João Victor Archegas

Alice de Perdigão Lana

Na manhã desta segunda-feira, o Wall Street Journal publicou a <a href="https://www.wsj.com/amp/articles/facebook-files-xcheck-zuckerberg-elite-rules-11631541353" target="_blank" rel="noopener noreferrer">primeira</a> do que será uma série de reportagens sobre arquivos do Facebook, antes confidenciais, que revelam que a empresa está menos preocupada em "dar voz" de forma igualitária aos seus usuários do que tenta aparentar.
A reportagem revela que um programa chamado "XCheck" ou "cross check" é utilizado para dar tratamento especial para milhões de figuras públicas ou influencers com muitos seguidores. Essas pessoas, mesmo ao postar conteúdos que frontalmente violam os <a href="https://transparency.fb.com/pt-br/policies/community-standards/?from=https%3A%2F%2Fwww.facebook.com%2Fcommunitystandards%2F" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Padrões de Comunidade</a>, não sofrem as sanções que são aplicadas aos usuários comuns.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>O objetivo deste programa é supostamente resguardar a imagem pública do Facebook. A rede social reconhece que diversas decisões de <a href="https://itsrio.org/pt/publicacoes/redes-sociais-e-moderacao-de-conteudo/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">moderação de conteúdo</a> adotadas na plataforma são equivocadas e vem atuando para tornar seu processo mais eficiente, seja pelo aperfeiçoamento de seus algoritmos ou pelo treinamento de seus moderadores.
Nada obstante, para evitar constrangimentos, a empresa criou uma lista de personalidades que são imunes às suas regras. Quando os perfis desta lista as violam, suas postagens permanecem na plataforma até que um time do Facebook possa revisá-las. Isso é feito para evitar desgastes que poderiam advir de embates públicos com figuras proeminentes.
Neymar Jr. é uma das personalidades "VIP" que foram adicionadas à lista do Facebook, segundo informações do WSJ. Os documentos se referem ao conhecido <a href="https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2019/06/em-video-neymar-nega-estupro-diz-ter-caido-em-armadilha-e-expoe-troca-de-mensagens.shtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">caso</a> de 2019, em que uma modelo o acusou de estupro e, em resposta, o jogador gravou um vídeo exibindo, sem seu consentimento, imagens íntimas enviadas em uma conversa privada no WhatsApp.
A postagem de conteúdo com nudez, em especial a disseminação não consensual de imagens íntimas, é uma violação cristalina às regras do Facebook e geralmente é punida com a remoção da postagem e a derrubada da conta, seguindo a metodologia de "one strike" da empresa.
<blockquote class="jota-article__eye">No entanto, no caso de Neymar, em razão do sistema XCheck, a remoção do vídeo foi atrasada em mais de 24 horas. Neste período, o vídeo foi assistido por 56 milhões de pessoas, segundo dados apurados pela própria empresa.</blockquote>
Além disso, contrariando os precedentes que aplicaram a metodologia "one strike", a conta do jogador não foi derrubada.
Neymar não é o único a gozar deste privilégio: segundo os documentos revisados pelo WSJ, 5.8 milhões de usuários estão na lista da rede social, desde políticos influentes como Elizabeth Warren até personalidades do mundo animal como <a href="https://www.instagram.com/itsdougthepug/?hl=pt-br" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Doug the Pug</a>. Na prática, essa elite digital recebe uma carta branca para violar os Padrões da Comunidade.
Ainda que a empresa alegue que a imunidade é temporária e se mantém apenas até que um time de revisores do Facebook possa se manifestar, fato é que os próprios documentos da rede social revelam que a maioria dos conteúdos protegidos pelo sistema XCheck nunca foram realmente revisados. Ou seja, o que era para ser uma espécie de passe livre transitório virou uma indefensável leniência duradoura em benefício de alguns poucos privilegiados.
Aplicar parâmetros mais brandos de moderação para usuários influentes é uma realidade no Facebook há muitos anos, especialmente quando se trata de políticos. A empresa já havia sido criticada duramente por não agir contra as violações perpetradas pelo ex-presidente Donald Trump na plataforma, como no infame <a href="https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/05/trump-sugere-atirar-em-manifestantes-e-twitter-inclui-aviso-sobre-glorificacao-da-violencia.shtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">caso</a> da postagem em que alegou, em resposta aos protestos antirracistas nos EUA, que "quando os saques começam, o tiroteio começa".
A empresa mudou de postura depois da derrota eleitoral de Trump em 2020 e, reagindo à violenta invasão do Capitólio em janeiro de 2021, baniu o ex-presidente de seus serviços. O Facebook, entretanto, enviou sua decisão ao <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-suprema-corte-do-facebook-e-o-direito-constitucional-para-alem-do-estado-07082019" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Oversight Board</a>, um comitê independente criado para revisar em última instância as decisões de moderação de conteúdo mais controvertidas da empresa. O Board, meses depois, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/trump-contra-facebook-um-raio-x-da-decisao-do-oversight-board-06052021" target="_blank" rel="noopener noreferrer">decidiu</a> manter a suspensão de Trump.
Ainda, durante a instrução do caso, a rede social informou ao comitê a existência do sistema XCheck. Ao final de sua decisão, o Board recomendou ao Facebook que seja mais transparente e explique aos usuários os parâmetros que guiam o sistema. Em resposta, a empresa afirmou que já deu essa explicação em seu <a href="https://about.fb.com/news/2018/08/enforcing-our-community-standards/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">blog</a> em 2018, no qual disse que o Facebook remove conteúdos que violam suas regras independente de quem os publicou.
Para alguns especialistas, como é o caso da Professora <a href="https://twitter.com/Klonick/status/1437430349248794626?s=20" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Kate </a><a href="https://twitter.com/Klonick/status/1437430349248794626?s=20" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Klonick</a>, o Facebook tentou enganar o comitê ao esconder a real extensão e as implicações da sua lista de "VIPs". Em sua <a href="https://twitter.com/OversightBoard/status/1437434013153640455?s=20" target="_blank" rel="noopener noreferrer">conta</a> no Twitter, o Oversight Board reafirmou sua preocupação com a falta de transparência do Facebook e reforçou a importância de seu trabalho para tornar a moderação na plataforma mais previsível e justa.
Este episódio denota, mais uma vez, a importância de implementar mecanismos de accountability para realinhar o processo de moderação de conteúdo aos preceitos do Estado de Direito dentro de uma perspectiva que se convencionou chamar de "<a href="https://www.plural.jor.br/artigos/constitucionalismo-digital/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">constitucionalismo digital</a>". Nesse sentido, diversos países já estão se movimentando para exigir mais <a href="https://itsrio.org/pt/publicacoes/protecao-de-dados-e-transparencia-em-moderacao-de-conteudo-na-europa-reino-unido-e-brasil/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">transparência</a> das redes sociais.
A solução passa justamente pela racionalização da moderação de conteúdo, exigindo que as empresas apliquem suas regras de forma consistente e previsível para todos os seus usuários sem discriminação. Esse é o papel que cabe ao Estado: garantir a prevalência de certos direitos fundamentais dentro da arena digital sem, contudo, extinguir o espaço de autorregulação das redes sociais.
Infelizmente, o governo brasileiro <a href="https://www.gedai.com.br/wp-content/uploads/2021/09/Nota-Tecnica-GEDAI-MP-1.068.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">caminha na direção contrária</a>. Ao editar a <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.068-de-6-de-setembro-de-2021-343277275" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Medida Provisória nº 1.068/2021</a>, que foi <a href="https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/09/14/pacheco-devolve-mp-de-bolsonaro-que-limita-remocao-de-conteudo-nas-redes-sociais.ghtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">recentemente devolvida pelo senador Rodrigo Pacheco</a>, o presidente Bolsonaro não apenas ignorou o debate internacional como também buscou implementar medidas amplamente criticadas, seja por sua ineficácia ou por seu ataque às liberdades individuais.
A MP, sob o manto da “luta contra a censura” e “proteção da liberdade de expressão”, tentou arbitrar, pela via do Poder Executivo, todas as hipóteses em que uma rede social poderia remover contas e conteúdos. O rol taxativo classificou como "justa causa" a exclusão de manifestações lícitas, como a nudez, e se calou acerca de problemas complexos como a desinformação e o cyberbullying. Na prática, como <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-mp-da-mentira-09092021" target="_blank" rel="noopener noreferrer">recentemente defendeu</a> Ivo Correa, a medida buscava resguardar redes de fake news e proteger conteúdos antidemocráticos.
Diferente da solução vacilante encontrada por Bolsonaro, um bom caminho é a existência, coordenada e simultânea, de duas frentes: por um lado, a autorregulação por parte das plataformas, concentrando-se em tornar o processo de moderação de conteúdo mais transparente e responsável; e, por outro lado, algum nível de regulação estatal, que estabeleça balizas mínimas e regras claras para a eventual responsabilização das plataformas.
A resposta autoritária, adotada pelo governo federal e rejeitada pelo Senado, colocou o Brasil na contramão das discussões contemporâneas sobre direitos digitais e não forneceu instrumentos para resolver os reais desafios da moderação de conteúdo que foram escancarados pelo sistema XCheck, como a falta de transparência, isonomia e previsibilidade.

dsat

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

O que isso significa para a regulação de plataformas

Como Neymar se tornou imune à moderação na rede social

O que isso significa para a regulação de plataformas