
Um dos assuntos mais discutidos na virada do ano foi a consulta pública sobre a vacinação de crianças. Inúmeras críticas surgiram, com destaque para as que argumentaram que o assunto era demasiadamente técnico, incapaz de ser solucionado com a contribuição da sociedade.
Se é bem verdade que essa consulta não foi adequada, talvez maior verdade ainda seja que a falta de adequação nada tem a ver com a complexidade do tema. Essa ideia, aliás, pode ser bastante perigosa, eis que, no limite, pode levar a argumentos parecidos, mas corrompedores, do “governo dos sábios” platônico. Implicaria alijar da discussão aqueles que, apesar de sofrerem os efeitos da decisão, não compreendem as questões técnicas envolvidas.
Note-se que temas de altíssima complexidade técnica são rotineiramente postos ao crivo popular, e não só perante a Administração Pública. Lembremo-nos, por exemplo, das audiências públicas no Supremo Tribunal Federal (STF), que versaram sobre temas como biossegurança (ADI 3510); direitos autorais (ADI 5062 e 5065), ensino religioso em escolas públicas (ADI 4439); interrupção de gravidez em casos de fetos anencefálicos (ADPF 54) e letalidade policial (ADPF 635).
Em todas as instâncias e Poderes, as audiências públicas partem da premissa de que cabe ao administrador (e ao juiz) realizar intenso esforço de tradução (técnico/leigo), com vistas a garantir que a sociedade possa contribuir com os objetivos da consulta. Em nenhuma delas se pretende estabelecer o contraditório, mas sim a escuta ativa: com base no respeito ao interlocutor, ouvi-lo e, em seguida, demonstrar ativamente que entendeu o argumento. As decisões deixam de ter o antigo fundamento interna corporis, e passam a acolher todos os integrantes do regime democrático.
A compreensão da finalidade das consultas públicas (para quê?) pede que se entenda a evolução da democracia brasileira. Durante muito tempo, o país conviveu com uma noção democrática que se satisfazia com o papel que o cidadão exercia como eleitor. Uma vez definidos os representantes da população, eram eles (ou os por eles escolhidos) os responsáveis pela tomada das decisões. O método decisório era unilateral, fundamentado no poder detido pelo representante popular.
A evolução da compreensão da democracia revelou que a participação da sociedade é muitíssimo relevante para ser limitada a escolhas eleitorais. Certas decisões são sensíveis e/ou estratégicas demais para serem tomadas sem se ouvir a parte mais interessada. E a população será sempre a parte mais interessada, seja porque é a legítima detentora do poder, seja por ser quem experimentará os efeitos positivos e negativos do caminho escolhido.
A consulta pública é, primeiro de tudo, instrumento democrático voltado a ampliar a legitimidade das decisões. A sociedade deixa o papel de sujeito passivo de algumas atividades administrativas, para colaborar decisivamente com a atuação do administrador. A decisão pública deixa de ser algo furtivo, passando a emergir de processo decisório, no qual a consulta pública é ora relevante ora indispensável.
E não é só isso. A consulta pública serve também a diminuir os riscos de a pretendida decisão administrativa não atender à finalidade desejada ou ainda trazer mais prejuízos do que benefícios. Afinal, o mais bem-intencionado dos administradores pode praticar atos que prejudiquem a sociedade. Pode imaginar que detém todas as informações necessárias e suficientes, mas isso é apenas um autoengano.
Todavia, sendo ferramenta democrática, a consulta pública não é adequada para toda e qualquer situação. Uma boa consulta pública exige tempo, não só para ser preparada, mas, especialmente, para dela se colher os frutos. Quando será adequada a consulta pública, então? Há duas respostas.
A primeira é bem simples: quando a lei expressamente a exigir. Existem várias hipóteses em que o legislador impôs que a decisão administrativa seja precedida de consulta pública. Por exemplo, as minutas de edital e de contrato de PPP, antes de sua publicação (Lei 11.079/2004, artigo 10, VI).
A segunda resposta é menos taxativa. A consulta pública também deve ocorrer quando forem identificados interesses contrapostos, sendo a missão estatal a busca pelo equilíbrio. Desde a compreensão de que Estado e sociedade não são figuras distintas e dissociáveis, viu-se que as decisões estatais não só afetam a múltiplos setores, mas tradicionalmente o fazem de maneira desigual, beneficiando alguns em detrimento de outros.
Nesse cenário, a consulta pública exerce seu papel mais relevante, pois tem a condição de apresentar ao administrador fatos, informações e até sensações que irão revelar os múltiplos interesses que podem ser afetados pela escolha que pretende fazer. Diante do aclaramento dessas circunstâncias, fica menos difícil a tarefa de escolher o caminho. Essa escolha, ademais, abandona o binômio do “tudo ou nada”, passando a conviver com opções que geram menos conflitos, insatisfações e com mitigadores de riscos para aqueles que potencialmente podem ser prejudicados em demasiado.
Mas os benefícios de uma consulta pública só serão alcançados se sua promoção ocorrer à luz das melhores práticas (como). Para isso, a ação administrativa a ser submetida à consulta pública há de ser devidamente fundamentada e antecedida de uma análise de impacto. Tal pretensão será submetida ao crivo da sociedade, que irá, por meio de seus variados setores, criticar, elogiar e sugerir. E cabe ao Estado não só promover a consulta pública, mas garantir a intensa e heterogênea participação da sociedade. Só assim irá brotar a boa decisão administrativa, como fruto das tensões geradas na consulta.
Após essas reflexões, é possível seguir defendendo que o arremedo de consulta pública da vacinação infantil foi um erro.
De consulta pública, a busca pela opinião pública realizada pelo Ministério da Saúde só tem o nome. Quando muito, tratou-se de mera enquete despida de critérios técnicos, sem qualquer possibilidade de colher contribuições capazes de melhorar a atenção à saúde infantil.
O segundo motivo deriva da escolha do legislador, conectada ao dever estatal de atender ao direito fundamental à saúde (artigo 196 da Constituição). Uma vez aprovada pelo Programa de Nacional de Imunização (PNI) a vacinação contra a Covid-19, a imunização infantil tem caráter obrigatório, em razão do §1º do artigo 14 do ECA. Em razão disso, cumprido o requisito sanitário (aprovação pela Anvisa), ao Estado, aos pais e à sociedade (para lembrar o artigo 227 da Constituição) incide o dever de vacinação das crianças. Não se trata de livre escolha, mas de dever público e privado. Como no dever fundamental de pagar tributos, de nada adiantaria fazer enquetes para possibilitar aos contribuintes dar a sua opinião se determinado tributo, positivado em lei repleta de constitucionalidade, merece ou não ser pago.
Ou seja, ainda que o resultado da consulta fosse em desfavor da vacinação infantil, a imunização das crianças haveria de ocorrer.