David Sobreira
Master of Laws (LL.M.), Harvard Law School. Mestre e bacharel em Direito pela Unichristus, onde é professor

Berço da ideia de constitucionalismo iliberal como a conhecemos hoje, a Hungria – antes um caso de sucesso na transição para a democracia após a queda da antiga União Soviética – passou por situações que guardam, em certa medida, semelhanças com o que aconteceu no Brasil após os escândalos de corrupção da Lava Jato.
O enfraquecimento dos partidos de situação, nesse contexto, deu espaço para o avanço de pautas conservadoras, resultando em uma segunda ascensão de Viktor Orbán ao poder, desta vez sob novos trajes ideológicos.
Após uma eleição vencida com larga margem no Parlamento húngaro, Orbán, novamente primeiro-ministro, promoveu, junto à sua coalizão, uma série de alterações na estrutura jurídica do Estado, inclusive estabelecendo uma nova Constituição e realizando alterações na estrutura da Corte Constitucional.
Neste texto, o segundo da série sobre a decadência da independência judicial, contei com as impressões da constitucionalista húngara Tímea Drinóczi, professora visitante na Universidade Federal de Minas Gerais, cujos estudos sobre o tema resultaram em diversas obras – dentre livros e artigos – que explicam os desdobramentos políticos e jurídicos na Hungria.
Para começar nossa conversa, eu gostaria de um pouco de contexto. Acredito que uma compreensão adequada do caso passa, inevitavelmente, pela história da transição da Hungria para um Estado democrático.
Depois da Segunda Guerra Mundial, a Hungria se tornou um país socialista e esteve sob a influência soviética por 40 anos. Embora tenhamos sido ocupados pelo exército soviético, éramos considerados um país "soberano" dentro da lógica socialista. Portanto, nosso Direito Constitucional e sistema político foram fortemente influenciados pela compreensão que a União Soviética tinha sobre o socialismo. Não havia direitos humanos, mas havia uma Constituição que dizia que todo o poder pertencia ao “povo”.
Apesar de tudo isso, éramos um país independente. Se você comparar a Hungria e, por exemplo, a Polônia daquela época, a Tchecoslováquia, a Romênia e a Bulgária com os países bálticos – Letônia, Lituânia e Estônia –, estes não tinham independência na época porque faziam parte da União Soviética. Os Estados bálticos foram completamente apagados como países independentes. Então, embora estivéssemos atrás da Cortina de Ferro, nós – Hungria, Polônia, Tchecoslováquia, Romênia e Bulgária etc. – ainda éramos "independentes".
Após a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a dissolução da União Soviética em 1990, passamos pelo período de transição. Nessa época, na Hungria, surgiu uma figura muito interessante, um jovem chamado Viktor Orbán. Junto com seus colegas do exército e seus companheiros do establishment, ele criou o partido Fidesz – Aliança de Jovens Democratas.
Durante a transição, o Fidesz, que era fortemente liberal na época, agiu como outros partidos. Eles odiavam a União Soviética e queriam que eles deixassem o país. Nesse contexto, Orbán se tornou a figura mais importante no partido Fidesz.
Na primeira eleição democrática em 1990, os conservadores ganharam, mas não conseguiram fazer muito por causa das dificuldades decorrentes do período de transição. Isso resultou em uma vitória da oposição nas eleições de 1994, e o partido socialista e os liberais, formando uma coalizão, assumiram o poder.
No decorrer desse período de 8 anos, Viktor Orbán reposicionou-se e suas políticas mudaram, deixando a ideologia liberal de lado e abraçando o conservador. Por causa dessa mudança, o Fidesz, com uma coalizão conservadora, venceu a eleição de 1998, e Orbán se tornou primeiro-ministro por 4 anos (1998-2002). Sua derrota nas eleições de 2002, contudo, o levou para a oposição por 8 anos, contra a coalizão liberal-socialista que governou o país até 2010.
Durante esse tempo na oposição, o Fidesz começou a mobilizar seus eleitores e a organizar pequenos grupos políticos. Essa estratégia estava em vigor quando, em 2006, o então primeiro-ministro admitiu em uma sessão interna para membros do partido que havia mentido 24 horas por dia, e isso foi vazou para o público. Esse escândalo político – seguido pela crise econômica e financeira de 2008 – criou uma grande oportunidade para o Fidesz fazer campanha montada sobre a admissão do então primeiro-ministro.
Temos como saber, de fato, qual foi o impacto da admissão da mentira no cenário político?
Veja bem, essa admissão de mentira foi parte do discurso do primeiro-ministro para os membros de seu partido. Foi algo como: "sim, mentimos – isso poderia ter nos ajudado a ganhar a eleição – mas não devemos mais fazer isso". O discurso tratava de uma prática ruim que eles admitiram ter usado e talvez abusado, mas a intenção era propor, internamente, uma mudança para melhor.
O Fidesz, por sua vez, repetiu uma propaganda martelando a parte da admissão, mas sem apresentar o contexto em que a frase foi dita. Isso aconteceu em 2006 e, como em 2008 a crise econômica foi adicionada à equação, é difícil responder à sua pergunta.
Isso, porque propaganda sobre a mentira foi então acompanhada por outra que afirmava que as políticas econômicas socialistas levariam o país à falência. Todas essas mensagens penetraram profundamente na mente das pessoas por meio do processo de repetição, contribuindo para que a coalizão Fidesz-KDNP vencesse as eleições de 2010.
Nas eleições de 2010, a coalizão Fidesz-KDNP teve uma vitória avassaladora com mais de 70% dos votos, certo?
Naquela época, havia 386 assentos no parlamento e o país operava sob o mesmo sistema eleitoral desde o período de transição. Nenhuma mudança nesses mecanismos foi feita até a posse do Fidesz em 2010.
Então, com base em nosso sistema eleitoral, a coalizão ganhou 2/3 dos assentos (262 de 386) no Parlamento, o que é suficiente para fazer mudanças constitucionais. A participação foi de 64,4% dos eleitores.
Na minha pesquisa, notei que a primeira alteração substantiva foi a remoção do Artigo 24 (5) da Constituição da Hungria já em 2010. Esse artigo foi inserido na Constituição em 1995 para envolver os partidos minoritários no processo de elaboração da Constituição, instituindo um quórum de 4/5 dos votos para que se estabelecesse o procedimento para elaborar uma nova Constituição.
Antes de responder a esta pergunta, há algo que você precisa entender. Como você deve saber, uma nova Constituição – hipoteticamente falando – é uma manifestação do poder constituinte e, portanto, impõe limites ao processo de emenda constitucional, que deve agir dentro dos limites estabelecidos pela Constituição – essa é a lição de obras como, por exemplo, a de Yaniv Roznai.
Na Hungria, no entanto, não houve diferença entre o poder constituinte originário e o poder de emendamento constitucional, porque, à época, a posição da doutrina e do Tribunal Constitucional era que uma maioria de 2/3 permitiria a adoção de uma nova Constituição, bem como autorizava seu emendamento.
Agora, voltando à sua pergunta. Deixe-me explicar como eu compreendo essa situação. Minhas opiniões sobre ela não seguem a opinião predominante, que é refletida em sua pergunta, implicando que a nova Constituição deveria ser adotada por uma maioria de 4/5 do parlamento.
Se voltarmos à campanha eleitoral de 1994, os partidos estavam falando sobre a necessidade de adotar uma nova Constituição, para substituir aquela do período comunista. Depois do governo conservador (1990-1994), os eleitores escolheram socialistas e liberais para governá-los. Essa coalizão alcançou uma maioria de 2/3 no Parlamento, então eles tinham a quórum para criar uma nova Constituição.
Então, para elaborar uma nova Constituição e facilitar um processo inclusivo, o Artigo 24 foi adicionado à Constituição. O conteúdo do dispositivo determinava que o conceito da Constituição deveria ser adotado por uma maioria de 4/5 do parlamento. Por quê? Porque isso exigia que os partidos da oposição concordassem com o conceito da Constituição.
No entanto, o “conceito da Constituição” não é o mesmo que a própria Constituição ou que o texto da Constituição. O que, então, seria o conceito da Constituição? O conceito é a ideia, é o que queremos colocar em nossa Constituição. Assuntos como se o sistema eleitoral deve ser proporcional ou majoritário, quem protegeria a Constituição e como.
Isso significa que para adotar o conceito da Constituição, era necessária uma maioria de 4/5. Contudo, para estabelecer o texto da Constituição, seria usada a regra da maioria de 2/3.
Esse é o primeiro problema. O segundo problema está relacionado à remoção desse dispositivo. Entretanto, devemos falar sobre uma questão anterior, que é: como a regra de 4/5 foi incluída na Constituição? Com uma emenda constitucional. E como se emenda a Constituição na Hungria? Com uma maioria de 2/3. Portanto, se algo foi adicionado à Constituição com uma maioria de 2/3, como pode ser removido?
Com uma maioria de 2/3.
Sim, de fato. Em 2010, a coalizão Fidesz-KDNP removeu esse artigo da Constituição. Alguns na doutrina dizem que isso é ilegítimo, pois deveria ter sido removido por uma maioria de 4/5, mas, na minha opinião, não há argumento válido para sustentar essa interpretação.
Então, o Fidesz o retirou. Porque se o artigo permanecesse isso significaria que eles precisariam convidar os partidos de oposição para a discussão do novo processo de elaboração da Constituição.
Entendi. Acredito que minha leitura da opinião predominante sobre esse assunto possa ter me levado a um caminho confuso porque aqui no Brasil temos a chamada "doutrina da dupla revisão", que significa que o poder de emenda não pode retirar as disposições estabelecidas como cláusulas pétreas pelo poder constituinte originário – um detalhe importante. Portanto, não é possível que o Parlamento remova a disposição protetora e, em seguida, altere o conteúdo que essa disposição protegia.
Nós não possuímos cláusulas pétreas, tampouco foi a regra de 4/5 criada pelo poder constituinte originário. É interessante notar que, sob um ponto de vista estritamente técnico, o poder constituinte originário só esteve em vigor quando da criação da Constituição em 1949. Poderíamos dizer também que esse poder original ressurgiu em 1989 e 1990, quando a constituição comunista foi completamente revisada – mas isso foi feito "apenas" por meio de emendas constitucionais. Essa constituição ainda tinha a data de 1949 em seu título e um conteúdo renovado e democrático; e foi isso que permaneceu em vigor até 2010. Nenhuma das versões estabeleceu cláusulas imutáveis ou qualquer tipo de mecanismo de defesa da identidade da Constituição.
Além disso, até 2010, não havia discussão sobre emendas constitucionais inconstitucionais. Isso, porque, como mencionei antes, o poder de emenda e o poder constituinte originário eram considerados o mesmo, portanto, nenhuma emenda poderia ser contrária à Constituição, uma vez que essa também seria manifestação da vontade do poder originário.
Permita-me acrescentar uma última e importante pergunta sobre esse assunto: as emendas constitucionais estão sujeitas a algum tipo de revisão judicial pelo Tribunal Constitucional na Hungria?
Dado o fundamento teórico que expliquei, onde não há diferença entre o poder de criação da Constituição e o poder de emendamento constitucional, e a falta de mandato constitucional para o Tribunal Constitucional revisar emendas constitucionais, o Tribunal Constitucional não estabeleceu suas competências para revisar substancialmente emendas constitucionais. O que o Tribunal Constitucional fez foi apenas observar se a emenda constitucional foi adotada em um procedimento prescrito pela Constituição – se foi submetida por quem tem direito, se foi aprovada por uma maioria de dois terços de todos os representantes eleitos, se foi publicada etc.
Após a eleição de 2010 – e da subsequente remoção do Artigo 24 – houve uma espécie de blitzkrieg de mudanças constitucionais. Foram aprovadas três disposições importantes que mudaram a estrutura do Tribunal Constitucional: i) uma restrição à autoridade do Tribunal em relação a questões fiscais, uma mudança que aconteceu porque o Tribunal entrou em conflito com o governo; ii) o acesso à jurisdição do Tribunal tornou-se mais difícil; iii) o número de membros foi aumentado de 11 para 15.
Podemos falar um pouco sobre o contexto em que essas alterações aconteceram e sobre a legitimidade delas?
Na Hungria, tudo foi feito usando medidas legalmente aceitáveis, então, de um ponto de vista estritamente formal, não se pode dizer que essas mudanças foram ilegítimas. Todas as mudanças que você mencionou foram adotadas seguindo as regras. O problema aqui, se é que há realmente um, é que não houve envolvimento da oposição, porque o governo tinha maioria de 2/3 e, com isso, poderia fazer o que quisesse – pelo menos essa foi a mentalidade.
Sobre primeiro ponto, havia um pagamento de indenização que os servidores públicos que deixavam o serviço tinham direito; e muitos deixaram seus cargos devido à mudança de governo em 2010. O novo governo decidiu retirar esse pagamento, para o qual os servidores públicos já tinham expectativas legítimas estabelecidas. O governo iniciou uma propaganda dizendo que o povo estava sofrendo, devido aos efeitos das crises econômicas e financeiras que surgiram em 2008, enquanto os servidores públicos estavam recebendo dinheiro. Eles então aprovaram uma lei permitindo uma tributação retroativa de 98% sobre o pagamento de indenização.
O que aconteceu com esta lei de tributação retroativa? Ela foi anulada pelo Tribunal Constitucional?
Antes da Lei Fundamental de 2012, qualquer pessoa podia contestar qualquer lei perante o Tribunal. Essa era uma importante competência do Tribunal que foi alterada com a nova Constituição (2012). Mas ainda não chegamos lá.
Então, em 2010, tivemos o projeto de lei financeira, que foi acompanhado por outra lei: a emenda constitucional que permitia a tributação retroativa. Ambos foram adotados e publicados. É claro que alguém iria contestá-los. Naquela época, entre 2010 e 2011, a composição do Tribunal contava com mais juízes independentes do que por aqueles leais ao governo. Agora, temos dois procedimentos perante o Tribunal: um se refere à suposta inconstitucionalidade da lei que introduz a tributação retroativa; o outro se refere à suposta inconstitucionalidade da emenda constitucional inconstitucional que permite a tributação retroativa.
Politicamente falando, o que aconteceu foi que o Tribunal deu um tapa no governo. E no mesmo dia em que foi proferida a decisão de anulação da lei, o governo apresentou outro projeto de lei com o mesmo conteúdo de tributação retroativa e uma emenda constitucional que restringe o poder do Tribunal de rever leis em questões financeiras.
Como a alteração que promoveu o court packing foi visto pela sociedade e pela comunidade acadêmica?
A sociedade não se importou muito com isso. Organizações civis e a academia criticaram a manobra, mas não ajudou muito. A mudança foi aprovada sob a desculpa de que a nova Constituição alterou a competência do Tribunal Constitucional, exigindo mais juízes.
O Tribunal Constitucional foi criado para garantir que o sistema legal esteja livre de leis ruins, que são as leis contrárias à Constituição. A principal competência desse Tribunal, por 20 anos, foi a revisão judicial – iniciada por qualquer pessoa –, sem precisar demonstrar interesse na questão (ações populares). Entre 1990 e 2012, o Tribunal Constitucional não tinha poder para revisar a constitucionalidade das decisões dos tribunais comuns.
De acordo com minha pesquisa, Peter Paczolay, então presidente do Tribunal Constitucional, mesmo após a mudança ainda foi capaz de costurar habilidosamente maiorias no Tribunal e impor derrotas ao governo. Entre essas derrotas estavam: i) a declaração de inconstitucionalidade de uma lei que reduzia a idade de aposentadoria dos juízes; ii) a invalidação de uma lei que criminalizava a falta de moradia; iii) a anulação de uma lei que exigia que estudantes que recebessem financiamento do governo trabalhassem no país; e iv) a invalidação parcial de disposições que retiravam o status oficial de mais de 300 igrejas.
Essas informações estão corretas?
Sim, de fato, essas foram derrotas importantes. Isso aconteceu graças aos juízes – à época a maioria do Tribunal – que haviam sido selecionados por meio de um processo que exige compromisso político entre os partidos políticos. Portanto, eu não acredito que na Hungria se trata do que o Presidente do Tribunal pode fazer. É claro que é ele quem distribui os casos, e isso obviamente tem relevância. No entanto, o que pode importar mais é a composição do Tribunal; que tipo de juízes você tem e como eles chegam lá. Assim, embora o presidente tenha poder influencia ao distribuir casos, não tenho certeza sobre a correlação que você fez em sua pergunta.
O processo de seleção de juízes, no entanto, foi alterado em 2010. Antes de 2010, os candidatos eram discutidos em um comitê e a composição desse comitê era igualmente dividida pelas facções do Parlamento. Isso impôs uma barganha entre o governo e a oposição. Após a reforma, o comitê foi composto proporcionalmente, o que permitiu que as facções com mais assentos no Parlamento controlassem o processo de nomeação. Foi assim que o Tribunal pôde ser "empacotado" (aumentando o número de juízes) e preenchido com membros leais ao governo (reformando a composição do comitê de seleção no Parlamento).
Minha próxima pergunta é sobre o que a professora Kim Lane Scheppele chamou, em um artigo no Verfassungsblog, de "vingança constitucional", quando, em 2013, o governo aprovou um pacote de emendas adicionando 15 páginas à nova Constituição, cujo conteúdo completo contava com 45 páginas. Essas mudanças anularam os precedentes do Tribunal Constitucional anteriores à nova Constituição. Isso impediu o Tribunal de invocar seus precedentes em novos casos envolvendo questões como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, um direito que não tem proteção constitucional expressa, mas que foi reconhecido pelo Tribunal. Qual é a sua opinião sobre a questão?
Não tenho certeza se foi uma vingança. Vingança pelo que? Até 2013, a maioria dos juízes ainda havia sido eleita pelo modelo anterior à reforma, então o Tribunal ainda poderia formar uma maioria para enfrentar o governo. Essa maioria anulou as leis que você mencionou, assim como invalidou as chamadas Disposições Transitórias para a Lei Fundamental. Esta última tinha um conteúdo iliberal que poderia ser associado a muitas disposições constitucionais como complementares e interpretativas; e, como tal, a maioria constitucional considerou isso como parte da Lei Fundamental.
Essas 15 páginas mencionadas cobriam o conteúdo dessas leis anuladas. O que eu acho que foi feito segue a lógica do sistema Orbán: essas 15 páginas eram parcialmente a constitucionalização das regras já anuladas pelo Tribunal Constitucional e parcialmente a implementação da decisão do Tribunal sobre as Disposições Transitórias da Lei Fundamental. Essa decisão declarou que, ao contrário da intenção da maioria constitucional, as disposições transitórias não eram parte da Constituição e que, se a maioria quisesse que elas fossem consideradas como regras constitucionais, deveriam ser incorporadas à Lei Fundamental. Não vejo como pode ser uma vingança. Mas, de fato, foi o momento em que a Lei Fundamental mudou substancialmente para pior.
Eu li que essa manobra para enfraquecer o Tribunal foi uma espécie de vingança porque o Tribunal estava impondo suas visões liberais e progressistas da sociedade em confronto com o governo conservador. Isso ocorreu, até onde sei, e corrija-me se eu estiver enganado, em questões como a anulação dos precedentes do Tribunal, alguns que protegiam o casamento entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo.
Eu não tenho certeza sobre isso. O casamento entre pessoas do mesmo sexo nunca foi reconhecido na Hungria, seja em nível constitucional, seja em nível subconstitucional, ou até mesmo na jurisprudência do Tribunal Constitucional. Foi o Tribunal que sempre afirmou que o casamento é uma relação entre homem e mulher; isso precisava ser resultado de uma interpretação constitucional, uma vez que a constituição na época não tinha uma definição sobre o casamento. Não tenho certeza de quão progressista isso é. O que a Hungria reconhece, desde 2008, é a parceria registrada, que, do ponto de vista jurídico, não é idêntica ao casamento.
Quando o Tribunal Constitucional decidiu sobre a Lei de parceria registrada em 2008, argumentou que: i) o casamento é uma relação entre homem e mulher; ii) casais do mesmo sexo precisam ter um reconhecimento pela lei, mas esse reconhecimento deve ser diferente do casamento e das relações de direito comum, que foram reconhecidas pelo sistema jurídico húngaro desde meados da década de 90, tanto para casais de sexos diferentes quanto iguais. A lei revisada pelo Tribunal introduziu a parceria registrada para ambos os casais, de sexos diferentes e do mesmo sexo. O Tribunal argumentou que os heterossexuais poderiam escolher entre a parceria de direito comum e o casamento, enquanto os casais do mesmo sexo não poderiam – porque o casamento está disponível apenas para homem e mulher –, portanto, a parceria registrada deveria estar disponível apenas para casais do mesmo sexo. A Lei Fundamental não mudou essa interpretação; ela incorporou a definição de casamento conforme interpretada pelo Tribunal Constitucional; ela não excluiu a parceria registrada; o quadro constitucional para esta última não foi alterado. O que foi prejudicial para a comunidade LGBTQ foi a Quarta e a Nona Emendas. A primeira ignorou a decisão do Tribunal Constitucional (2012) que anulou uma definição restritiva de família e introduziu um termo ainda mais restritivo na Lei Fundamental, afirmando que os laços familiares devem ser baseados no casamento ou na relação entre pais e filhos. A segunda estipula que o pai é homem e a mãe é mulher.
Mas, voltando à pergunta original. Primeiro, não houve nenhum precedente sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo na Hungria. Segundo, o Tribunal estabeleceu que, se a Constituição anterior e a vigente contiverem disposições iguais ou muito semelhantes e as circunstâncias forem semelhantes também, ele poderá usar sua jurisprudência anterior. O que aconteceu na prática, logo após a adoção da emenda constitucional anulando a jurisprudência do Tribunal, foi que, no início, o Tribunal usou sua jurisprudência sem se referir aos casos reais anteriores a 2013 e, posteriormente, usou a mesma jurisprudência, mas referindo-se ao primeiro caso que apareceu após 2013. Eu acredito que as mudanças drásticas no texto da Lei Fundamental e a diminuição na qualidade do raciocínio do Tribunal afetaram o uso dos precedentes mais do que essa regra específica que você mencionou. Em terceiro lugar, quando se nomeia juízes para o Tribunal, não é realmente necessário buscar vingança; basta esperar a expiração do mandato daqueles juízes que foram eleitos antes de 2010.
Uma última questão surge aqui, professora. Embora eu reconheça a legitimidade de uma maioria de 2/3, mas – e aqui eu admito que estou perguntando a partir de um ponto de vista ocidental de democracia liberal – não são esses tipos de mudanças, que ameaçam ou restringem estreitamente os direitos das minorias em uma democracia, ilegítimas ou pelo menos perigosas para o funcionamento adequado de uma democracia?
Depois de 2010, especialmente por causa de como a Lei Fundamental foi adotada e o que aconteceu desde então, você não deveria olhar para a Hungria como uma democracia liberal. Não é mais uma democracia constitucional substantiva; é uma democracia iliberal ou uma forma de constitucionalismo iliberal, como eu e minha coautora (Agnieszka Bień-Kacała) conceituamos em nosso livro “Illiberal Constitutionalism in Poland and Hungary”.
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A ascensão do constitucionalismo iliberal na Hungria parece ter sido obra de um verdadeiro coquetel de circunstâncias. Visões constitucionais potencialmente frágeis à democracia liberal, escândalos políticos e até mesmo crises financeiras contribuíram para a ascensão de coalizões populistas que minaram o Estado de Direito húngaro.
Algumas das manobras promovidas na Hungria também foram verificadas em outros países, como a situação de Israel têm demonstrado. Este país, contudo, parece ter aprendido com a história – como demonstrado no primeiro texto desta série – e se dispôs a lutar contra a derrubada de um dos grandes pilares do Estado de Direito: a independência judicial.