Pedro Machado de Almeida Castro

Não passou despercebida, ao final de 2019, a <a href="http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=431405" target="_blank" rel="noopener noreferrer">notícia</a> de que a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal deu provimento a recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público Federal, a fim de reconhecer a tese de que o acórdão que confirma sentença penal condenatória também interrompe o prazo prescricional, em atenção à alteração produzida pela Lei nº 11.596/2007 no artigo 117, inciso IV, do Código Penal.
Não pretendemos, aqui, adentrar na questão de mérito da decisão, ou seja, sobre a controvérsia em relação ao artigo 117 do Código Penal (direito penal material), mas sim analisar processualmente as circunstâncias em que se deu o julgamento do recurso extraordinário, e como o instituto da repercussão geral parece ser um enigma dentro da própria Corte.
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Isto porque, como se vê do caso julgado – recurso extraordinário nº 1.237.572 – a Turma, usurpando a competência do Plenário, deu provimento ao agravo regimental e julgou, de supetão, o apelo extraoridinário, vencido o ministro relator Marco Aurélio.
Salta aos olhos a inconstitucionalidade de tal julgamento, cuja lógica vai de encontro à jurisprudência pacífica da Corte, e de toda construção sistemática e racional tanto da função jurisdicional do Supremo Tribunal Federal, quanto do instituto da repercussão geral. Senão vejamos.
A primeira incorreção surge de uma “suposta” falha recursal do Ministério Público, vez que a questão de direito posta em relação ao artigo 117 do Código Penal exsurge do julgamento da apelação perante Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
Na segunda instância, aplicou-se entendimento pacífico exarado pelo Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o acórdão confirmatório de sentença penal condenatória não interromperia o prazo prescricional, reconhecendo-se, assim, a extinção da pretensão punitiva. O Ministério Público não embargou e manejou, naquele momento, tão somente o recurso especial, deixando de interpor, acaso acreditasse existir questão constitucional a ser solucionada, o recurso extraordinário.
Acertou, ao tempo, o Ministério Público, pois verdadeiramente não cabe o recurso ao Supremo Tribunal Federal. Mas o fato é que do julgamento do recurso especial perante o Superior Tribunal de Justiça, sobre matéria que apareceu no TRF da 1ª Região, o Parquet interpôs o recurso extraordinário ora analisado, de forma que este não deveria sequer ser admitido.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
De toda sorte, ainda que o extraordinário tivesse sido manejado em face do acórdão perante o TRF da 1ª Região, igualmente não deveria ter sido admitido, pelas diversas razões abaixo.
A primeira delas é que o Ministério Público alega tão somente questões genéricas de princípios constitucionais<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, os quais são fácil e rotineiramente afastados pelos Verbetes números 282<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> e 636<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> da Súmula de jurisprudência do STF.
A segunda é que em nenhuma das instâncias foram opostos embargos de declaração a se levantar as questões supostamente constitucionais, que não constam dos acórdãos, fazendo incidir o óbice previsto no Verbete nº 356 da Súmula do STF<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
A terceira é de clareza límpida, perceptível de pronto, posto que o que se pretende discutir é a norma prevista no artigo 117 do Código Penal, ou seja, questão infraconstitucional; incidindo, mais uma vez, o Verbete nº 636 do STF.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
No ponto, aliás, esqueceu a 1ª Turma de nossa Suprema Corte da dicotomia criada com a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Com a proclamação da Carta da República, nasce o Superior Tribunal de Justiça, recebendo parte da função que até então cabia à Suprema Corte. É o próprio site do Tribunal da Cidadania quem explica:
“A reforma debatida propunha a revisão da competência do Supremo, destacando seu papel constitucional, e a criação de um novo tribunal, nacional, com jurisdição sobre matéria sem natureza constitucional. (…) No âmbito das reformas aconteceu a extinção do TFR, foram instituídos os Tribunais Regionais Federais (TRFs) - com o objetivo de substituir e regionalizar a jurisdição do extinto TFR -, e criado o STJ como última instância das leis infraconstitucionais tanto no âmbito da justiça federal como no da estadual. Com a nova corte, o Supremo assumiria a condição de tribunal predominantemente constitucional, reservando-se ao STJ as causas de natureza infraconstitucional.”<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
“Da forma como se estruturou o Poder Judiciário em 1988, ficou sob a responsabilidade do STJ o julgamento dos “recursos especiais”. Conhecidos como REsp, esses processos são uma espécie recursal oriunda do desmembramento do recurso extraordinário, julgado pelo STF. Antes, só existia um recurso julgado pelo STF, o extraordinário, que abrangia as competências hoje divididas entre o extraordinário e o especial.
Diante do aumento vertiginoso do número de causas que passaram a chegar ao Supremo, a Constituição de 1988 distribuiu a competência entre o STF e o STJ, sendo que o primeiro seria guardião da Constituição e o segundo, da legislação federal. Então, os recursos excepcionais foram divididos entre as duas cortes, cabendo exclusivamente ao STF o extraordinário e exclusivamente ao STJ o recurso especial.”<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>
Ademais, ad argumentandum tantum, afastando-se estas insuperáveis questões, falhou o Ministério Público – e o próprio colegiado – em comprovar a repercussão geral da matéria.
<blockquote class="jota-article__eye">Tanto o é que (i) nem o acórdão explicita os ditames constitucionais supostamente feridos, (ii) nem aponta, em razão de seu julgamento pela Turma – usurpando a competência do Plenário – eventual tese já firmada em sede de repercussão geral.</blockquote>
A verdade é que, mais uma vez, ainda que superando todos os óbices acima expostos, o julgamento de matéria em sede de recurso extraordinário pressupõe uma prévia análise da repercussão geral, que pode ser dividida em três colunas básicas: (1) se o tema já tiver repercussão geral positiva reconhecida (e julgada), o próprio tribunal na origem deveria aplicá-la, e acaso não o faça, aí sim está autorizado o julgamento do recurso pela Turma do Supremo; (2) se o tema, igualmente, já tiver repercussão geral negativa acolhida, o mesmo formato anterior se aplica; (3) por fim, se o tema é novidade e ainda não teve sua repercussão geral analisada, fatalmente é preciso que todos os ministros a analisem, não podendo haver julgamento pelo colegiado menor.
No caso concreto, trata-se de matéria que se enquadraria na terceira coluna, cuja eventual repercussão geral ainda não fora analisada (se é que há questão constitucional no tema, que não pode ser cogitada por meio de ofensa reflexa, nos termos do que vem decidindo o tribunal), de forma que qualquer recurso extraordinário sobre este objeto, para ser julgado, deve não só passar por tal análise, como só poderia ser decidido em Plenário.
O mais curioso, traçando-se um paralelo, é que quando o tema das candidaturas eleitorais avulsas foi objeto de questão de ordem suscitada pelo Ministro Luís Roberto Barroso, em sede de agravo em recurso extraordinário<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>, assim se manifestou o Ministro Alexandre de Moraes:
“(...) Ou seja, agora tudo vale; todos podem entrar com recurso; o recurso extraordinário não é admitido; mas há uma tese importante; puxa-se a tese; dão-se efeitos concentrados. Quer dizer, nós vamos estar acabando com o ordenamento jurídico que diferencia a repercussão geral do controle concentrado.”<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>
Se tudo isso já não fosse suficiente para demonstrar o desacerto processual do julgamento, a pá de cal fica evidente com a afetação do habeas corpus nº 176.473/RR – que trata deste exato tema (artigo 117, inciso IV, do Código Penal) – ao Plenário.
Houvesse repercussão geral, ou mesmo posição consolidada, não só writs como este poderiam ser decididos pela Turma, como os próprios ministros o fariam monocraticamente.
Tempos estranhos.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Nesse sentido, por todos: EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. APELO EXTREMO MANEJADO CONTRA ACÓRDÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. PRECLUSÃO DAS QUESTÕES CONSTITUCIONAIS ALEGADAS. 1. Nos termos da jurisprudência do STF, a admissibilidade do recurso extraordinário interposto contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça está adstrita a discussões constitucionais inauguradas no julgamento do recurso especial. As matérias constitucionais que já foram objeto de análise pelas instâncias ordinárias precluem, ante a não interposição simultânea de recurso extraordinário e recurso especial. Precedentes. 2. Agravo regimental desprovido. 
(STF - AI 761983 AgR, Relator  Min. AYRES BRITTO, Segunda Turma, julgado em 19/10/2010)
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Tais como legalidade, segurança jurídica, devido processo legal e outros.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> “282 - É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada.”
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> “636 - Não cabe recurso extraordinário por contrariedade ao princípio constitucional da legalidade, quando a sua verificação pressuponha rever a interpretação dada a normas infraconstitucionais pela decisão recorrida.”
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> “356 - O ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento.”
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Por todos, em caso similar: Ementa: DIREITO PENAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. COMPENSAÇÃO DA AGRAVANTE DA REINCIDÊNCIA COM A ATENUANTE DA CONFISSÃO ESPONTÂNEA. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. AUSÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL. 1. O Tribunal de origem, ao interpretar o art. 67 do Código Penal, entendeu ser possível a compensação entre a agravante da reincidência e a atenuante da confissão espontânea, por considerá-las, em tese, igualmente preponderantes. 2. Inexistência de matéria constitucional a ser apreciada. Questão restrita à interpretação de norma infraconstitucional. 3. Afirmação da seguinte tese: não tem repercussão geral a controvérsia relativa à possibilidade ou não de compensação da agravante da reincidência com a atenuante da confissão espontânea.(STF - RE 983765 RG, Relator Min. ROBERTO BARROSO, julgado em 15/12/2016)
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> <a href="http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Institucional/Historia/A-Constituinte">http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Institucional/Historia/A-Constituinte</a>
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Institucional/Historia/Nasce-o-Recurso-Especial
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Ou seja, antes mesmo que o próprio apelo extremo chegasse ao tribunal, o que foi apontado por diversos ministros.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> ARE 1054490 QO, Relator Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 05/10/2017.

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JOTA

Turma, usurpando competência do Plenário, deu provimento ao agravo regimental e julgou o apelo extraordinário

Confusão suprema e a (ainda) enigmática repercussão geral

Turma, usurpando competência do Plenário, deu provimento ao agravo regimental e julgou o apelo extraordinário