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Como se privatiza uma empresa estatal? Mitos e verdades

A saga da desestatização de uma empresa estatal federal de controle direto

21/06/2022|15:25
Atualizado em 21/06/2022 às 15:26
serviço público
Crédito: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

A alienação de uma empresa estatal, diferentemente da mera vontade política ou da capacidade de incentivar servidores públicos responsáveis pelo processo, é quase uma profissão de fé. Uma verdadeira obra de resiliência e superação dos seus próprios limites. Por quê? Por uma série de fatores que pretendemos apresentar ao longo destes poucos parágrafos.

Há dificuldades que vão desde a decisão política à implantação da coordenação de governo. O controle também é das tarefas mais difíceis. Também a separação do ótimo do possível é outra tarefa dura de convencimento.

Trataremos aqui da saga de uma empresa estatal federal de controle direto. As empresas de controle indireto ou subsidiárias, pelo marco regulatório erguido em 2017 e 2018 e, posteriormente, validado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), é, diríamos, um pouco mais fácil. Saímos do paradigma da desestatização e entramos no paradigma do desinvestimento e do Decreto nº 9.188 de 2017, mas isso é assunto para outras linhas.

O início da desestatização de uma empresa estatal federal de controle direto, o que, doravante, também chamaremos de privatização, inicia-se com a inclusão de uma empresa no Programa Nacional de Desestatização (PND), definido pela Lei 9.491/1997.

Na verdade, esse é o processo formal, tudo começa bem antes. Primeiramente, deve-se avaliar a empresa a ser desestatizada. Não basta vontade. Deve-se analisar se aquela empresa estatal ainda é ofertante de uma política pública ou se aquela política pública pode ser provida por outro órgão ou entidade da administração pública federal. Obviamente, precisamos fazer uma análise de custo-benefício, mesmo que qualitativa, para avaliar a viabilidade do processo. Isso segue basicamente as guidelines da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para processos de privatização.

Cumprida esta etapa e visto que as políticas públicas não mais existem ou podem ser providas por outro órgão ou entidade ou mesmo pela contratação do setor privado, passa-se à etapa dois. Antes disso, é relevante categorizar que a decisão de privatizar ou não uma empresa não pode ser meramente ideológica. Há que ser feita uma avaliação do que será melhor para a sociedade.

Feito este aposto, volto à etapa dois. Passa-se à construção da decisão política. É fundamental o entendimento entre o Ministério da Economia e o ministério setorial ao qual esteja vinculada a empresa estatal. Às vezes isso é um longo processo e deve-se aproveitar janelas de oportunidade em que as equipes de ambas as casas estão imbuídas de uma mesma avaliação do ativo em discussão. Vamos ao PND? Não! De novo? Sim! Agora é hora de conversar com os ministérios do Palácio do Planalto. Obviamente que o processo, de tal monta, tem que passar pela avaliação de conveniência e oportunidade da Presidência da República.

Pronto! Construído o entendimento político e de coordenação no Poder Executivo federal, é só incluir a empresa estatal no PND e o resto funciona por música? Não! Em que pese que a Lei do PND é uma lei geral que rege as desestatizações no Brasil, por vezes esse mandamento legal não é suficiente.

A Petrobras e as instituições financeiras não podem ser desestatizadas com base na Lei do PND. Estas requerem leis próprias, específicas de desestatização. Então, todas as demais podem? Não, de novo. Já está ficando chato. A maioria das empresas estatais, apesar de poderem ser inseridas no PND meramente por um decreto, estão sujeitas ao estabelecimento de marcos regulatórios, transferências de atribuições de políticas públicas etc., o que deve ser feito muitas vezes por lei. Lá vamos nós então ter mais um passo antes de incluir a empresa no PND.

Nesse processo há a construção de um Projeto de Lei ou de uma Medida Provisória pelo ministério setorial a qual a empresa estatal a ser privatizada esteja vinculada: Ministério da Economia, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), coordenador do processo de privatização (ainda não era hora de falar sobre isso), e pelas casas ministeriais do Palácio do Planalto, além de representantes da própria empresa estatal.

Mas a construção dessa medida legal, dentro do Poder Executivo, é fácil? Nada! A observação da viabilidade da privatização pode ser comungada por todos, porém os detalhes de como será feita ainda não. Esta discussão de mérito pode levar algum tempo no Executivo até se construir um consenso. Porém, agora, temos que passar a minuta pelo crivo de nossas procuradorias ou consultorias jurídicas. Novamente temos algumas idas e vindas até uma solução final.

Feito isso, vamos ao Congresso Nacional. Discussões em ambas as Casas, Câmara e Senado. São incontáveis os debates com as casas representativas do povo brasileiro, a começar pelo fato de o envio da matéria poder ser por meio de um Projeto de Lei ou Medida Provisória. O rito legislativo de cada forma é completamente diferente. Além disso, a visão do Congresso Nacional nesse início já define a velocidade de andamento da medida proposta.

Após as longas discussões no Congresso, e as respectivas emendas, a matéria segue para sanção do presidente da República. Antes disso temos os vetos, mas vamos deixar isso para outra hora?

Pronto! Vamos ao PND? Vamos! Na prática ainda teria a “qualificação do projeto” no Conselho de Parcerias Públicas e Investimentos (CPPI). Supondo que esta etapa já está vencida, e, de fato, ela não é muito complexa (ou mesmo pode ser evitada), os mesmos membros do CPPI sugerem a inclusão da empresa no PND para fins de desestatização. Isso se dá a partir de uma Resolução do CPPI. Em seguida, o ministério setorial em questão prepara um decreto que é submetido ao Ministério da Economia e finalmente ao Palácio do Planalto. Após a edição do decreto de inclusão da empresa no PND acabamos? Não, quase melancólico. Isso é só o começo...

O leitor ansioso ou talvez tomado pelo tédio pergunta: e agora? Respondo: meu editor disse que acabaram-se minhas laudas. Em outros termos, continua a saga, mas já podemos afirmar que não estamos num mito ou conto de fadas, mas na verdade nua e crua da necessidade da resiliência para transformar o país.logo-jota

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