido escolhidos como critério de maior peso na concessão de descontos (artigo 13 da portaria). Mas seria possível desconsiderar inteiramente a capacidade de pagamento/classificação da dívida? Evidentemente, tal desconsideração prejudica os contribuintes de menor capacidade contributiva, os principais beneficiários desta modalidade de transação.  
São elementos da portaria que comprovam a presença de uma discricionariedade promotora de insegurança e desigualdade, oriunda da inexistência de parâmetros normativos adequados na Lei 13.988/20.   
Enquanto tais parâmetros não forem incorporados ao regime jurídico da transação federal, é indispensável que sejam revistos, pelo PGFN, os pesos dos critérios em questão na fixação das balizas para as concessões oferecidas ao contribuinte na Portaria Conjunta RFB/PGFN 1/2023. Um primeiro passo seria revisitar tal portaria para deixar clara a relevância da capacidade de pagamento na transação no contencioso de pequeno valor e da temporalidade/possível insucesso na transação na cobrança em contencioso administrativo fiscal, de modo que esta relevância seja refletida nos descontos oferecidos aos contribuintes.
<hr />
[1] Portaria Conjunta PGFN/RFB 8/23<span class="EOP SCXW138439477 BCX0" data-ccp-props="{&quot;201341983&quot;:0,&quot;335551550&quot;:6,&quot;335551620&quot;:6,&quot;335559685&quot;:0,&quot;335559731&quot;:0,&quot;335559740&quot;:240,&quot;335559991&quot;:284,&quot;469777462&quot;:[284],&quot;469777927&quot;:[0],&quot;469777928&quot;:[1]}"> 
[2] Como assinalam Andréa Mascitto e Tathiane Piscitelli no mencionado artigo: “na prática, quando da simulação e adesão ao programa, os contribuintes com dívidas discutidas há mais de dez anos na via administrativa notaram que não alcançaram necessariamente a redução máxima prevista na portaria regulamentar, a despeito de serem automática e objetivamente classificadas como irrecuperáveis. Diante da experiência prática, o que se observou, porém, é que, ainda que preenchido o critério objetivo da irrecuperabilidade, a capacidade econômico-financeira de pagamento foi considerada a fim de se fixar qual o nível de desconto atribuído.” Este assunto merece futura pesquisa empírica.<span class="EOP SCXW213665917 BCX0" data-ccp-props="{&quot;201341983&quot;:0,&quot;335551550&quot;:6,&quot;335551620&quot;:6,&quot;335559685&quot;:0,&quot;335559731&quot;:0,&quot;335559740&quot;:240,&quot;335559991&quot;:284,&quot;469777462&quot;:[284],&quot;469777927&quot;:[0],&quot;469777928&quot;:[1]}"> 
[3] Exceto no caso dos créditos inscritos na dívida ativa da União há mais de 1 (um) ano, que também podem ser incluídos nesta modalidade de transação. <span class="EOP SCXW54274816 BCX0" data-ccp-props="{&quot;201341983&quot;:0,&quot;335551550&quot;:6,&quot;335551620&quot;:6,&quot;335559685&quot;:0,&quot;335559731&quot;:0,&quot;335559740&quot;:240,&quot;335559991&quot;:284,&quot;469777462&quot;:[7080],&quot;469777927&quot;:[0],&quot;469777928&quot;:[1]}"> 
[4] Artigo 13 da referida Portaria.<span class="EOP SCXW172260316 BCX0" data-ccp-props="{&quot;201341983&quot;:0,&quot;335551550&quot;:6,&quot;335551620&quot;:6,&quot;335559685&quot;:284,&quot;335559740&quot;:240,&quot;335559991&quot;:284,&quot;469777462&quot;:[284],&quot;469777927&quot;:[0],&quot;469777928&quot;:[1]}">

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JOTA

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Litígio Zero, descontos e irrecuperabilidade objetiva

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