Daniel Capecchi Nunes

Poucas semanas atrás, chegou ao STF uma ação discutindo a constitucionalidade de avaliadores do ENEM zerarem redações com conteúdo violador dos direitos humanos – defendendo a tortura e posições racistas, por exemplo. De um lado, havia a defesa do direito à liberdade de expressão dos eventuais candidatos e de outro a ideia de que o Estado deveria promover determinados valores ao realizar o ingresso no ensino superior.  Em sua decisão liminar, a Presidente do Tribunal, Ministra Cármen Lúcia, entendeu que o critério de anulação violaria direitos fundamentais e “ [...] que não se combate[ria] a intolerância social com maior intolerância estatal”.
O problema da posição de um regime constitucional diante de manifestações contrárias aos valores democráticos não é inédito e não se resume ao problema do ENEM, cuja decisão é apenas emblemática de uma questão repleta de nuances. Nesse âmbito, é possível fazer diversas perguntas como, por exemplo: <a href="http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2016/10/professor-universitario-diz-em-aula-que-palestrante-da-unb-e-sapatona-doida.html">pode um professor usar sua liberdade de cátedra para fazer declarações homofóbicas</a>? <a href="http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/as-frases-polemicas-de-jair-bolsonaro/">Pode um político com discurso autoritário se candidatar à presidência do país?</a> <a href="http://noblat.oglobo.globo.com/meus-textos/noticia/2017/09/general-admite-intervencao-militar-para-resolver-crise-politica-deve-ser-punido.html">Pode um general afirmar que um golpe militar pode vir a ser necessário?</a> De maneira ainda mais sintética: a Constituição de 1988 é neutra às diversas narrativas que tentam significá-la?
Pensando em um problema semelhante, em 1937, Karl Lowenstein escreveu um artigo acerca da ideia de uma democracia militante. Ressentido com a ascensão do fascismo na Europa, Lowenstein propunha uma visão de democracia que pudesse criar restrições às liberdades justamente com o intuito de protegê-las. Em outras palavras, a democracia se limitaria para garantir suas próprias condições de existência. Baseada nessa perspectiva, a vitória do ideal constitucional pelo mundo representou a proliferação de experimentos institucionais voltados a impedir o uso de instrumentos democráticos para enfraquecer a própria democracia.
Boa parte das democracias ocidentais, em algum grau, tornou-se militante. Vedações a determinadas formas de discurso de ódio, a proibição de grupos paramilitares ou partidos francamente autoritários viraram um ponto comum. O próprio surgimento das limitações materiais ao poder de emendar as constituições – conhecidos como cláusulas pétreas, no Brasil – é um indício do fortalecimento da ideia de que as constituições democráticas não podem ser destruídas por suas próprias regras. No caso brasileira, a superação do regime autoritário e a tentativa de estabelecer uma democracia estável e competitiva significou em certa medida a adoção da ideia de uma democracia militante, assumindo boa parte do receituário presente no direito constitucional comparado.
Por essa razão, a Constituição de 1988 e as instituições por ela fundadas não são neutras com relação aos diferentes discursos e práticas existentes socialmente. Fruto de uma tentativa de ultrapassar uma realidade autoritária, a Constituição assume para si o lado da democracia e dos direitos fundamentais, criando em seu próprio texto restrições discursivas e parâmetros institucionais dentro dos quais será possível disputar narrativas e visões. O racismo, por exemplo, é um limite explícito para os discursos e práticas que são tolerados na esfera pública que alimenta as narrativas acerca da Constituição de 1988.
Assumir esse ponto de vista não é negar que existem inúmeras dimensões de disputa sobre o que se entende por democracia e qual o sentido dos direitos. Em um regime democrático, tais disputas não são apenas autorizadas como são essenciais à manutenção de uma vida pública rica e plural. No entanto, isso não quer dizer que qualquer forma de discurso sobre a democracia e sobre os direitos seja aceitável e justificável, sob uma perspectiva constitucional.
Nesse sentido, é importante mudar o olhar acerca dos fenômenos políticos recentes e das disputas políticas mais candentes. No jogo democrático estabelecido a partir de 1988, não cabe tudo. Tratar nossa Constituição como neutra é ignorar seu próprio texto e o contexto em que ela foi produzida e vige. É certo que os limites de nosso projeto constitucional e as formas de institucionalizá-lo são vários e estão abertos à disputa, mas sua existência e contornos estão presentes.
Diante dessas diversas questões, uma conclusão possível é a de que a democracia, ao menos sob os moldes do regime em que vivemos, não é compatível com toda e qualquer narrativa ou prática. Discutir e estabelecer os limites da dimensão militante de nossa constituição é uma etapa essencial para protegê-la de eventuais ameaças e de possíveis abusos de censura. Diante de nossa experiência e trajetória constitucionais, trata-se de uma atividade essencial, da qual, na iminência dos tempos de cóleras que se avizinham por todo o mundo, não poderemos nos omitir, sob pena de sermos, mais uma vez, engolidos pelo incompreensível.
Daniel Capecchi é Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora - Campus de GV - e Doutorando e Mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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JOTA

A democracia não é compatível com toda e qualquer narrativa

A Constituição de 1988 é neutra?

A democracia não é compatível com toda e qualquer narrativa