Bruno Yudi Soares Koga

No ano de 2013, o <a href="https://www12.senado.leg.br/institucional/datasenado/arquivos/brasileiros-reconhecem-importancia-da-constituicao-cidada" target="_blank" rel="noopener noreferrer">DataSenado</a> questionou os brasileiros a respeito de suas impressões sobre a Constituição Federal. Dentre os resultados; 46,2% dos entrevistados compreenderam que o Brasil “melhorou” por conta da CF/88, 25,4% consideraram que o país “permaneceu igual”, 25,5% visualizaram piora no Brasil e 2,8% não souberam ou não responderam à pergunta.
Por outro lado, quando o questionamento foi se “a Constituição brasileira é respeitada”; 15% dos entrevistados responderam “sim”, 84,1% escolheram a alternativa “não” e 0,9% não sabiam ou não responderam à pergunta<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Dado este cenário, a Constituição parece gozar de boa reputação frente aos cidadãos, ainda que estes entendam que ela não recebe o devido cumprimento pelas instituições que deveriam velar por sua aplicação.
<div id="pro-poder-analise-politica-duplicado-4a97710080f7d951df05" role="main"></div>
<script type="text/javascript" src="https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js"></script> 
<script type="text/javascript"> new RDStationForms('pro-poder-analise-politica-duplicado-4a97710080f7d951df05', 'UA-53687336-1').createForm();</script>
Uma das possíveis explicações para a sensação de que a Constituição não é cumprida advém de uma forte aderência do Constituinte (originário e derivado) ao <a href="https://www.britannica.com/science/magical-thinking" target="_blank" rel="noopener noreferrer">pensamento mágico</a>, o qual se manifesta no âmbito jurídico através da crença de que a simples inserção de um novo direito ou de um comando normativo soluciona os problemas de fundo do país ou altera as relações materiais do mundo concreto.
De fato, o pensamento mágico remonta às relações primitivas nas quais fórmulas orais, ritos ou quaisquer outras atividades místicas possibilitariam o controle do mundo exterior. No constitucionalismo brasileiro, não raras vezes, pensa-se que, após discussão e votação em cada Casa do Congresso Nacional, a proposta que obtiver três quintos dos votos dos membros de cada Casa em dois turnos (art. 60, §2º, CF) poderá então alterar a realidade simplesmente por ter a natureza de disposição constitucional. Não é sem razão que Freud sintetiza o pensamento mágico como “o princípio da ‘onipotência de pensamentos’”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
<ul class="jota-article__internal-links">
<li>+JOTA: <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/constituicao" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Tudo sobre a Constituição</a></li>
</ul>
Além disso, pode-se acrescentar um suposto gosto do brasileiro pelo abstrato como meio de escapar da realidade<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Este pensamento formulado apenas através de silogismos sem qualquer relação com o concreto permite que se alcance inúmeras soluções abstratas para problemas que envolvem não apenas a existência de um comando normativo, mas principalmente o cotidiano dos cidadãos.
Isto se evidencia pelas propostas de inclusão de novos incisos no art. 5º da Constituição Federal, como se a profusão de “direitos” pudesse melhorar a vida dos brasileiros independentemente de qualquer outra atividade da Administração Pública.
A título de exemplo, tramitam no Congresso Projetos de Emenda à Constituição a respeito do <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2210757" target="_blank" rel="noopener noreferrer">direito fundamental à proteção de dados pessoais</a>, <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2075915" target="_blank" rel="noopener noreferrer">do direito fundamental ao acesso à internet</a>, <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/138749" target="_blank" rel="noopener noreferrer">do direito fundamental ao emprego de meios extrajudiciais de solução de conflitos </a> e até mesmo proposta a inserir como <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/144138" target="_blank" rel="noopener noreferrer">fundamento da República o combate à corrupção</a>.
<blockquote class="jota-article__eye">Dentro deste quadro, resta evidente que muitos destes “novos direitos” não fazem jus ao título de direito fundamental ou poderiam ser inferidos de outras disposições da CF/88.</blockquote>
Como se isso não bastasse, estas propostas caem em descrédito quando se rememora promessas (rectius direitos) não cumpridas pela própria Constituição, tais como direitos sociais referentes à saúde, segurança, trabalho e moradia.
Além disso, não raras vezes o Constituinte desafiou o bom senso ao impor a limitação dos juros bancários a 12% ao ano (art. 192, §3º, da redação original da CF) quando <a href="http://www.ipeadata.gov.br/ExibeSerie.aspx?serid=38402" target="_blank" rel="noopener noreferrer">o próprio país pagava 2.185,05% a título de juros nominais em outubro de 1988</a>, ou seja, na prática, as instituições financeiras ganhariam mais dinheiro se simplesmente encerrassem suas atividades e comprassem títulos públicos.
Esta fixação em inserir disposições no texto constitucional como se o plano discursivo pudesse efetivamente moldar a realidade à sua vontade (pensamento mágico) deixa de lado o fato inelutável de que há condicionantes reais exteriores ao cumprimento pleno e efetivo de todas as disposições constitucionais, levando a descrédito a própria Constituição.
Como se isso não bastasse, a quantidade de direitos positivados parece não se relacionar com a qualidade de vida em um dado país. Realmente, o levantamento realizado pelo <a href="https://comparativeconstitutionsproject.org/ccp-rankings/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Comparative Constitutions Project</a> (CCP) aponta que o Brasil possui 79 direitos em sua Constituição e está no 79º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das <a href="http://hdr.undp.org/en/content/2019-human-development-index-ranking" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Organização das Nações Unidas</a> (ONU).
Cruzando os dados entre a quantidade de direitos previstos nas Constituições do CCP com o IDH estimado pela ONU, nota-se que países com mais direitos positivados como Equador (99 direitos e 85º lugar no IDH), Bolívia (88 direitos e 114º lugar no IDH), Sérvia (88 direitos e 63º lugar no IDH), Cabo Verde (87 direitos e 126º lugar no IDH) e Portugal (87 direitos e 40º lugar no IDH) não possuem qualquer vantagem sobre os líderes do IDH como Noruega (39 direitos e 1º lugar no IDH), Suíça (65 direitos e 2º lugar no IDH), Irlanda (31 direitos e 3º lugar no IDH) ou Alemanha (48 direitos e 4º lugar no IDH).
Note-se, ainda que possua uma força normativa própria, o Constituinte não pode se deixar levar pela crença de que tudo pode e que teria o poder de confrontar os fatos sem que, deste choque, possa perder boa parte de sua estima pelos cidadãos, permitindo que o embotamento de suas disposições seja levado como argumento a favor de uma ampla revisão ou ainda de decretar a morte da Constituição.
Como sintetizou Konrad Hesse: “a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta de seu tempo. A pretensão de eficácia da Constituição somente pode ser realizada se se levar em conta essa realidade”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
O Constitucionalismo brasileiro precisa confiar menos na mágica da positivação e se focar mais nos atos da Administração Pública que dão concretude à Constituição, muitos deles resolvendo questões referentes a direitos fundamentais através de portarias, resoluções e notas técnicas.
<hr />
O episódio 46 do podcast Sem Precedentes discute se o contrato de trabalho intermitente é ou não constitucional. Ouça:
https://youtu.be/o8E3sXtx7j0
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Infelizmente, pesquisas sobre a percepção da população frente ao texto constitucional não têm sido realizadas com periodicidade, sendo esta a única pesquisa localizada.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> FREUD, Sigmund, Totem e Tabu, Rio de Janeiro: Imago, 2006, p. 90–96.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> “De todas as formas de evasão da realidade, a crença mágica no poder das ideias pareceu-nos a mais dignificante em nossa difícil adolescência política e social. Trouxemos de terras estranhas um sistema complexo e acabado de preceitos, sem saber até que ponto se ajustam às condições da vida brasileira e sem cogitar das mudanças que tais condições lhe imporiam.” HOLANDA, Sérgio Buarque, Raízes do Brasil, 27. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 191.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> HESSE, Konrad, A força normativa da constituição, Porto Alegre: Sérgio Fábris, 1991, p. 10.

constituição

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

A efetividade da Constituição, a atuação das instituições e o excesso de promessas nos textos legais

Como o pensamento mágico danifica a força normativa da Constituição?

Sentimento de que a Constituição é descumprida não nasce apenas da atuação das Instituições, mas também do excesso de promessas nos textos constitucionais