David Sobreira

Na terceira entrevista da série sobre o processo de captura e enfraquecimento de Tribunais pelo mundo, a polones Agnieszka Bień-Kacała, coautora de Illiberal Constitutionalism in Poland and Hungary e professora de Direito Constitucional na Universidade de Szczecin, na Polônia, aborda o caso do seu país.
Diferentemente dos casos anteriores (<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/como-os-tribunais-morrem-o-caso-de-israel-24032023">Israel</a> e <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/como-os-tribunais-morrem-o-caso-da-hungria-14042023">Hungria</a>), as investidas contra o Judiciário polonês contaram com um agente peculiar, Jarosław Kaczyński, um deputado que atua como líder informal do país.
Também de forma diversa do que aconteceu na Hungria, onde o partido do primeiro-ministro Viktor Orbán conseguiu uma supermaioria, o Partido Lei e Justiça (Prawo i Sprawiedliwosc, o PiS), que atualmente controla a Polônia, não conseguiu assegurar uma maioria suficiente para promover alterações na Constituição. 
Isso, contudo, não impediu que medidas infralegais fossem sistematicamente implementadas com o objetivo de enfraquecer os mecanismos de freios e contrapesos e entrincheirar o partido no poder.
Gostaria de começar com um pouco de contexto. A Polônia possui tanto um Supremo Tribunal quanto um Tribunal Constitucional. Este último foi criado em 1982, durante o regime comunista, e sua "atuação estratégica" garantiu sua legitimidade e sobrevivência durante o período de transição para a democracia, correto?
Na verdade, temos três tribunais superiores na Polônia. Como você disse, o Supremo Tribunal trata de questões civis e criminais, o Tribunal Constitucional é responsável pela revisão constitucional, e o Supremo Tribunal Administrativo possui jurisdição sobre casos administrativos. 
Portanto, em geral, temos um tribunal separado responsável pela jurisdição constitucional, atuando de acordo com a teoria de Kelsen. O Tribunal foi formalmente estabelecido por meio de uma emenda constitucional em março de 1982. A lei sobre o Tribunal Constitucional foi aprovada pelo Sejm, o Parlamento polonês, em abril de 1985, e o Tribunal estava pronto para julgar em 1º de janeiro de 1986. A primeira sentença foi proferida em maio de 1986. Portanto, foi um longo caminho desde a constitucionalização até a implementação da Justiça Constitucional na Polônia.
Entre 2005 e 2007, quando o partido Prawo i Sprawiedliwość (PiS) governou a Polônia, o Tribunal Constitucional teve alguns embates com o governo e saiu vitorioso, resultando em uma autoridade fortalecida para o Tribunal. Essas "batalhas" foram significativas? Eu pergunto isso porque o PiS foi responsável por atacar o Tribunal em 2015.
Bem, na minha opinião, foi um exercício padrão da jurisdição realizado por um Tribunal Constitucional forte dentro de um sistema centralizado de justiça constitucional. O Tribunal efetivamente impôs limitações ao Poder Legislativo/representativo. O PiS não quis aceitar as regras do jogo constitucional e viu a atuação do Tribunal Constitucional como uma restrição injustificada à elaboração democrática das leis.
O exemplo mais significativo foi uma lei de lustração, que tinha o objetivo de excluir dos cargos públicos aqueles que colaboraram secretamente com o serviço secreto comunista. O governo liderado pelo PiS impôs uma lei que afetava muitas pessoas sem conceder a elas garantias de devido processo legal, invocando a vontade do povo revelada nas eleições parlamentares e a vontade da maioria parlamentar. O Tribunal Constitucional avaliou essa legislação como não conforme à Constituição, afirmando que mesmo um Parlamento eleito democraticamente está vinculado à Constituição e obrigado a proteger os direitos humanos. Essa é a essência do problema e a base da crise constitucional.
Na eleição de 2015, o PiS venceu as eleições parlamentares. Embora tenham conquistado uma vitória expressiva, eles ainda não tinham uma maioria substancial para alterar a Constituição, recebendo apenas 37,58% dos votos.
Na verdade, além do Parlamento, o PiS também venceu a eleição presidencial. A eleição presidencial ocorreu em maio de 2015 e, posteriormente, em outubro de 2015. Portanto, o PiS conquistou todos os Poderes mais importantes - a presidência, o Legislativo e, devido às regras parlamentares, o governo. E, sim, considerando os resultados da eleição parlamentar, embora o PiS tenha sido autorizado a governar, não obteve autorização para alterar a Constituição.
Ao contrário de outros países, o político mais influente na Polônia não é o presidente ou o primeiro-ministro, mas o líder do PiS, Jaroslaw Kaczynski. O que explica isso?
Você está correto. Mesmo que tenhamos um Executivo dual com o presidente e a posição principal do governo com o primeiro-ministro, Jarosław Kaczyński é um líder informal do país. Ele é apenas um deputado se considerarmos a estrutura constitucional dos Poderes. Ao mesmo tempo, ele é o líder do partido e decide sobre quase todas as questões públicas, uma vez que todas as posições essenciais são ocupadas por membros do partido ou seguidores. 
Parece ser um fenômeno polonês em que a pessoa sem poderes formais está encarregada das decisões estatais. Isso tem raízes na história polonesa, quando, após recuperar a independência em 1918, as autoridades estatais tiveram que ser organizadas. Nessa situação, decisões políticas cruciais foram tomadas fora das estruturas formais do Estado pelo "pai fundador" da independência polonesa - Marechal Józef Piłsudski. Portanto, embora constitucional e sistemicamente incorreto, o fenômeno é aceito pelos meus compatriotas.
Em 2015, quando da vitória do PiS, o Tribunal Constitucional ainda era protegido pelos mandatos de 9 anos de seus membros. No entanto, isso não pareceu ser suficiente para impedir uma tentativa de "empacotamento" da Corte. Você poderia explicar a manobra tentada pelo PiS para modificar o término dos mandatos dos membros do tribunal?
A questão é mais complicada. A situação problemática começou quando o "antigo" Sejm escolheu corretamente 3 juízes e mais 2 antecipadamente (de acordo com a decisão do Tribunal Constitucional, eles deveriam ser escolhidos pela nova composição do Sejm). Após o início do novo mandato do Sejm, o "novo" Sejm ignorou os 5 juízes e escolheu novos. O Presidente empossou os juízes escolhidos pelo "novo" Sejm. No entanto, esses 3 lugares, de acordo com o Tribunal Constitucional, foram ocupados por 3 juízes corretamente escolhidos pelo "antigo" Sejm. Portanto, o problema não está relacionado ao término inconstitucional dos mandatos dos juízes, mas sim às manobras inconstitucionais do Sejm e do presidente.
Uma pergunta importante neste ponto: pode o Tribunal Constitucional polonês revisar emendas constitucionais?
Tomando literalmente o texto constitucional, o Tribunal Constitucional não tem permissão para avaliar emendas constitucionais. No entanto, estudiosos do Direito Constitucional interpretam o texto da constituição de forma a conferir essa competência ao Tribunal Constitucional. Para nós, a competência de revisão de estatutos abrange também a competência de avaliar estatutos constitucionais, chamados de emendas pela Constituição. Nunca houve, contudo, uma situação em que pudéssemos testar essa interpretação.
Em dezembro de 2015, o governo aprovou uma norma que atacava o Tribunal em suas capacidades operacionais e modificava os procedimentos de revisão abstrata, tornando mais difícil a invalidação de leis. O que essas propostas afirmavam e como o Tribunal as enfrentou?
Houve algumas mudanças bastante "técnicas" que afetaram o funcionamento do Tribunal Constitucional e o paralisaram. Por exemplo, o painel completo pode ser composto por 11 juízes. O número foi anteriormente aumentado para incluir os "quase-juízes" (aqueles empossados para os cargos ocupados).
 No momento, temos uma nova situação de paralisação do Tribunal Constitucional, na qual os juízes não conseguem chegar a um acordo sobre a questão crítica da reforma judicial, que poderia permitir a recepção de fundos da União Europeia. Apenas 10 juízes estão prestes a julgar, sendo que 5 são contra proferir o julgamento e questionam o presidente do Tribunal Constitucional. 
Portanto, é impossível estabelecer uma sessão e julgar. Como resultado, há uma ideia entre o partido governante de reduzir o número de juízes que compõem o painel completo. Podemos chamar isso de instrumentalização do direito, quando a lei se torna uma ferramenta da política cotidiana e não um meio regulatório.
Essas tentativas não pararam por aí. Outras medidas restringiram a publicidade das decisões do Tribunal, "capturaram" o Conselho Nacional da Judicial e reduziram a idade de aposentadoria dos juízes em todo o país. Como o governo conseguiu realizar essas ações?
O partido governante simplesmente aprovou a legislação, uma vez que eles têm a maioria para aprovar qualquer estatuto de qualquer significado. O Tribunal Constitucional está capturado e fornece interpretação constitucional que favorece o governo. 
Formalmente, tudo está correto – há um estatuto e uma adjudicação constitucional, mas, se pensarmos nos ideais de democracia constitucional (democracia substancial), podemos perceber que a independência judicial não pode ser violada por nenhum estatuto e o tribunal constitucional não tem permissão para alterar a Constituição informalmente.
Após a submissão do Tribunal Constitucional, como o PiS tem tratado os grupos minoritários? Houve outras medidas substantivas de constitucionalismo iliberal?
Sim, existem alguns exemplos de tais decisões iliberais do Tribunal Constitucional. Posso citar aqui três questões. A primeira diz respeito ao direito ao aborto – o Tribunal Constitucional eliminou um dos fundamentos legais para o aborto, o que significa que mais de 90% dos procedimentos foram proibidos. A segunda diz respeito às uniões entre pessoas do mesmo sexo – o Tribunal Constitucional afirmou que o reconhecimento da proteção do casamento como união entre homem e mulher significa que qualquer tipo de união entre pessoas do mesmo sexo não é permitida pela Constituição. Embora a Constituição não exclua as uniões entre pessoas do mesmo sexo, ela apenas estabelece a proteção do casamento. Em terceiro lugar, o Tribunal Constitucional permitiu implicitamente a discriminação da comunidade LGBTQAI+ no mercado. Como resultado, um empresário pode recusar-se a contratar uma pessoa que não se identifique como heterossexual.
A história polonesa demonstra que mesmo a tecnologia política da revisão de emendas constitucionais não é suficiente para proteger uma democracia constitucional. <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/como-os-tribunais-morrem-o-caso-de-israel-24032023">Como apontou Yaniv Roznai, na primeira entrevista desta série</a>, a participação popular em situações como esta pode ser decisiva para a sobrevivência de um sistema político. Afinal, “as instituições não se protegem. Elas caem uma após a outra, a menos que cada uma seja defendida desde o início”.

tribunal constitucional polones

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