Vivências no MPF

Realidade das comunidades caiçaras: uma barreira contra a insensatez

A luta da Comunidade Caiçara de Trindade pelo direito fundamental a manter o isolamento social em tempos da Covid-19

Realidade das comunidades caiçaras: uma barreira contra a insensatez. Imagem pixabay
Crédito: Pixabay

Relatos envolvendo o desrespeito aos direitos fundamentais dos povos indígenas, comunidades quilombolas e outras comunidades  tradicionais[1] nunca foram uma novidade no Brasil. Presentemente, além de recorrentes, tais afrontas tornaram-se mais visíveis, desde que a pandemia causada pelo novo coronavírus desembarcou em solo pátrio.

Em verdade, a propagação da Covid-19 veio apenas realçar a imensa desigualdade social que assola nosso país, em que parcela considerável da população, em razão de reiterada  ineficiência do poder público, têm precárias estruturas de água, energia elétrica, saneamento básico, e outros serviços públicos essenciais. Escancara ainda o racismo estrutural que permeia a formação da sociedade brasileira  e  de maneira insidiosa, ou   nem tanto, reforça a  perpetuação  da desigualdade de grupos sociais e  raciais.

Em relação aos povos indígenas e às comunidades tradicionais esse quadro se mostra ainda mais perverso, diante da histórica invisibilidade e crônica omissão  do poder público em prover-lhes os direitos mais fundamentais, dentre eles, sem dúvida, o direito ao território tradicional, entendido este como a base para o desenvolvimento de suas plenas capacidades e a partir dos quais outros direitos humanos – tais como os direitos sociais, culturais e econômicos – e liberdades fundamentais podem ser acessados, como lhes é assegurado pela Constituição da República do Brasil, além de outros documentos internacionais, a exemplo da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT.

Registre-se que a demora no reconhecimento estatal dos territórios tradicionais, tem sido motivo de agravamento da situação de  vulnerabilidade em que foram colocadas de modo histórico essas  populações,   sujeitando-as, além do que, a um permanente e desigual enfrentamento  dos inúmeros atentados aos seus territórios ancestrais, perpetrados por toda sorte de aventureiros: grileiros, mineradores e desmatadores em busca de riquezas minerais e florestais, mas também grandes empreendimentos imobiliários, rodoviários, energéticos, entre tantos outros.

Destituídos de “títulos” ou documentos formais que comprovem o seu “modo de criar, fazer e viver”, garantidos pelo art. 216 da CF/88, e que plasmam o conceito de “território tradicional, essas comunidades tornam-se presas fáceis de particulares inescrupulosos  e agentes estatais desinformados ou ímprobos.

No entanto, exemplos valiosos de resistência a esse estado de coisas inconstitucional por parte  desses povos e comunidades têm sido vistos e registrados Brasil afora, encabeçada por  lideranças ou associações comunitárias, com tal nível de organização e autoconsciência de sua história e direitos, capaz de assumir o protagonismo pelo próprio processo de desenvolvimento conferindo a almejada concretude às normas jurídicas já referidas.

É desse protagonismo que trataremos a seguir, a exemplo da comunidade tradicional Caiçara de Trindade e sua luta para manter a barreira de isolamento que a protege da pandemia em curso.

Habitando, de longa data, um local privilegiado do ponto de vista paisagístico no litoral brasileiro, no município de Paraty, estado do Rio de Janeiro, a população Caiçara de Trindade convive forçosamente com um enorme fluxo de turistas, diga-se, aliás, muito acima da capacidade de gestão das autoridades municipais, o que impacta diretamente o modo de vida e a cultura local,  diante da enorme pressão dos visitantes por acesso a suas paradisíacas praias, cachoeiras, bares e restaurantes típicos, entre outros atrativos diretamente referenciados à uma rica cultura, que inclui a pesca artesanal, a agricultura, a caça, o extrativismo vegetal, o artesanato.

Do mesmo modo, sendo Trindade, um distrito do município de Paraty, está sujeito às leis municipais que, dentro de suas competências constitucionais, regulam principalmente assuntos de interesse local (art. 30 da CF) e, no que aqui nos interessa, tem competência comum para legislar sobre saneamento básico, ao lado da União, Estados e Distrito Federal.

Relembre-se que, na dicção do inciso X, do artigo 3º, do Decreto 6.040/2007,  tais comunidades devem ter garantidos os “serviços de saúde de qualidade e adequados às suas características sócio-culturais, suas necessidades e demandas, com ênfase nas concepções e práticas da medicina tradicional”.

Assim, com respaldo na especial legislação de regência já referida,  no artigo 196 da CF/88, que garante o direito à saúde a todos os cidadãos brasileiros,  e por necessidade inadiável em razão da Emergência de Saúde Pública declarada pela OMS, como é público e notório, a comunidade tradicional Caiçara de Trindade, por meio de seus modos próprios de organização social, formulou protocolos internos de enfrentamento à Pandemia da Covid-19, onde sobressai a formação de uma barreira comunitária de restrição de acesso àquela localidade, em funcionamento desde o dia 20 de março de 2020.

De acordo com representação encaminhada aos Ministérios Públicos Federal e Estadual, pela Associação dos Moradores de Trindade – AMOT, diante da decisão da municipalidade em flexibilizar as regras de isolamento social na cidade por meio de abertura de comércios não essenciais, a comunidade Caiçara solicitou ao Prefeito da cidade de Paraty que fosse reconhecido, por meio de decreto, o direito à manutenção de suas próprias regras, constantes dos protocolos comunitários, dentre elas a manutenção da barreira comunitária de acesso à localidade do distrito de Trindade antes referida. [2]

Tal providência mostra-se essencial segundo a AMOT, uma vez que os moradores locais sentem-se em risco, dado que os visitantes que acorrem à região de Paraty/Trindade vêm sobretudo de São Paulo e Rio de Janeiro, dois centros urbanos cujos elevados índices de contaminação e óbitos por conta da Covid-19 são púb.;licos e notórios.

A pergunta que se faz é: tem a comunidade tradicional Caiçara de Trindade, a exemplo de outras comunidades tradicionais no Brasil,  o direito de elaborar suas próprias regras de convivência comunitária e, no caso específico, regras sanitárias para combate à pandemia da Covid-19, sem prejuízo das normas dos entes estatais aplicáveis à situação de Emergência de Saúde Pública de Importância  Internacional declarada pela OMS em 30/01/2020 em decorrência da pandemia causada pelo novo coronavírus?

Para responder a essa indagação nos valeremos inicialmente da Nota Pública[3], de 11/04/2020, emitida pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão- PFDC, órgão do Ministério Público Federal,  alertando para os cuidados a serem tomados pelos gestores municipais e estaduais antes da flexibilização, sob pena de responderem por improbidade administrativa.

Por sua vez a Recomendação[4] expedida pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF em 05/05/2020, dá respaldo às providências que vem sendo tomadas até agora pela comunidade tradicional para o enfrentamento da pandemia da Covid-19 que, como se sabe, é de altíssimo risco para as comunidades tradicionais, dentre outras.[5]

Tais documentos, exarados pelo Ministério Público Federal por meio da PFDC (Nota Pública) e 6a CCR (Recomendação) se, por um lado, não detêm força cogente, por outro lado servem de Norte tanto para as comunidades quanto para os gestores públicos.

Os documentos jurídicos produzidos pelo MPF foram utilizados no caso em exame, inclusive pela comunidade Caiçara de Trindade ao peticionarem ao Prefeito Municipal de Paraty e ao Ministério Público Estadual local, exercendo um protagonismo na reivindicação de seus direitos por meio de lideranças e advogados comunitários.[6]

Também é certo que os variados instrumentos à disposição dos órgãos ministeriais, como  as recomendações, notas técnicas, e outros meios legítimos extrajudiciais, tanto quanto as ações civis públicas,  têm mostrado a sua eficiência durante a grave crise humanitária que assola o Brasil e o mundo, tornando-se  relevantes para a proteção e promoção dos direitos fundamentais de todos os  cidadãos brasileiros mas, especialmente, daqueles grupos mais negligenciados na sociedade, como são os povos indígenas e outras comunidades tradicionais  formadoras da sociedade brasileira.

 

***Este texto faz parte da série Histórias e direitos humanos – Vivências no MPF, composta por artigos de procuradores da República sobre suas vivências no órgão. Leia os textos que já foram publicados:

O papel do MPF na luta por direitos

Direitos humanos e proteção da Amazônia: um caso no MPF

Direitos Humanos e empresas: assimetrias e responsabilidades

Tropeçando em monumentos e homenagens

Sistema de inclusão das mulheres na política: a fiscalização da cota de gênero

Defesa da diversidade cultural e da pluralidade religiosa

Educação em tempos de pandemia: concepções em disputa

A rede de enfrentamento à violência obstétrica no Amazonas

O ativismo do Ministério Público Federal

Defesa da liberdade de religião e o Ministério Público Federal

 


O voto de despedida do ministro Celso de Mello no STF e a mudança de regimento interno da Corte envolvendo julgamentos da Lava Jato são os assuntos discutidos no episódio 38 do podcast Sem Precedentes. Ouça:

 

 


[1]Povos e Comunidades Tradicionais, conforme o Decreto nº 6.040 de 7 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, são “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução física e cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”.

[2]A propósito da atuação da Comunidade Caiçara de Trindade na elaboração de seu Protocolo Comunitário de Restrição de Acesso e também de construção da barreira sanitária e do Manual de Autodefesa contra o Coronavírus, vide os seguintes links: https://passapalavra.info/2020/06/132546/; http://www.esquerdadiario.com.br/Moradores-de-Paraty-fazem-manual-de-autodefesa-contra-coronavirus; https://vaiparaty.com.br/associacao-de-moradores-faz-pesquisa-e-63-dos-moradores-decidem-pela-continuacao-da-barreira-na-entrada-so-entra-morador/; https://www.facebook.com/1548303645402456/posts/2679286835637459/;

[3]    Acesso pelo link: http://www.mpf.mp.br/pfdc/manifestacoes-pfdc/notas-publicas/nota-publica-1-2020

[4]    http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/documentos-e-publicacoes/recomendacoes-2017/recomendacoes-6ccr/                Recomendao08_2020_6CCRMPFPGR00168740.2020.pdf;

[5]     A Resolução nº 1/2020 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos  ressalta os impactos diferenciados e                 interseccionais que a pandemia provoca sobre a realização de direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais   para certos grupos e populações em situação de especial vulnerabilidade, impondo-se a adoção de políticas que               possam simultaneamente prevenir o contágio, garantir o acesso ao sistema de saúde pública e permitir medidas de                seguridade social.

[6]A propósito confira-se o  vídeo em que o Sr. Prefeito de Parati volta atrás em sua decisão de flexibilizar as medidas de isolamento social respaldando-se, inclusive, na Recomendação exarada pelo Ministério Público. Disponível em https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=2900365616720796&id=211388592285192.