Coronavírus

‘Constituição da emergência’: uma proposta de solução para o conflito entre Poderes

O país ainda não foi capaz de desenhar e articular uma estratégia minimamente organizada para lidar com uma pandemia

(Brasília - DF, 08/04/2020) Pronunciamento do Presidente da República, Jair Bolsonaro em Rede Nacional de Rádio e Televisão. Crédito: Carolina Antunes/PR

A CRISE POLÍTICO-JURÍDICA BRASILEIRA DA COVID-19

A atual crise do COVID pôs o Brasil diante de um problema muito grave e jamais visto: um ocupante da Presidência da República que se põe publicamente contra as recomendações da OMS, atualmente seguidas por todos os governos ao redor do mundo, e defende a volta imediata das pessoas ao trabalho, contra as melhores evidências científicas à nossa disposição, entrando em conflito aberto com seu Ministro da Saúde e com boa parte de seu governo e com os demais Poderes da República.

Tais conflitos resultaram na demissão do Ministro da Saúde no dia 16/04. Em declaração ao país no dia 08/04/2020, o atual ocupante da Presidência parecia ter moderado seu discurso, mas sem deixar de se esquivar da responsabilidade sobre as medidas de isolamento social. Atribuiu a responsabilidade sobre tais medidas a Prefeitos e Governadores, enfatizando sua preocupação com uma solução “global” para o problema que inclua a preservação dos empregos. Em nenhum momento o Presidente defendeu abertamente o isolamento social e as medidas econômicas necessárias para sustentá-lo no curto prazo. No discurso durante a nomeação do novo Ministro da Saúde, reiterou esta postura esquiva.

Dias depois do pronunciamento de 08/04, desrespeitando as regras de isolamento social, diante de seu então Ministro da Saúde, visitou um hospital e andou por áreas residenciais e comerciais em Goiás (UOL, “Bolsonaro visita hospital em Goiás e tenta reaproximação com Caiado”, 11/04/2020). Como reação a este comportamento, reiterado desde o começo da crise, o Ministro da Saúde, parte de seu Ministério, quase todos os Governadores de Estado, o Presidente da Câmara e Ministros do STF têm declarado abertamente que o desrespeito às recomendações da OMS não será tolerado (G1, “Ao menos 25 dos 27 governadores manterão restrições contra coronavírus mesmo após Bolsonaro pedir fim de isolamento”, 25/03/2020; UOL, “Maia: Fim do isolamento é pressão de quem está ‘perdendo dinheiro na Bolsa’”, 25/03/2020).

Luís Roberto Barroso, Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu medida cautelar para vedar a produção e circulação, por qualquer meio, de qualquer campanha que pregue que “O Brasil Não Pode Parar”, divulgada na semana passada pelo governo Jair Bolsonaro, ou que sugira que a população deve retornar às suas atividades plenas, ou, ainda, que expresse que a pandemia constitui evento de diminuta gravidade para a saúde e a vida da população. A decisão foi proferida no âmbito das arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs) 668 e 669, ajuizadas pela Rede e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos (JOTA, “Barroso veda campanhas que sugiram que população deve voltar às atividades plenas”, 31/03/2020).

Em uma decisão monocrática, também em pedido cautelar em uma ação de descumprimento de preceito fundamental, mas proposta pela OAB, o Ministro Alexandre de Morais do STF afirmou que o Presidente não tem poderes para suspender as ações de isolamento social propostas por Estados e Municípios afirmando que o poder discricionário do chefe do executivo Federal é passível de controle (JOTA, “Moraes: Planalto não pode suspender quarentena determinada por estados e municípios”, 08/04/2020).

Ainda em 24/03/2020 o ministro Marco Aurélio de Mello do STF, deferiu em parte pedido de liminar do Partido Democrático Trabalhista (PDT) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6341 para explicitar que as medidas adotadas pelo Governo Federal na Medida Provisória (MP) 926/2020 para o enfrentamento do novo coronavírus não afastam a competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios. Na ação, o PDT pediu a suspensão da eficácia de diversos dispositivos da MP 926/202. No dia 15/04/2020, o plenário do STF decidiu a ADI 6341 por unanimidade que o Presidente não pode contrariar as decisões de Estados e Municípios a respeito do isolamento social. (UOL, “STF dá poder a estados para atuar contra covid-19 e impõe revés a Bolsonaro”, 15/04/2020).

Parece ter se formado uma espécie de “cordão de isolamento político-jurídico” ao redor do Presidente com a finalidade de impedi-lo de tomar medidas administrativas contrárias às recomendações da OMS, ainda que ele siga negando seu apoio pessoal a elas em declarações e comportamentos públicos reiterados.

Do ponto de vista da dogmática jurídica, ou seja, dos modelos decisórios utilizados pelos organismos de poder jurisdicional, como afirmou a decisão do Ministro Alexandre de Morais, o Presidente não está autorizado a utilizar de sua discricionaridade administrativa para desrespeitar as recomendações da OMS. Interessante notar que tais recomendações não são lei no Brasil: estamos diante de textos sem caráter coercitivo, editados por uma agência das Nações Unidas.

Normas que alguns analistas chamariam de “soft law”, ainda que tenham sido incorporadas sem divergência às práticas cotidianas de uma série de agentes públicos – como tem declarado o Ministro da Saúde reiteradamente em suas entrevistas. Ademais, ainda que possam ter promovido transformações na estrutura administrativa do Estado, mesmo sem passar pelo Parlamento (para um estudo deste fenômeno, ver SHAFFER, 2012).

Diante destes problemas, a tarefa específica da pesquisa em Direito parece ser propor modelos regulatórios, ou seja, modelos decisórios, que sejam capazes de lidar com eles para tornar as decisões dos organismos de poder cada vez mais racionais, ou sejam cada vez mais democráticas. No caso da crise atual, trata-se de perguntar:

 

  1. a) Ainda que o atual arranjo institucional esteja sendo efetivo em garantir, até o momento, o cumprimento das recomendações da OMS pelo Estado brasileiro, ele oferece segurança jurídica para as pessoas cidadãs brasileiras?
  2. b) Este mesmo arranjo é legítimo, ou seja, ele promove uma boa relação entre direito e democracia levando em conta a nossa realidade institucional?
  3. c) Se a resposta às duas perguntas anteriores for negativa, quais seriam as mudanças necessárias para tornar este arranjo mais seguro e mais legítimo?

 

Este modo de encarar o problema considera que o papel da pesquisa em direito é fiscalizar o poder – público e privado – para evitar sua atuação autárquica que pervertem o Direito (RODRIGUEZ, 2019), ou seja, em desrespeito aos princípios do estado democrático de direito, quais sejam, o respeito aos direitos fundamentais e a possibilidade de participação de todas as pessoas cidadãs na elaboração das regras que regulam a sua vida, seja por meio do voto ou por meio de mecanismos consultivos e de participação direta.

Nesse sentido, em face da atual presteza do Congresso Nacional em aprovar uma série de medidas consideradas importantes para o Brasil no combate aos efeitos da crise desencadeada pela crise da COVID-19, ao propor uma reflexão sobre o problema jurídico da emergência, este texto buscará articular também algumas sugestões de modificação constitucional capazes de dar conta do problema que estamos enfrentando.

Sugestões que serão feitas sob a forma de alguns parâmetros, algumas ideias gerais que podem vir a inspirar os agentes sociais e os agentes políticos a elaborarem um modelo institucional mais seguro e legítimo para lidar com situações análogas que enfrentemos no futuro, quem sabe uma “constituição da emergência”, não sem antes analisar com bastante cuidado as características dos problemas que estamos enfrentando.

O problema jurídico da emergência

O problema jurídico da emergência reside na dificuldade de impor padrões decisórios a organismos de poder que precisam agir com rapidez para enfrentar situações singulares, impassíveis de padronização. Situações que não podem ser avaliadas a partir de normas gerais criadas previamente pelas fontes de direito, reconhecidas como tais por um determinado ordenamento jurídico. Situações que demandam juízos sensíveis, ou seja, que procurem construir arranjos decisórios fundamentados em um exame profundo das características singulares do caso concreto (GÜNTHER, 1993; RODRIGUEZ, 2020).

A combinação da urgência com o caráter singular do problema social a ser enfrentado parece frustrar, de saída, a possibilidade de regular a emergência com a utilização de normas gerais de comportamento, instrumentos capazes de antecipar as alternativas futuras para a atuação dos organismos do poder. Em uma palavra, o problema da emergência reside na necessidade paradoxal de regular a incerteza, ou, como afirmam Carvalho & Damascena, promover a “racionalização das incertezas” (CARVALHO, DAMASCENA, 2013: posição 639).

Como mostra o amplo estudo de Clement Fatovic, juristas liberais sempre refletiram sobre o problema da emergência, a começar por John Locke e pelos pais fundadores da Constituição dos EUA, que reconheciam a necessidade de atribuir poderes discricionários ao Executivo para lidar com estas situações, cientes dos riscos de arbítrio que a excessiva concentração de poderes poderia provocar (FATOVIC, 2009: 4,17).

Em face de situações com as descritas acima é possível identificar três estratégias diferentes de regulação, as quais podem ser combinadas de várias maneiras. A primeira estratégia regulatória diz despeito à autoridade responsável por tomar decisões em face da situação excepcional e/ou de emergência. É possível atribuir tal responsabilidade a uma pessoa específica – por exemplo, o Chefe do Executivo no estado de sítio – ou a um grupo de pessoas – por exemplo, um órgão do Estado já existente ou um organismo especialmente criado para lidar com a situação, eventualmente assessorado por um corpo técnico.

A segunda estratégia regulatória diz respeito ao procedimento decisório. É possível criar regras específicas para lidar com a situação de incerteza (e/ou emergência), por exemplo, requisitos específicos para a sua identificação, eventual decretação e duração. Também regras que procurem estabelecer limites ao comportamento das autoridades em face do problema a ser enfrentado, atribuindo a elas maior ou menor margem de manobra, por exemplo, na restrição de direitos fundamentais. Já em outros casos, será possível lidar com a situação utilizando os procedimentos normais estabelecidos para regular o funcionamento dos organismos do Estado.

Finalmente, é possível estabelecer objetivos genéricos para a atuação da autoridade responsável por enfrentar a situação excepcional e/ou urgente, objetivos fixados em princípios gerais ou em standards de comportamento a serem seguidos ou, de oura parte, ficar objetivos específicos que possam ser contabilizados e quantificados a posteriori.

É fácil imaginar e antecipar os riscos envolvidos nas três estratégias de regulação. Por exemplo, a atribuição de muito poder por tempo indeterminado e sem restrições procedimentais a uma pessoa ou organismo específico parece aumentar o risco de arbítrio e, até mesmo, pode criar condições para a implantação ou para o aprofundamento de regimes autoritários.

Historicamente, a decretação de emergência esteve na origem golpes de Estado que promoveram a instituição de regimes autoritários, como ocorreu na Alemanha de Weimar. O movimento que deu origem ao regime nazista teve como um de seus momentos cruciais a utilização de poderes excepcionais pelo chefe de Governo justificado por uma interpretação muito contestada da Constituição (RODRIGUEZ, 2009).

Neste momento, diga-se, estamos tendo notícias de movimentos de concentração de poderes nas mãos do Executivo, por exemplo, na Hungria, país em que há sinais da implantação de uma ditadura declarada sob o pretexto do combate à pandemia, aprofundando um processo de destruição da democracia que já estava se desenrolando (UOL, “Com ‘lei do coronavírus’, nasce uma ditadura na Hungria”, 30/03/2020).

Além disso, essa estratégia se mostra excessivamente dependente das virtudes dos ocupantes dos cargos de governo, no caso brasileiro, das virtudes do Presidente da República. Um desenho institucional como este, se experimentar o mandato de pessoas como o atual ocupante da Presidência da República, pode colocar muitos obstáculos ao cumprimento de recomendações técnicas, por exemplo, no campo da saúde, que podem ser preteridas, por exemplo, em razão de estratégias político-eleitorais.

Direito, política e ciência

Este texto não considera que o debate técnico-científico deva ser isolado do debate político, do debate na esfera pública (HABERMAS, 2014; NEUMANN, 2013b, FEENBERG, 1991). A relação entre política, ciência e direito vem sendo debatida há muito tempo em diversas tradições intelectuais, também no campo da Teoria Crítica, no qual me situo. Não há espaço para mostrar todos os desdobramentos do problema neste texto.

No entanto, cabe sustentar aqui que nem sempre os cientistas das mais diversas áreas formam consensos a respeito dos mais variados assuntos e, além disso, a sociedade deve ter a possibilidade de fazer escolhas sobre as políticas públicas que deseja adotar a partir dos marcos estabelecidos pela ciência.

Para uma concepção democrática da ciência e da tecnologia o conhecimento nestas áreas não deve ser encarado como uma autoridade com vontade unívoca que deve ser obedecida sem debate. Ciência e tecnologia exercem tanto o papel de controle instrumental da sociedade quanto um papel democrático, desde que sejam racionalizadas, ou seja, submetidas aos interesses da sociedade e não pensada exclusivamente à luz de sua função na solução de determinados problemas, como veremos adiante (FEENBERG, 2009: 149).

Para Andrew Feenberg, toda tecnologia possui um código técnico, ou seja, as normas funcionais que presidem o seu funcionamento e os interesses sociais que entram em jogo em sua construção e desenvolvimento (FEENBERG, 2002: 76-77). A dimensão subjetiva do código técnico reside, assim, nos interesses sociais que atuaram na sua constituição e que determinam a sua reprodução.

É isso que explica, por exemplo, que haja várias configurações em seus dispositivos, que nem sempre haja consenso a respeito de regras técnicas. Isso também explica as assimetrias de poder no processo de desenvolvimento tecnológico, por exemplo, as classes dominantes costumam ter mais poder sobre este processo do que as classes dominadas.

Para os objetivos que nos interessam aqui, podemos afirmar, portanto, que a ciência e a tecnologia produzem informações que podem ser testadas racionalmente, mas que não costumam apontar, por exemplo, para uma determinada política pública como se ela fosse a única escolha possível. Conflitos e disputas entre os diversos agentes sociais podem resultar em diferentes configurações dos dispositivos tecnológicos, os quais podem motivar diferentes políticas públicas; também podem resultar em mudanças tecnológicas profundas que alterem os dispositivos de maneira ainda mais radical.

Por isso mesmo, e aqui a reflexão de Feenberg não nos ajuda muito, é preciso disciplinar tais conflitos sociais com a construção de instituições democráticas capazes de ouvir os diversos interesses, permitindo que a configuração dos dispositivos tecnológicos e suas eventuais transformações levem em conta a racionalidade científica. Para atingir este objetivo, ao que tudo indica, as eleições majoritárias não são suficientes.

A estratégia institucional adotada em diversos países para atingir este objetivo tem sido a criação de comitês de especialistas com a finalidade de aconselhar os organismos decisórios (JOSANOFF, 1994). E esta não é uma estratégia isenta de críticas. Como aponta Josanoff, a atividade das agências não é estritamente científica, ela é “uma atividade híbrida que combina elementos de evidência científica e avaliação racional com grandes doses de juízos sociais e políticos” (JOSANOFF, 1994: posição 2921).

Na linguagem de Feenberg, trata-se de uma atividade que explicita o fato de que o código técnico possui uma dimensão objetiva, relacionada à funcionalidade das políticas públicas, e uma dimensão subjetiva, relacionada aos interesses sociais envolvidos nas mesmas. A depender do desenho dos Comitês, portanto, a funcionalidade ou os interesses sociais envolvidos podem ficar em segundo plano ou não.

O Direito brasileiro entre a racionalidade e irracionalidade

A situação que estamos enfrentando não parece se enquadrar com facilidade no tipo de conflito examinado por Feenberg e Josanoff, ou seja, conflitos entre agentes sociais que aceitam a ciência e a tecnologia como formas de saber ambíguas, ou seja, tensionadas, de um lado, pela funcionalidade e, por outro lado, pelos interesses sociais.

A atual ocupante da Presidência da República age e se manifesta publicamente negando abertamente as recomendações da OMS e as recomendações da maior parte dos economistas, que também tem tomado as recomendações desta agência como ponto de partida inquestionável. Suas atitudes mostram que ele nega a ciência como esfera autônoma, ou seja, parece negar a sua funcionalidade específica, procurando submetê-la a uma racionalidade completamente diferente, uma mistura contraditória de fundamentalismo religioso e fundamentalismo de mercado (RODRIGUEZ, 2019) que foi legitimada pelo voto popular nas últimas eleições.

A tarefa das instituições democráticas neste caso é muito complexa. Não é possível negar a legitimidade do Presidente para defender a sua agenda política e, ao mesmo tempo, é claramente inconstitucional deixar de ouvir os agentes sociais que pensam cientificamente e os organismos técnicos que fazem parte da estrutura do Estado brasileiro e são responsáveis pela efetivação do direito à saúde, consagrado nos Arts. 6º e 196º da Constituição Federal.

Há toda uma estrutura institucional montada e atuante para este fim, ao menos desde a promulgação da Constituição em 1988, que tem resistido abertamente às atitudes do Presidente, com o apoio aberto dos Poderes Legislativo, Judiciário e por uma parcela do próprio governo federal.

A concentração de poderes excessivos nas mãos do Governo Federal para traçar as estratégias de combate à COVID-19, mais especificamente, nas mãos do atual Presidente da República, tem gerado, a meu ver, conflitos entre a pauta político-eleitoral, a pauta econômica e a pauta de saúde relacionada ao problema.

O Presidente tem se recusado a levar em consideração e a suportar o peso político das decisões relacionadas aos aspectos de saúde do problema, provavelmente pensando nas próximas eleições e nas promessas que fez ao seu eleitorado e a seus aliados.

Ele também tem relutado em se identificar com medidas interventivas do Estado na economia relacionadas à estratégia de isolamento social, defendendo a volta ao trabalho e da retomada da atividade econômica. Apesar de ter afirmado que pretende adotar uma visão global do problema, ao confrontar abertamente as recomendações da OMS, o atual ocupante da Presidência mostra que, na verdade, põe a questão médica em segundo plano.

Deixando de lado as atitudes pessoais do Presidente e pensando nos problemas que estamos enfrentando a partir dos modelos de regulação que elencamos acima, podemos interpretar esta situação como um problema regulatório que vai além das idiossincrasias do atual ocupante da Presidência.

Suas atitudes ajudam a tornar o problema mais claro e parecem sugerir medidas que apontem na direção de uma reforma constitucional pontual ou mais profunda. Até porque, ao que tudo indica, o mesmo problema parece ter se manifestado nos Estados Unidos e na Inglaterra, lugares em que o Chefe do Governo, a princípio, não desejava paralisar a atividade econômica e adotar medidas interventivas e protetivas no campo econômico.

Seguindo esta ordem de razões, fica evidente que as eleições majoritárias e proporcionais estão se revelando insuficientes, nestes três casos, para legitimar e motivar o Chefe de Governo a adotar medidas que andam na contramão de suas promessas de campanha e contariam os acordos políticos que promoveram sua eleição e sustentam o seu Governo.

Mesmo que tais medidas sejam defendidas como inquestionáveis e necessárias para preservar vidas, na visão da maior parte dos especialistas de todas as áreas, adotá-las e defendê-las abertamente pode significar um suicídio político-eleitoral para estas figuras políticas, especialmente para o atual Presidente do Brasil, uma liderança que ascendeu ao poder atacando a razão e a ciência, defendendo uma versão conservadora e radical do cristianismo e abraçando uma pauta econômica ultraliberal.

Ora, não soa razoável cobrar de um agente político, mesmo que fundamentalista, alguém que foi, feliz ou infelizmente, legitimado pelo voto popular em aliança com forças ultraliberais, correr o risco de suicidar-se politicamente, adotando uma pauta não religiosa, iluminista e racional, além de políticas protetivas e de intervenção na economia. Não soa institucionalmente razoável, posto que o Chefe do Executivo venceu uma eleição majoritária em um sistema Presidencialista.

Além disso, o referido “cordão de isolamento político-jurídico” que garante que as medidas da OMS sejam respeitadas parece depender demais da atual configuração da Câmara e do Supremo Tribunal Federal, uma corte que decide por maioria de votos e não forma uma jurisprudência racional e vinculativa, como eu mostrei longamente no meu “Como Decidem as Cortes” (RODRIGUEZ, 2013). Caso a Câmara tivesse outra composição e maior parte dos Ministros fosse alinhada com o Presidente, o desfecho de todos esses conflitos poderia ser bem diferente.

Para evitar que o Brasil corra este mesmo risco no futuro, mesmo em um futuro próximo, pode ser uma boa ideia refletir sobre a necessidade de criar algo semelhante a um “estado de emergência médico” com sede constitucional, talvez como um mero adendo à regulação de emergência já existente, que impusesse explicitamente o dever constitucional de seguir os conselhos das agências especializadas nacionais e internacionais em caso de declaração de uma pandemia em escala mundial.

Outra medida desejável pode ser a criação de um “comitê especial para gestão de crises”, com forte presença de cientistas e técnicos do campo da saúde, que poderia concentrar temporariamente parte do poder executivo para enfrentar a crise, tudo mediante autorização pela maioria absoluta do congresso Nacional por um prazo determinado, renovável caso haja necessidade. Este comitê deveria funcionar em articulação com um “fórum de governadores”, a ser formado na mesma ocasião, reunindo representantes de todos os governos Estaduais para buscar uma boa articulação das políticas emergenciais ao redor do país.

Tal comitê poderia ser dotado de competência para propor projetos de lei ao Congresso Nacional e contar não apenas como membros do Governo e com funcionários do Estado, mas também com especialistas recrutados na sociedade civil, membros do Governo e representantes do Legislativo e Judiciário, sob a coordenação direta do Ministério da Saúde, resguardado o poder de veto do Presidente da República.

Ademais, ele poderia contar com um braço econômico-jurídico, também formado por representantes do Governo, funcionários especializados do Estado e representantes da sociedade civil destinado a propor e a mediar a repactuação de contratos em todos os setores da economia, atuando ao lado dos Ministérios responsáveis por adotar medidas econômicas e assistenciais de proteção às empresas e aos trabalhadores formais e informais.

Não tenho uma visão detalhada de como este organismo poderia ser desenhado mas, ainda que descrito em suas feições gerais, ele poderia ser útil para aliviar o Chefe do Executivo do peso político-eleitoral de decisões que contrariem abertamente a sua agenda política e frustrem os acordos políticos que ele foi capaz de articular para ascender e se manter no poder, além da garantir a funcionalidade das medidas técnicas necessária para combater a pandemia.

Medidas desta natureza já estão sendo tomadas: foi formado um fórum de governadores que está debatendo articuladamente as políticas de combate à Covid-19 e, no nordeste, foi formado um comitê científico para a mesma finalidade, Comitê Científico do Consórcio Nordeste será coordenado pelo cientista Miguel Nicolelis e pelo físico e ex-ministro de Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende (G1, “Grupo formado por governadores do Nordeste cria comitê científico para combate ao coronavírus”, https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2020/03/31/grupo-formado-por-governadores-do-nordeste-cria-comite-cientifico-para-combate-ao-coronavirus.ghtml, 31/03/2020.) Estas duas experiencias institucionais que podem ajudar a refletir sobre a configuração de uma legislação constitucional a respeito de emergências médicas.

Conclusão

De acordo com especialistas no assunto, esta é apenas a primeira experiência de uma pandemia de dimensões globais. Biólogos e médicos epidemiologistas já nos alertam há muito tempo que eventos como este podem se suceder nos próximos anos, o que significa que conflitos como os que estamos vivendo tendem a se repetir em um futuro próximo, colocando em risco a população brasileira diante da falta de instituições capazes de lidar com esta espécie de problema.

Evidentemente, para além deste possível mecanismo de gestão da crise e a previsão de um “estado de emergência médico”, há diversas outras medidas a serem tomadas para racionalizar a incerteza de acontecimentos como este que estamos vivenciando. A gestão de um problema como este não pode começar com a sua eclosão, mas demanda medidas de prevenção com a construção de uma série de instituições que reúnam e difundam informações por toda a população e sejam capazes de desenhar previamente planos para lidar com o problema quando ele ocorrer.

Especialistas brasileiros no assunto, como Carvalho & Damascena, há muitos anos vem alertando a esfera pública brasileira sobre a necessidade prevenir futuros desastres com a adoção de uma política consistente de gestão de risco que incluam ações de prevenção, mitigação, previsão de respostas emergenciais, compensação e reconstrução (CARVALHO & DAMASCENA, 2013: posição 2022). A se tomar como padrão as medidas citadas como necessárias pelos especialistas, fica claro que o país, e não este governo específico, ainda não foi capaz de desenhar e articular uma estratégia minimamente organizada para lidar com eventos esta magnitude.

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Referências

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