Vinicius Marques de Carvalho

Na próxima terça-feira (13/4), a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deverá retomar o julgamento sobre a possibilidade de condomínios residenciais proibirem condôminos de ofertarem suas unidades autônomas para aluguel para temporada por meio de plataformas digitais. No cerne da discussão, situa-se o enquadramento do negócio jurídico de disponibilização temporária e remunerada de imóveis para estadia de curta duração. Mais especificamente, o caso diz respeito à hipótese de mudanças de comportamento e escala trazidas pela inovação tecnológica darem causa à alteração da natureza do negócio. A controvérsia já foi objeto de decisões de alguns tribunais estaduais e do próprio STJ e está em vias de ser pacificada pela Corte Superior, o que trará mais segurança jurídica a uma prática já disseminada, que beneficia milhares de anfitriões e locatários pelo país.
O Recurso Especial em questão teve origem em apelação julgada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), envolvendo litígio entre o proprietário de um apartamento e seu condomínio, localizado em Porto Alegre. Debruçado sobre caso típico de locação para temporada viabilizada por plataforma, o Tribunal a quo entendeu que a ausência de vinculação entre proprietário e inquilinos, a prévia reforma do apartamento para ampliar acomodações e a existência de infraestrutura de lavandeira seriam suficientes para configurar uma espécie de “contrato atípico de hospedagem”. Esse suposto uso comercial do imóvel seria, então, passível de ser proibido pelo condomínio por convenção.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>
O entendimento contraria posições já adotadas por outros tribunais do país em casos análogos<a href="applewebdata://F04431B8-3FE8-4AAD-8F8E-C6ED0F8CCAB0#_edn1" name="_ednref1">[i]</a>, o que foi um dos fundamentos para a interposição do recurso ao STJ, que conta com a participação da plataforma Airbnb como assistente. O relator do caso, ministro Luis Felipe Salomão, proferiu seu voto ainda em 2019. Para ele, diferentemente do entendimento do TJ-RS, as locações intermediadas via plataformas não caracterizam contrato de hospedagem, correspondendo à figura da locação para temporada, regulada pelos artigos 48 e 49 da Lei do Inquilinato (Lei 8.245/91). Ainda seguindo o entendimento do relator, na condição de uso residencial típico do imóvel, a disponibilização do apartamento a terceiros por meio da celebração de contratos de locação não é passível de proibição pelo condomínio, sob pena de se ferir o direito de propriedade do condômino. O julgamento foi interrompido por pedido de vistas do ministro Bruno Araújo.
Note-se que a locação para temporada é um contrato típico e regulado pela legislação federal há pelo menos 30 anos. Independentemente das formalidades ou de se assim denominá-lo, é o negócio jurídico efetivamente celebrado desde tempos imemoriais entre proprietários de imóveis residenciais e inquilinos interessados em locar espaço físico residencial para estadia de curta duração – pela legislação atual, até 90 dias. É natural indagar, então, quais mudanças teriam motivado o surgimento da controvérsia sobre os limites desse contrato, velho conhecido dos civilistas.
Como vem ocorrendo em diversos setores da economia, a inovação tecnológica e, em especial, o surgimento das plataformas digitais facilitaram de diversas formas a interação entre proprietários e inquilinos e propiciaram a ampliação da oferta de imóveis à locação para temporada. Ou seja, fundamentalmente, o que se verifica é uma mudança na forma de interação entre as partes e, em virtude das eficiências geradas, a elevação da escala em que esse negócio é praticado.
A questão que se coloca é se o meio de interação e a frequência com que o negócio é celebrado – seja por uma mesma parte, em um mesmo município ou edifício ou via aumento do número de pessoas ou municípios envolvidos em sua celebração – seriam capazes, por si, de alterar a natureza do negócio. Um primeiro caminho para responder a questão é revisitar a definição legal e identificar se, de algum modo, essas mudanças afetam os elementos nucleares do tipo do contrato. Veja-se a redação do art. 48 da Lei do Inquilinato: Art. 48. Considera-se locação para temporada aquela destinada à residência temporária do locatário, para prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras em seu imóvel, e outros fatos que decorrem tão-somente de determinado tempo, e contratada por prazo não superior a noventa dias, esteja ou não mobiliado o imóvel.
A locação em geral, nos termos do art. 565 do Código Civil Brasileiro de 2002 (CCB/02), consiste na cessão onerosa e não definitiva do uso e gozo de coisa não fungível mediante remuneração. A Lei do Inquilinato é o diploma que disciplina a locação de imóveis urbanos. Do artigo 48 da referida Lei, acima transcrito, é bastante simples extrair os dois elementos nucleares que caracterizam a modalidade “locação para temporada”: a destinação do imóvel como residência temporária do locatário e o prazo não superior a noventa dias.
Uma interpretação textual e lógica das definições é suficiente para se concluir que o meio de interação entre as partes – via telefone, plataforma digital, correspondência, e-mail, imobiliária etc. – ou a frequência com que o negócio ocorre não integram o “tipo” do contrato” e, por isso, são incapazes de descaracterizar o negócio. O fundamental é o uso residencial do imóvel, que independe desses fatores. O inquilino remunera o locador pelo uso do imóvel com o intuito de nele residir por período igual ou inferior a noventa dias.
Outro caminho, um pouco mais longo, para afastar a descaracterização do contrato é analisar os elementos nucleares do negócio ao qual, por hipótese, a relação em questão se aproximaria. Como se viu, a tese alternativa suscitada no caso é a de enquadramento da relação como contrato de hospedagem. Remete-se, então, à definição correspondente da Lei Geral do Turismo (Lei 11.771/08): Art. 23. Consideram-se meios de hospedagem os empreendimentos ou estabelecimentos, independentemente de sua forma de constituição, destinados a prestar serviços de alojamento temporário, ofertados em unidades de freqüência individual e de uso exclusivo do hóspede, bem como outros serviços necessários aos usuários, denominados de serviços de hospedagem, mediante adoção de instrumento contratual, tácito ou expresso, e cobrança de diária.
<blockquote class="jota-article__eye">Ora, a definição legal não poderia ser mais clara: o contrato de hospedagem se configura pela prestação de serviços de hospedagem, o que não se confunde com a mera disponibilização do imóvel para estadia temporária.</blockquote>
Se não há prestação de serviço, não há que se falar em contrato de hospedagem. Entendimento análogo, inclusive, embasou a edição da Súmula Vinculante 31 pelo Supremo Tribunal Federal em matéria de tributação incidente sobre locações<a href="applewebdata://F04431B8-3FE8-4AAD-8F8E-C6ED0F8CCAB0#_edn2" name="_ednref2">[ii]</a>. No mesmo sentido já se pronunciou o próprio STJ, ao assentar o direito do condômino de locar sua unidade para temporada.<a href="applewebdata://F04431B8-3FE8-4AAD-8F8E-C6ED0F8CCAB0#_edn3" name="_ednref3">[iii]</a>
Pacificada a natureza do negócio, torna-se incontroversa a caracterização da locação para temporada por plataforma como uso residencial típico, que integra o núcleo do direito do proprietário de dispor de seu imóvel. No caso do proprietário de imóvel condominial, o direito constitucional de alienar ou locar sua unidade autônoma, nos termos do artigo 1.335 do CCB/02. Ou seja, locar o imóvel é faculdade do proprietário, configurando decisão restrita à sua esfera privada, como didaticamente expos em seu voto o Min. Salomão. Para tanto, o proprietário não depende de qualquer tipo de autorização do condomínio. Até por força da vedação a que convenção condominial prevaleça sobre preceitos de ordem pública (art. 2.035 do CCB/02), tampouco poderia o condomínio, a posteriori, proibi-la em abstrato. Permitir a vedação significaria abrir espaço para o verdadeiro esvaziamento econômico do imóvel, deteriorando, injustificada e ilegitimamente, seu valor de troca em prejuízo do proprietário.
Ainda que não integre o cerne do caso em questão, é importante abordar um último aspecto, suscitado com alguma frequência no debate público sobre o tema e que ganha novos contornos no contexto de preocupações agravadas surgidas do contexto da pandemia. Sendo a locação do apartamento para temporada um direito do proprietário impassível de vedação abstrata pelo condomínio, algo poderia ser feito em face de eventuais abusos no exercício desse direito?
A resposta é afirmativa. A legislação civil ampara legítimas preocupações com as condições da vida em condomínio frente a possíveis problemas decorrentes de abusos de direito, em especial com eventual negligência em face das normas de segurança, sossego, boa convivência e salubridade (vide art. 1.336 do CCB/02) – essa última acentuada diante da crise sanitária instalada no país. A convenção ou o regimento do condomínio podem plenamente dispor sobre cuidados adicionais em vista de situações específicas – incluindo o possível aumento de rotatividade propiciado pela locação para temporada. Além disso, o condomínio tem, no limite, alternativas de sanção previstas no CCB/02, em especial no art. 1.337, para coibir comportamento antissocial, que viole o direito de vizinhança e a boa convivência. Ou seja, diante de transtornos relacionados a locações ou quaisquer outras práticas dos condôminos, o condomínio dispõe de instrumentos legais eficazes para coibir comportamentos nocivos.
Ante o exposto, conclui-se que, a despeito das mudanças fáticas propiciadas pela inovação tecnológica, pelos novos padrões de interação entre particulares ou mesmo pelos desdobramentos da crise sanitária, não houve qualquer mudança no núcleo dos negócios celebrados e a regulação jurídica atual segue dando conta de disciplinar adequadamente as relações em questão. A locação para temporada, independentemente do meio de negociação e celebração, é faculdade do proprietário e segue regrada como tal, sendo impassível de vedação em abstrato. Os condomínios, de outro lado, seguem contando com mecanismos aptos a manter a boa convivência e punir abusos de direito dos condôminos. Nos próximos dias, o STJ terá a oportunidade de reafirmá-lo e pacificar definitivamente a questão, garantidor mais segurança ao livre desenvolvimento da relação entre locatários e inquilinos de curta duração.
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<a href="applewebdata://F04431B8-3FE8-4AAD-8F8E-C6ED0F8CCAB0#_ednref1" name="_edn1">[i]</a> É o caso, por exemplo do TJSP, que em caso análogo se posicionou unanimemente em sentido contrário ao exarado pelo TJRS. É o que ilustra trecho do voto do Des. Morais Pucci, que conduziu decisão: “[...] a simples locação da unidade autônoma por curtos períodos não caracteriza hospedagem e nem mesmo desvirtua a destinação exclusivamente residencial do condomínio.” (TJ-SP; Apelação nº 1124567-87.2017.8.26.0100 da Comarca de São Paulo).
<a href="applewebdata://F04431B8-3FE8-4AAD-8F8E-C6ED0F8CCAB0#_ednref2" name="_edn2">[ii]</a> Dispõe a Súmula Vinculante 31 do STF: “É inconstitucional a incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza - ISS sobre operações de locação de bens móveis.”
<a href="applewebdata://F04431B8-3FE8-4AAD-8F8E-C6ED0F8CCAB0#_ednref3" name="_edn3">[iii]</a> [...] AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DECLARATÓRIA. LOCAÇÃO POR PRAZO INFERIOR A 30 (TRINTA) DIAS. OMISSÃO DO TRIBUNAL ESTADUAL QUANTO AO CUMPRIMENTO DO REGIMENTO INTERNO E DA CONVENÇÃO COLETIVA, QUE FAZEM LEI ENTRE OS CONDÔMINOS, OS QUAIS NÃO SE OPÕEM A NORMA LEGAL. QUESTÃO OPORTUNAMENTE SUSCITADA. […] In casu, verifico que a utilização dos apartamentos para locação por temporada é uma prática corriqueira e legal, inclusive com previsão no artigo 48 da Lei 8.145/91. (…) o Código Civil assegura aos proprietários o direito de gozar de seus bens. Igualmente, a lei de locações determina que os aluguéis temporários possuem prazo máximo de noventa dias (art. 48). Diante dessas circunstâncias, convém perceber que a norma regimental encontra-se em expresso descompasso com a legislação, pois ao estabelecer apenas um prazo máximo para os alugueis por temporada, a norma, a contrario sensu, autoriza tal instituto por qualquer prazo inferior a este. É evidente o silêncio eloquente do legislador, pois poderia ter estabelecido prazo mínimo, mas contentou-se em apenas ditar o prazo máximo para essa modalidade de contrato.” (…) Desta maneira, não há nenhuma ilegalidade o fato da autora/agravada promover a locação do seu apartamento a pessoas estranhas ao condomínio por curto período de tempo. (...) [STJ – AREsp: 1174291 SE 2017/0240403-5, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, DJ 24/11/17]

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JOTA

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