Rita Motta

As plataformas e ecossistemas online possuem características econômicas (por exemplo, mercados de diversos lados, efeitos de rede, utilização de ferramentas de precificação e não precificação e uso significativo de dados) que trazem grandes desafios para a aplicação de ferramentas tradicionais de análise e aplicação da lei concorrencial.
Um ponto de interesse em particular é a discussão sobre se a definição de mercado relevante seria a base mais adequada para as autoridades concorrenciais identificarem pressões competitivas no contexto das plataformas online e avaliarem o poder de mercado em ambientes nos quais os efeitos de rede desempenham um papel importante.
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<h3>Limitações da abordagem convencional de mercado relevante</h3>
A abordagem convencional de definição de mercado relevante procura identificar os produtos e serviços que sejam mais similares aos oferecidos pelas partes da operação analisada, estabelecendo, assim, uma correlação direta entre o grau de substituibilidade entre os produtos ou serviços das partes e a gravidade das preocupações concorrenciais que a operação possa suscitar. A abordagem convencional coloca a substituibilidade como um fator central na definição do mercado relevante – e, portanto, na análise da proximidade de concorrência.
Entretanto, no contexto das plataformas online e dos mercados digitais, em que a inovação desempenha um papel significativo no desenvolvimento de melhorias disruptivas e os ciclos de inovação têm se tornado cada vez mais curtos, faz pouco sentido fundamentar a análise de definição do mercado relevante apenas no grau de substituibilidade entre os produtos ou serviços atualmente ofertados.
As formas mais comuns de avaliar a substituibilidade – por exemplo, dados históricos de trocas de fornecedores ou de licitações e análise de preços – têm limitações inegáveis para uma avaliação prospectiva do poder de mercado e da proximidade de concorrência em mercados onde a inovação é tão importante, e nos quais os produtos ou serviços muitas vezes têm preço zero.
No contexto das plataformas online, uma análise válida de preferências do lado da demanda precisaria ir além de produtos estritamente similares, para basear-se em novas características qualitativas oferecidas aos consumidores e em suas experiências e níveis de satisfação. Da mesma forma, como as atividades das plataformas online normalmente abrangem vários mercados, uma análise compreensiva pelo lado da oferta precisaria considerar diferentes mercados e modelos de negócios.
Estas questões foram levadas em consideração pela autoridade concorrencial do Reino Unido, a Competition &amp; Markets Authority (CMA), na análise da fusão da Just Eat com a Hungryhouse.
<h3>Operação Just Eat/Hungryhouse</h3>
No caso Just Eat/Hungryhouse, a CMA analisou a fusão entre duas plataformas de pedidos para viagem (take away). Just Eat e Hungryhouse eram “food ordering marketplaces” que tinham modelos de negócios quase idênticos para conectar dois grupos distintos de clientes: restaurantes e consumidores de comida “para viagem”. Nesse sentido, Just Eat e Hungryhouse eram “agregadores puros”, pois disponibilizavam os cardápios dos restaurantes online aos clientes, bem como transmitiam os pedidos dos clientes para tais restaurantes; por sua vez, os próprios restaurantes eram responsáveis pela entrega. O lado dos restaurantes na plataforma pagava uma taxa, que consistia em uma porcentagem fixa do valor do pedido; já pelo lado dos clientes, não havia pagamento para usar a plataforma.
A CMA tinha preocupações prima facie a respeito da fusão, uma vez que a participação combinada das partes no Reino Unido era superior a 80%. Entre os agregadores puros, a Just Eat era líder de mercado, enquanto a Hungryhouse era deficitária; não havia outros fornecedores com atuação representativa nesse mercado no país.
Em paralelo aos agregadores puros, surgiu um modelo de negócios de "agregação e entrega" com a entrada e expansão no Reino Unido de especialistas em pedidos e logística como Deliveroo, Uber Eats e Amazon Restaurants. Estes especialistas gerenciavam a entrega, além de conectar restaurantes e clientes em uma única plataforma; eram, portanto, indiscutivelmente mais atraentes para os restaurantes, uma vez que estes podiam delegar o serviço de entrega.
A CMA conduziu uma investigação detalhada (baseada em pesquisas, análise econométrica, documentos internos das partes e informações de terceiros) para avaliar até que ponto a Hungryhouse exercia pressão concorrencial sobre a Just Eat, bem como até que ponto os especialistas em pedidos e logística poderiam exercer pressão concorrencial sobre os preços dos agregadores puros. A CMA concluiu que a fusão não resultaria em uma redução substancial da concorrência em qualquer mercado no Reino Unido porque, de acordo com suas conclusões, especialistas em pedidos e logística (que possuíam um modelo de negócios diferente da Just Eat) exerciam uma maior pressão concorrencial sobre a Just Eat do que a Hungryhouse, ainda que a Hungryhouse tivesse um modelo de negócios totalmente substituível em comparação com a Just Eat.
A CMA concluiu que a pressão concorrencial sobre a Just Eat advinha precisamente das diferenças no modelo de negócios e na experiência do cliente decorrentes das inovações trazidas pelos especialistas em pedidos e logística. Na prática, Deliveroo, Uber Eats e Amazon Restaurants eram concorrentes mais próximos da Just Eat do que a Hungryhouse.
Os principais pontos da conclusão da CMA a respeito da operação podem ser resumidos como segue:
<ul>
<li>Como as partes eram plataformas que facilitavam as transações entre clientes de dois lados, era adequado definir um único mercado relevante que abrangesse ambos os lados, de forma a considerar as pressões competitivas exercidas tanto sobre os restaurantes quanto sobre os clientes de comida “para viagem”.</li>
<li>Os efeitos indiretos de rede eram uma característica crucial das atividades das partes, haja vista que o valor em utilizar a plataforma pelo lado do restaurante dependia da participação dos clientes de comida “para viagem” do outro lado, e vice-versa.</li>
<li>Havia uma diferenciação vertical significativa entre as partes (ou seja, suas atividades eram idênticas em todas as dimensões, exceto quanto ao número de restaurantes e clientes nas respectivas plataformas, resultando em uma diferenciação objetiva de qualidade); contudo, a diferenciação horizontal não era significativa (não havia diferença do ponto de vista dos tipos de serviços oferecidos que poderiam levar à preferência subjetiva dos clientes por uma empresa em relação à outra). A Just Eat possuía mais restaurantes registrados em sua plataforma do que a Hungryhouse, consequentemente atraindo mais clientes devido a esta diferenciação vertical. Por sua vez, a Hungryhouse não poderia contrapor esta diferenciação baixando preços, tendo em vista que os clientes finais não pagavam para acessar as plataformas. Portanto, as partes competiam essencialmente pelo número de restaurantes ligados a elas.</li>
<li>Foi relevante avaliar, também, se os restaurantes e clientes apresentavam a tendência de usar uma ou várias plataformas de comida online (single homing ou multi homing). Em última instância, os restaurantes ligados à Hungryhouse eram provavelmente também listados na Just Eat, porém não o contrário; além disso, havia mais uso de apenas uma plataforma entre os clientes de comida “para viagem” do que entre os restaurantes.</li>
<li>Quando os produtos e serviços de um lado da plataforma são fornecidos a preço zero, aspectos de qualidade podem ser uma medida de substituição mais válida do que o preço em si.</li>
<li>Considerando os dois lados da plataforma em conjunto (restaurantes e clientes finais), os serviços de especialistas em pedidos e logística podiam ser considerados substitutos suficientemente próximos aos serviços de agregadores puros para serem incluídos no mesmo mercado.</li>
</ul>
<h3>Conclusão</h3>
O caso Just Eat/Hungryhouse é um bom exemplo de como plataformas online podem exigir uma abordagem que vai além dos modelos convencionais de análise concorrencial. Também evidencia a necessidade de considerar a melhor forma de analisar os limites do mercado em que as empresas concorrem entre si.
Os desafios que as plataformas online e, mais amplamente, a digitalização da economia levantam do ponto de vista da análise concorrencial têm levado as autoridades em várias partes do mundo a promover um debate público sobre a aplicação do direito da concorrência nos mercados digitais.
No Reino Unido, a CMA publicou uma revisão do seu guia de análise de atos de concentração (Merger Assessment Guidelines) em abril de 2021. Em relação à proximidade de concorrência, o guia atualizado reconhece que "o conceito de proximidade de concorrência próxima não se limita a produtos ou serviços com características semelhantes".
E acrescenta: "Uma empresa pode ser um concorrente próximo se representar uma força competitiva significativa ou exercer forte pressão concorrencial sobre outras empresas. Por exemplo, uma empresa que tenha reputação de, ou incentivo específico para competir agressivamente ou se comportar como uma maverick, ou que está ativamente desafiando o status quo ao usar uma nova tecnologia ou novo modelo de negócios, pode representar um concorrente próximo a outras empresas, mesmo que suas respectivas ofertas sejam bem diferentes".
Uma análise apropriada de pressão concorrencial, portanto, pode exigir que as autoridades concorrenciais vão além de produtos ou serviços estritamente substituíveis entre si e considerem a relação entre produtos ou serviços inovadores e produtos ou serviços já existentes, bem como a experiência oferecida ao consumidor, para além dos limites mais estritos de definição de mercado relevante.

concorrência online

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JOTA

Pressão competitiva analisada com base na experiência oferecida ao consumidor, para além de limites estritos de mercado relevante

Plataformas online e proximidade de concorrência

Pressão de concorrência analisada com base na experiência oferecida ao consumidor, para além de limites estritos de mercado relevante