Luiz Rodrigues Wambier

No curso desta semana, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) retomará o julgamento do Recurso Extraordinário 1.101.937/SP, com repercussão geral reconhecida, e que tem como objeto a discussão acerca da constitucionalidade do art. 16 da Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/85), com a redação dada pela Lei n. 9.494/97.
Há mais de 20 anos o tema tem sido alvo de acentuados debates tanto na doutrina quanto na jurisprudência. No âmbito dos tribunais superiores, ao longo de muitos anos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) se posicionou no sentido da legalidade da limitação geográfica veiculada no art. 16 da referida lei. Em 2011, todavia, modificou o entendimento até então adotado, afastando a limitação territorial dos efeitos da sentença proferida no bojo da ação civil pública, por entender que o alcance subjetivo da decisão deveria ser definido pela natureza do dano.
O STF, em 2017, reconheceu a repercussão geral da questão relativa à extensão dos efeitos da sentença proferida em ação coletiva ordinária proposta por entidade associativa de caráter civil, no Recurso Extraordinário n. 612.043/PR. Naquela ocasião, a Corte decidiu que, na ação proposta por associação, os beneficiários do título executivo judicial emanado da ação coletiva são aqueles que, residentes na área compreendida na jurisdição do órgão julgador, detinham, antes do ajuizamento, a condição de filiados, constando na lista que acompanharia a peça inicial. O ponto de congruência entre o referido julgamento e o caso objeto desta brevíssima reflexão está no fato de que o art. 2-A da Lei 9.494/97 estabelecia limitação territorial à eficácia subjetiva da coisa julgada, tendo tal restrição sido considerada constitucional, por maioria de votos.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>No Recurso Extraordinário que será julgado nesta semana, o relator, ministro Alexandre de Moraes, bem delimitou a questão que está em causa: “a correta compreensão e a legitimidade dos limites da (e à) coisa julgada e a eficácia das diferentes formas de tutela coletiva”. 
A conclusão desse julgamento assume imensa e expressiva relevância nesse contexto, na medida em que tem a potencialidade de encerrar longeva discussão a respeito do tema.
O art. 16 da Lei 7.347/1985, na redação conferida pela Lei n. 9.494/97, estabelece que a sentença proferida no âmbito da ação coletiva “fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator”, ressalvada a hipótese de improcedência por insuficiência de provas, caso em que a lei autoriza a qualquer legitimado o ajuizamento de outra ação com idêntico fundamento, desde que devidamente instruída com nova prova.
Os debates relativamente à constitucionalidade desse dispositivo legal assentam-se na limitação geográfica dos efeitos da sentença proferida em ação coletiva. É que ao mesmo tempo que ficou consignado que esse pronunciamento judicial produz efeitos para além das partes no processo, optou o legislador por restringir sua eficácia à competência territorial do órgão prolator.
A corrente doutrinária que sustenta a inconstitucionalidade do art. 16 o faz escorada no argumento de que referida restrição violaria a coisa julgada, na medida em que, ao limitar a eficácia territorial, estar-se-ia criando óbices à plena produção de efeitos da sentença coletiva.
Respeitável doutrina também afirma que a limitação geográfica desses efeitos acarretaria violação à isonomia, tendo em vista o risco de que diferentes decisões versando sobre a mesma questão jurídica sejam proferidas nos diversos juízos em que ações coletivas tenham sido propostas. Argumenta-se, ainda, que a norma em questão afrontaria o acesso à justiça, tendo em vista a criação de empecilhos à tutela jurisdicional dos direitos coletivos.
Tal posicionamento não me parece ser correto.
A coisa julgada é qualidade de que se reveste a sentença de mérito, de modo a tornar o comando judicial imutável ou, pelo menos, razoavelmente estável. A tutela constitucional dessa garantia está prevista no art. 5.º, XXXVI, conforme o qual “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
Entretanto, a circunscrição territorial dos efeitos da sentença proferida em ação coletiva não lhe retira a qualidade de imutável no que se refere a todos aqueles que estiverem pela decisão vinculados. E, por isso, não há afronta à coisa julgada. Trata-se apenas de critério legal em que se opera o cotejo entre as normas relativas à competência territorial e os limites subjetivos da coisa julgada.
Portanto, o núcleo da proteção constitucional da coisa julgada segue incólume: a imutabilidade da decisão irrecorrível, que gera segurança jurídica e legitima a própria atividade jurisdicional.
Não se pode perder de vista, além disso, que mesmo os direitos fundamentais, estejam eles inseridos no plano material ou processual, comportam certos limites legais. 
<blockquote class="jota-article__eye">Seria insustentável, no contexto do Estado de Direito e da vida em sociedade, o exercício desenfreado e irrestrito de todos os direitos e liberdades, em termos absolutos.</blockquote>
Recentemente, ao tratar do tema em outro espaço, citei o exemplo do duplo grau de jurisdição, na moldura que lhe confere a Constituição, como consectário do devido processo legal. A legislação processual estabelece limites ao exercício do direito de recorrer, inclusive com fixação de multa em casos de abuso desse direito, mas nem por isso se questionam os dispositivos legais que assim o fazem, sob o argumento de que tais normas seriam inconstitucionais por ofensa ao duplo grau de jurisdição ou ao amplo acesso à justiça.
Sobre a afirmada ofensa à isonomia, defendida por parcela da doutrina em razão do risco de que decisões completamente distintas relativamente a idênticas questões jurídicas sejam proferidas em ações coletivas julgadas por diferentes juízos, entendo que se trata de uma inconveniência de todo o sistema processual, verificada também na esfera do processo individual. E não se consideram inconstitucionais os limites subjetivos da coisa julgada incidentes nesses processos.
Aliás, é importantíssimo registrar que a possibilidade de decisões contraditórias não fica completamente afastada na hipótese de as sentenças proferidas em ação civil pública terem efeitos nacionais. Isso porque, ainda assim, podem ser propostas ações com o mesmo objeto e que resultem em decisões absolutamente distintas. A verificação da litispendência é, no cenário atual, bastante difícil, seja em razão da ausência de mecanismos para centralização das informações, seja pela dificuldade em se aferir a adequada representatividade em muitas delas.
<blockquote class="jota-article__eye">O risco de prolação de diferentes decisões para idênticas questões de direito, embora consista num fenômeno indesejado, não torna inconstitucionais os dispositivos legais que tratam dos limites subjetivos da coisa julgada e da divisão de competências para o exercício da função jurisdicional.</blockquote>
Para essas circunstâncias, o sistema processual civil brasileiro conta com o microssistema de julgamento de casos repetitivos, que permite o amplo e qualificado debate e possui plena aplicabilidade no plano da tutela coletiva de direitos. Segundo dispõe o art. 982, II, do CPC, admitido o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), o relator determinará a suspensão de todos “os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitam no Estado ou na região, conforme o caso”.
Da mesma forma, uma vez julgado o incidente, a tese fixada é aplicada a todos os processos versando a mesma questão jurídica, sejam eles individuais ou coletivos (art. 985, I). A mesma orientação se aplica no âmbito nacional, em relação à repercussão geral e aos recursos repetitivos (arts. 1.035, § 5.º, e 1.036, § 1.º, respectivamente).
As escolhas legislativas positivadas no texto legal emanam de um processo democrático, previsto e resguardado pela Constituição, de tal forma que não podem ser suprimidas pelo descontentamento com as regras ali postas ou por quaisquer outras ordens de razões. A indesejabilidade do fenômeno que possa decorrer da norma não lhe retira a constitucionalidade, especialmente quando o sistema legal o admite e desfruta de outros mecanismos capazes de lhe conferir o adequado tratamento, e que não desprestigiam nem enfraquecem o processo legislativo democrático.
A extração da limitação geográfica da coisa julgada resvalaria para o retorno ao ordenamento de uma regra jurídica capaz de gerar resultados nefastos: a possibilidade de eleição, com base na conveniência, do juízo para ajuizamento de ações coletivas, dentre os vários competentes. Essa prática resultaria em manifesta violação ao princípio do juiz natural, com o proferimento de decisão que produzirá efeitos em todo o território nacional. Evitar esse desvirtuamento da ação civil pública, aliás, foi justamente o escopo do legislador ao introduzir a regra do art. 16, como evidenciado na exposição de motivos da Lei 9.494/97.
Além disso, o art. 92, § 2.º, da CF, ao dispor sobre os órgãos do Poder Judiciário, explicita que somente o STF e os Tribunais Superiores exercem jurisdição no âmbito nacional. Autorizada doutrina defende que essa orientação pode nos levar à conclusão de que os demais órgãos devem fazê-lo dentro dos respectivos limites territoriais de atuação.
A meu ver, não parece ser possível o reconhecimento da inconstitucionalidade do art. 16 da LACP sem que se enverede para o campo do ativismo judicial, em situação em que claramente não há afronta à norma constitucional que possa conferir legitimidade à eventual ingerência do Poder Judiciário no resultado do exercício da atividade legislativa.
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O episódio 49 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre o que o Supremo Tribunal Federal precisa dizer sobre a prisão de deputados. Ouça:
https://youtu.be/9Tv7gNDT4Rw
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JOTA

A tutela coletiva e a limitação territorial dos efeitos da sentença

A constitucionalidade do art. 16 da Lei da Ação Civil Pública

A constitucionalidade do art. 16 da Lei da ACP. O primado do respeito às opções legislativas positivadas como elemento do Estado de Direito