Anderson Santos da Silva

Ainda é muito presente no meio jurídico brasileiro a compreensão de que as decisões judiciais são resultado de procedimentos lógico-racionais totalmente alheios a influências extrajurídicas. Essa perspectiva simplificadora do processo decisório judicial é, sem dúvida, reflexo da persistência de concepções arraigadas no imaginário dos juristas brasileiros, produzidas principalmente pelo positivismo jurídico clássico. Essa visão sobre as decisões judiciais, no entanto, ignora completamente os estudos mais recentes sobre o comportamento judicial.
As pesquisas sobre o comportamento judicial constituem um campo teórico relativamente novo. A literatura costuma apontar como precursor desses estudos o cientista político norte-americano Charles H. Pritchett, que examinou decisões não unânimes da Suprema Corte dos EUA proferidas entre 1937 e 1947 e encontrou evidências de que os votos dos juízes eram motivados por suas próprias inclinações políticas<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Depois da repercussão do trabalho de Pritchett, o comportamento judicial passou a ser objeto de crescente interesse não apenas da Ciência Política, mas também da Economia, da Psicologia e, finalmente, do Direito. 
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Muitos estudos posteriores buscaram confirmar a tese inicial de que as preferências políticas dos juízes exercem um papel importante em suas decisões. Essas pesquisas contribuíram para a elaboração do modelo teórico que veio a ser chamado de “atitudinal” ou “cético”. Esse modelo, que gozou de grande prestígio entre adeptos do realismo jurídico e da teoria crítica do direito, sustenta que os juízes são, na verdade, “políticos de toga”, porquanto decidem os casos somente à luz de seus próprios valores ideológicos. O direito, segundo essa abordagem, serve apenas como um instrumento retórico conscientemente utilizado para ocultar o caráter ideológico das decisões, sem qualquer papel limitador das inclinações políticas dos julgadores.
Diversos resultados de pesquisas sobre os votos dos juízes da Suprema Corte dos EUA têm conferido um suporte razoável ao modelo atitudinal. O trabalho de Jeffrey A. Segal e Albert D. Cover, que abrangeu os votos proferidos pelos justices de 1953 a 1988, tornou-se muito influente. Ao final, os autores observaram uma correlação de 80% entre os valores identificados e os votos proferidos pelos juízes sobre questões relacionadas a liberdades civis<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Posteriormente, novas teorias foram elaboradas e o modelo atitudinal já não é mais considerado suficiente para explicar de modo abrangente o comportamento judicial. A literatura cataloga, além da atitudinal pelo menos oito teorias: formalista, estratégica, sociológica, psicológica, econômica, organizacional, pragmática e fenomenológica. Mais recentemente, Richard Posner propôs um modelo teórico que leva em conta a contribuição das diversas teorias e considera um amplo rol de fatores, denominado “juiz como um participante de um mercado de trabalho”. O modelo foi apresentado no influente livro How Judges Think<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> e posteriormente testado em The Behavior of Federal Judges: a theoretical &amp; empirical study of rational choice, obra escrita em coautoria com Lee Epstein e William Landes<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Nessa abordagem, o juiz é visto como um trabalhador que, como tal, está sujeito a incentivos e restrições. O comportamento judicial, assim, seria influenciado por benefícios como a satisfação com o trabalho, o poder, o status, a fama, o tempo livre (para outros trabalhos e para o descanso) e a ascensão na carreira; assim como por custos, tais como o volume de trabalho e as críticas (de colegas, de advogados, de acadêmicos e do público em geral). Os juízes, como seres racionais, ainda que inconscientemente, buscarão maximizar os benefícios e minimizar os custos. Um juiz, por exemplo, pode se convencer de que escolheu uma opção por ela estar em conformidade com o direito, mas, em última análise, pode ter sido motivado pelo receio de a outra opção resultar em aumento excessivo do seu trabalho. Da mesma forma, um membro de um órgão judicial colegiado pode votar de uma maneira para evitar conflitos com os colegas.
Os estudos sobre o comportamento judicial também têm se beneficiado das contribuições da Psicologia Cognitiva. A partir da década de 1970, diversos estudos começaram a lançar dúvidas sobre o paradigma da racionalidade decisória, impulsionados principalmente pelo conhecido artigo Judgement under uncertainty: heuristics and biases, publicado na Science em 1974, por Daniel Kahneman e Amos Tversky<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Depois de fazer uma revisão de estudos sobre vieses cognitivos nas decisões judiciais, Eyal Peer e Eyal Gamliel identificaram, pelo menos, seis fatores irrelevantes que não deveriam influenciar os julgamentos mas que podem levar a erros de julgamento: viés de confirmação, viés de retrospectiva, falácia da conjunção, inabilidade para ignorar provas inadmissíveis, viés do status quo e ajuste e ancoragem<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
O papel dos elementos extrajurídicos nas decisões judiciais também foi destacado pela famosa experiência conduzida por Danziger, Levav e Avnaim-Pesso. Os pesquisadores observaram o comportamento de 8 juízes de Israel que passavam dias inteiros analisando pedidos de liberdade condicional. O tempo de análise era curto e a média de deferimentos era de 35% (a decisão padrão, portanto, era a de indeferimento). Os juízes faziam três pausas para refeição e constatou-se que, imediatamente após cada intervalo, o índice de deferimentos subia até 65% e ia decrescendo até chegar perto de 0 antes da pausa seguinte. Esse polêmico e inquietante estudo sugere que os juízes (na verdade, todos os seres humanos), quando cansados e famintos, tendem a tomar a decisão que exige menos esforço cognitivo<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
No Brasil, o interesse pelo estudo do comportamento judicial ainda é pequeno e recente. Merece destaque a investigação conduzida por Pedro Ferreira e Bernardo Mueller sobre os votos de todos os ministros do STF de 2002 a 2012 em ações diretas de inconstitucionalidade. Nessa pesquisa, os autores observaram que as divergências entre os ministros não correspondem à polarização entre conservadores e liberais, como geralmente é verificado nos EUA, mas entre posições favoráveis e contrárias aos interesses econômicos do executivo, bem como em questões associadas à autonomia legislativa dos entes federados<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Um autor brasileiro cujas pesquisas empíricas sobre o tema têm trazido importantes contribuições é <a href="https://www.jota.info/autor/ivar-a-hartmann" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Ivar A. Hartmann</a>, conforme se pode verificar <a href="https://www.researchgate.net/scientific-contributions/Ivar-Alberto-Hartmann-2123944121" target="_blank" rel="noopener noreferrer">aqui</a>. Hartmann, no interessante estudo realizado em coautoria com Alexander Hudson, identificou pontos ideais semelhantes aos encontrados por Ferreira e Mueller, mas encontrou dados suficientes para determinar quatro dimensões para descrever as preferências dos ministros: direito penal, direito administrativo e tributário, federação e previdência pública<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
O comportamento dos juízes brasileiros, portanto, precisa ser mais bem compreendido. A reflexão sobre o fenômeno certamente ultrapassa o puro interesse acadêmico, como ficou claro na <a href="http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15342203609&amp;ext=.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.299</a>, em que o relator Min. Luiz Fux teve que se pronunciar cautelarmente sobre a aparente eficácia ou não da instituição da figura do juiz de garantias para mitigar os vieses cognitivos dos juízes criminais. Como se vê, há um amplo espaço de pesquisa a ser desbravado pelos juristas, cujos estudos poderão beneficiar os advogados, os próprios magistrados e, em última análise, todos os jurisdicionados.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> PRITCHETT, Charles H. The Roosevelt Court: a study in judicial politics and values, 1937-1947. New York: The Macmillan Company, 1948.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> SEGAL, Jeffrey A.; COVER, Albert D. Ideological Values and the Votes of U.S. Supreme Court Justices. The American Political Science Review, v. 83, n. 2, p. 557-565, 1989.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> POSNER, Richard A. How judges think. Cambridge: Harvard University Press, 2008.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> EPSTEIN, Lee. LANDES, William M.; POSNER, Richard A. The behavior of federal judges: a theoretical &amp; empirical study of rational choice. Cambridge: Harvard University Press, 2013.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> KAHNEMAN, Daniel. TVERSKY, Amos. Judgment under Uncertainty: Heuristics and Biases. Science, v. 185, n. 4157, p. 1124-1131, 1974.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> PEER, Eyal. GAMLIEL, Eyal. Heuristics and Biases in Judicial Decisions. Court Review: The Journal of the American Judges Association, v. 49, p. 114-118, 2013.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> DANZINGER, Shai; LEVAV, Jonathan; AVNAIM-PESSO. Extraneous factors in judicial decisions. Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 108, n. 17, p. 6889-6892, 2011.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> FERREIRA, Pedro Fernando Almeida Nery; MUELLER, Bernardo. How judges think in the Brazilian Supreme Court: Estimating ideal points and identifying dimensions. EconomiA, v. 15, n. 3, p. 275-293, 2014.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> HARTMANN; Ivar Alberto; HUDSON, Alexander. Can you bury ideology? An empirical analysis of the ideal points of the ministers of Brazil’s Supremo Tribunal Federal. A&amp;C – Revista de Direito Administrativo e Constitucional, v. 68, p. 43-59, abr./jun. 2017.

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JOTA

Por uma agenda de pesquisa sobre o comportamento judicial no Brasil

Como os juízes decidem?

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