Rubens Glezer
Professor de Direito Constitucional da FGV e autor do livro "Catimba Constitucional". Coordenador do Supremo em Pauta
O Caso Conama é central para compreender a dinâmica entre o governo Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal. É um caso exemplar de como Bolsonaro avança sua agenda iliberal e contrária aos valores constitucionais por meio de um método de “infralegalismo autoritário”. Além disso, é um caso que torna evidente a necessidade da coletividade dos ministros mitigarem, ou até mesmo bloquearem, a catimba constitucional e o radicalismo individual de seus ministros.
A identificação do método do infralegalismo autoritário vem sendo mapeada por Vieira, Glezer e Barbosa. O monitoramento do governo Bolsonaro permitiu identificar uma singularidade em relação a outros líderes populistas autocráticos: ao invés de modificar o texto constitucional ou modificar o panorama legal, Bolsonaro avançou poucas medidas por meio de Poder Legislativo nos dois primeiros anos de governo.
Seu infralegalismo autoritário combina a edição de atos infralegais (como decretos), modificações na estrutura burocrática (pela ação ou omissão) e a criação de diretrizes por meios para-institucionais (ordens ilegais ou ameaças). É por meio desse repertório, que Bolsonaro tenta legislar sem o Congresso Nacional, subvertendo a finalidade de instituições que protegem direitos sociais e individuais ou desmantelando-as, bem como fragilizando instituições de investigação e controle. [1]
Os órgãos de fiscalização ambiental foram e continuam sendo especialmente atingidos por esse método: na alta burocracia foram nomeados agentes contrários à preservação ambiental, na média burocracia cargos ficaram vagos ou foram ocupados por pessoas sem formação técnicas adequada, enquanto na baixa burocracia, fiscais do Ibama foram constantemente ameaçados pelo presidente da República simplesmente por cumprir a lei (como no caso da queima de máquinas apreendidas em desmatamento ilegal).
Dentro desse processo, o Caso do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) é peça fundamental. Trata-se de um colegiado da administração pública destinado a assessorar, estudar e fazer propostas ao governo. Por meio de suas deliberações, o Conama aprova resoluções que integram a regulação do meio-ambiente.
A captura deste órgão permite o desmonte das regras administrativas de proteção ambiental. Não é à toa que, logo no início do governo Bolsonaro, o Conama foi atingido pelo Decreto nº 9.806/19, que diminuiu a participação da sociedade civil no conselho, ampliando, com isso, a centralização do poder decisório nas mãos do Executivo.
Desfalcado de especialistas e membros da sociedade civil, o Conama tem aprovado diversas resoluções que vão de encontro à legislação ambiental e aos princípios estabelecidos na Constituição de 1988, favorecendo setores predatórios do agronegócio.
Essa subversão do Conama foi questionada perante o Supremo Tribunal Federal pela ADPF nº 623. O caso foi levado a julgamento no plenário virtual para que tivesse celeridade. Após quatro votos pela procedência da ação, reconhecendo a inconstitucionalidade desse desmonte realizado sob a escusa de reestruturação, o julgamento foi interrompido por pedido de vista do ministro Nunes Marques. Um pedido de vistas que já ultrapassou o prazo estabelecido pelo período regimental, lhe dando liberdade para escolher quando retomar o debate e em qual foro (plenário físico ou virtual).
É bem verdade que os ministros até hoje foram lenientes com as condutas individuais de ministros que controlavam as deliberações do tribunal da forma que bem entendiam.[2] Contudo, já está bem mapeado pela literatura e evidente no debate público que há um custo elevado para o Supremo toda vez que mantém essa leniência.
Sempre que o colegiado não controla manobras individuais de catimba constitucional – exatamente como pedidos de vista que possam ser percebidos como uma forma de obstruir a deliberação da maioria – há uma erosão na autoridade do próprio STF e do texto constitucional. Uma autoridade crucial para a manutenção do equilíbrio democrático no país. [3]
Além disso, o tempo urge. O Conama, que não se reunia desde o início do julgamento da ADPF nº 623, está com reunião agendada para o próximo dia dez de agosto. A pauta é explosiva: a modificação do CNEA, que estabelece as condições para que organizações da Sociedade Civil possam participar do Conama. A nova proposta de alteração passa a estabelecer uma série de exigências burocráticas e impertinentes, que inviabilizam a participação de boa parte das entidades focadas na causa ambiental.[4]
Em precedente, a tentativa de alijar a participação popular da formulação de políticas públicas ambientais já foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal. Em verdade, o método aplicado ao Conama reproduz a tentativa de fragilização do Conanda, vedada por decisão em sede da ADPF 622, na qual o Supremo determinou que são inconstitucionais as alterações destinadas a diminuir a participação da sociedade civil em conselhos.
O Conama está prestes a ser consumido por uma tragédia incremental e anunciada, que já colocou em chamas nossas reservas florestais, nosso povo indígena e até nossas instituições culturais (como a cinemateca). Para que o Supremo Tribunal Federal o salve basta reafirmar sua Jurisprudência, mas precisará reformar suas práticas. O que vale mais, a liberdade dos pedidos de vista ou a integridade das nossas instituições?
[1] Versões preliminares do argumento foram publicadas em VIEIRA, Oscar Vilhena; GLEZER, Rubens. Populismo Autocrático e Resiliência Constitucional. Revista Interesse Nacional, v. 47, p. 66–76, 2019; posteriormente em VIEIRA, Oscar Vilhena; GLEZER, Rubens; BARBOSA, Ana Laura Pereira. Governando sem coalizão: um balanço sobre o primeiro ano do mandato do Bolsonaro. In: Populismo, constitucionalismo populista, jurisdição populista e crise da democracia. Belo Horizonte, MG: Grupo Editorial Letramento, Casa do Direito, 2020. Contudo, a exposição definitiva do método será publicada em breve em VIEIRA, Oscar Vilhena; GLEZER, Rubens; BARBOSA, Ana Laura. “Bolsonaro e infralegalismo autoritário: a burla aos limites legislativos nos dois primeiros anos de governo Bolsonaro” In: A tool of autocracy or a force of resistance? Deciphering law's place in Brazil under Bolsonaro (no prelo).
[2] CF. ARGUELHES, Diego Werneck; HARTMANN, Ivar A. Timing control without docket control: How individual justices shape the brazilian supreme court’s agenda. Journal of Law and Courts, v. 5, n. 1, p. 105–140, 2017. BARBOSA, Ana Laura Pereira. Decidindo (não) decidir: Instrumentos de influência individual na definição da agenda e do tempo dos julgamentos no STF. Dissertação (Mestrado em Direito), Universidade de São Paulo, São Paulo/SP, 2020. ARGUELHES, Diego Werneck; RIBEIRO, Leandro Molhano. Ministocracia : O Supremo Tribunal individual e o processo democrático brasileiro. Novos estudos CEBRAP, v. 37, n. 1, p. 13–32, 2018.
[3] GLEZER, Rubens. Catimba Constitucional: o STF, do antijogo à crise constitucional. São Paulo: Juspodium, 2021.
[4] A nova alteração passaria a exigir um recadastramento anual no CNAE. Para este registro, não bastaria comprovar seu regular funcionamento. As organizações ambientalistas deveriam juntar atestado técnico da experiência em projetos e pesquisas socioambientais, bem como juntar uma declaração que ateste a existência de um corpo técnico com experiência em áreas específicas.