Ultrapassados dois anos de vigência do novo marco legal do saneamento básico, é possível sustentar que a Lei Federal n.º 14.026/2020 reflete uma opção política pautada em três eixos principais: 1) regionalização, 2) modalidade de contratação dos serviços e 3) regulação. Cada um desses pilares suscita disposições normativas que, em última análise, estão voltadas ao alcance das novas metas de universalização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário no Brasil.

Em relação ao primeiro, o novo marco busca implementar a prestação regionalizada dos serviços, com vistas a evitar que as operações sejam conduzidas de modo local – individualmente pelos municípios. Muitos são os motivos que fundamentam essa escolha, porém, cumpre destacar um em específico: o formato viabiliza a materialização de subsídios cruzados entre operações deficitárias e lucrativas, contribuindo para o alcance das metas em regiões historicamente menos atrativas.

Adere ao contexto indicado o modelo de contratação definido como regra na nova lei: contratos de concessão precedidos por licitações públicas. A ideia é providenciar uma abertura de mercado para os operadores privados, instituindo, com isso, maior competitividade a um setor que sempre foi conhecido por contratações diretas (contratos de programa) entre municípios e companhias estaduais de saneamento básico (CESB’s)^[^1].

Finalmente, vislumbra-se na regulação um alicerce fundamental à engenharia política que fixa as bases da Lei Federal n.º 14.026/2020. Ao outorgar competência à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) para editar Normas de Referência, o novo marco acaba por constituir um mecanismo de uniformização às bases regulatórias do saneamento – tradicionalmente conhecido pela heterogeneidade normativa das agências reguladoras estaduais, municipais e intermunicipais que atuam atuantes perante a matéria.

No compasso do último eixo, surge como novidade ao setor a Consulta Pública nº 006/2022, de autoria da ANA, iniciada na data de 08/08/2022 e com previsão de encerramento para 21/09/2022. O expediente consultivo objetiva colher subsídios voltados à definição de “procedimentos de suspensão de outorgas de direito de uso de recursos hídricos”.

Apresenta, portanto, imediato diálogo com o artigo 10-A, §2º, da Lei Federal n.º 14.026/2020^[^2], cuja incidência ocorre diante de um cenário bastante específico: casos em que a prestação do serviço de produção de água ficará a cargo de uma companhia estadual, cabendo à empresa diversa – vencedora de uma licitação – a atividade de distribuição do produto ao usuário.

Trata-se de um modelo – em certa medida – peculiar no arcabouço jurídico do saneamento básico brasileiro, sendo certo que a sua compreensão exige alguns conhecimentos prévios. O primeiro deles se refere ao entendimento de que é possível segmentar o conjunto de atividades que compõem o abastecimento de água, sendo essa segmentação dividida, por exemplo, em: 1) captação, 2) tratamento de água bruta e, posteriormente, 3) distribuição de água potável.

A estrutura denota uma lógica de segregação dos serviços públicos de abastecimento de água, a partir da setorização de dois grupos de execução distintos, que são: as atividades de upstream, relacionadas à captação, à adução, ao tratamento da água bruta e à reservação de água tratada; bem como os serviços downstream, relacionados à distribuição da água tratada^[^3].

Aliás, importante notar que a modelagem binária de setorização dos serviços upstream e downstream não representa qualquer novidade à conjuntura jurídica nacional. Isso, porque resguardada eventuais diferenças, o racional de segmentação de atividades nas cadeias produtivas é algo amplamente consolidado em diversos ramos, a exemplo do setor elétrico ou de telecomunicações – que já passaram por processos de desverticalização^[^4].

Apesar de pouco usual no setor do saneamento, é necessário notar que, inclusive para ele, o modelo suscitado não apresenta ineditismo. A desestatização dos serviços no Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, foi concluída a partir de um projeto do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que faz uso da lógica de segregação de etapas upstream e downstream.

No caso em comento, se, por um lado, para os municípios não integrantes da região metropolitana fluminense as duas etapas foram objeto de licitação; por outro lado, em relação à região metropolitana propriamente dita, a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) continua a prestar os serviços de upstream, cabendo a execução de atividades de downstream às concessionárias privadas vencedoras dos certames.

Nessa esteira, a modelagem carioca bem representa o desenho jurídico emoldurado pelo artigo 10-A, §2º, da Lei Federal n.º 14.026/2020 – que, cumpre destacar, por prescindir de licitação para um grupo específico de atividades, revela caráter excepcional, ante os anseios do novo marco.

Conforme dito, a lei do saneamento básico implementou um modelo padrão à formalização dos instrumentos: contratos de concessão precedidos por licitação. Com a vigência do artigo 10-A, §2º, de modo pontual, exclui-se a competitividade licitatória no tocante à produção de água, permitindo a continuidade desse serviço por parte das empresas estaduais detentoras de outorgas de recursos hídricos.

Isso, importante frisar, desde que: se verifique 1) a segregação de atividades (produção e distribuição), 2) a formalização do contrato de compra e venda entre o produtor e o distribuidor de água (para o qual se exige licitação) e, ainda, como condição absolutamente necessária ao modelo sob análise, 3) a companhia estadual detenha a(s) outorga(s) de recursos hídricos que fundamente(m) a viabilidade da operação.

Diante desse contexto, é inegável o impacto de uma Resolução normativa oriunda da ANA, que venha a estabelecer “procedimentos de suspensão de outorgas de direito de uso de recursos hídricos”. Em verdade, põe-se ao exame da população, com a Consulta Pública nº 006/2022, parâmetros normativos que afetam diretamente instrumentos de grande valia às operações de saneamento – em especial aquelas realizadas pelas companhias estaduais.

E é assim porque, nos termos indicados, as outorgas de recursos hídricos não somente são imprescindíveis à prestação dos serviços integralmente executados, mas também absolutamente necessárias em cenários menos favoráveis às CESB’s – como é o caso da segmentação de atividades para produção de água prevista no artigo 10-A, §2º, da Lei Federal n.º 14.026/2020.

Enquanto ferramenta de gestão prevista na Política Nacional de Recursos Hídricos, a outorga objetiva assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos da água, bem como o efetivo exercício dos direitos de acesso aos recursos hídricos. A Consulta, por sua vez, acontece tendo em vista a necessidade de normatização de aspectos relacionados ao acompanhamento de prazos legais relativos à implantação dos empreendimentos relacionados aos usos de água, conforme destacado pela própria ANA^[^5].

Caberá aos interessados, portanto – e, em particular, às companhias estaduais; além de revisitar os seus acervos de outorgas, acompanhar os desdobramentos da consulta comentada, tendo em vista os efeitos regulatórios oriundos da futura Resolução na prestação dos serviços de saneamento.

1. Estima-se que até o início do novo marco legal do saneamento básico, cerca de 70% do abastecimento de água no Brasil era oriundo de companhias estatais de saneamento básico (CESB’s), conforme visto em dados disponíveis ao público no sítio do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (http://www.snis.gov.br/).

2. Artigo 10-A. Os contratos relativos à prestação dos serviços públicos de saneamento básico deverão conter, expressamente, sob pena de nulidade, as cláusulas essenciais previstas no artigo 23 da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, além das seguintes disposições:

[...]

2º As outorgas de recursos hídricos atualmente detidas pelas empresas estaduais poderão ser segregadas ou transferidas da operação a ser concedida, permitidas a continuidade da prestação do serviço público de produção de água pela empresa detentora da outorga de recursos hídricos e a assinatura de contrato de longo prazo entre esta empresa produtora de água e a empresa operadora da distribuição de água para o usuário final, com objeto de compra e venda de água.(Incluído pela Lei nº 14.026, de 2020)

3. Cumpre destacar: não se trata de um modelo fechado, posto que é possível realizar alterações específicas nos grupos de atividades, a depender do modelo a ser implementado. Aliás, A ideia de setorização de atividades, com divisões a partir da natureza que cada uma delas comporta, é bastante comum no âmbito da engenharia de produção, que, inclusive, comporta inúmeras outras classificações. Na indústria de Óleo e Gás, por exemplo, é muito comum organizar a cadeia produtiva a partir de execuções upstream, midstream e downstream. Nas tarefas de upstream estão concentradas atividades de exploração e produção de óleo e gás, diferentemente dos trabalhos de midstream e downstream, caracterizados por ofícios de refino, transporte e distribuição comercial dos produtos até o consumidor final.

4. A ideia de desverticalização (unbundling) de setores produtivas é amplamente disseminada no direito anglo-saxão. Ela propõe a adoção de um racional que, por pressuposto, aceita a possibilidade de segmentação de operações dentro de uma cadeia produtiva para, em seguida, direcionar incentivos à materialização de concorrência para pontos específicos do setor de produção de determinado produto ou serviço.

5. É a justificativa apresentada no site da Agência: “Essa consulta pública acontece devido à necessidade da ANA de normatizar aspectos relacionados à ação da Agência no acompanhamento dos prazos legais para implantação dos empreendimentos e seus usos de água. Isso envolve desde a forma de verificação do descumprimento dos prazos até sua contagem, assim como a possibilidade de sua contestação por parte do usuário outorgado e demais procedimentos regulatórios”.

Consulta pública da ANA abre diálogo sobre outorgas de recursos hídricos

Canal comporta tema com grande potencial de impacto no setor de saneamento básico brasileiro