No primeiro dia de 2023, a recriação do Ministério da Cultura, extinto no governo anterior, parecia prenunciar um ano alvissareiro. Uma semana depois, porém, os bárbaros ataques do 8 de janeiro mostraram que ainda havia muito a ser reconstruído em matéria de cultura, educação e tolerância na sociedade brasileira. Os danos a obras de artistas como Brecheret, Athos Bulcão, Di Cavalcanti, Burle Marx, Ceschiatti e Frans Krajcberg, foram enormes no Congresso, no Supremo e no Planalto.
No exterior, o vandalismo contra obras de arte também teve lugar com grupos como Just Stop Oil e Extinction Rebellion, que utilizaram museus como locais frequentes de protestos climáticos. Como consequência, a Itália aprovou há poucos dias uma nova lei sobre os chamados “ecovândalos”, instituindo penas mais pesadas. Isso deve acontecer em outras jurisdições.
Depredação, porém, não foi o único fator responsável pelos danos ao patrimônio cultural em 2023. Eventos climáticos extremos, como calor causticante, secas severas, chuvas torrenciais e ventos assustadores, produziram graves prejuízos a bens culturais materiais e imateriais. Os terremotos da Turquia, Síria e Marrocos também destruíram sítios arqueológicos e edifícios antigos.
No ano em que, pela primeira vez, um indígena, Ailton Krenak, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, a expectativa é de que a nova composição da ABL lance luzes para questões relacionadas não apenas aos povos originários mas também à terra, ao meio ambiente e aos direitos das comunidades quilombolas, que, assim como os indígenas, têm uma relação cultural profunda com os territórios e recursos naturais.
Os temas indígenas, aliás, mereceram inédito destaque artístico ao longo do ano. A 35ª Bienal de São Paulo exibiu a diversidade e a arte dos povos indígenas, acrescida das pessoas negras e de outros grupos culturais minorizados, vulnerabilizados e discriminados, como as mulheres.
As histórias indígenas, a tapeçaria diné/navajo e os saberes tupinambás mobilizaram o Masp no “Ano das Histórias Indígenas”, tema que o museu escolheu para apresentar e discutir a diversidade e a complexidade dessas culturas. Também no Masp, a mostra “Paul Gauguin: o outro e eu” retomou a abordagem crítica sobre a relação do artista europeu com a alteridade – algo já visto em São Paulo, por exemplo, na espetacular museografia do Museu do Ipiranga.
A Pinacoteca também mostrou em seu átrio uma instalação de Denilson Baniwa, e muitas galerias paulistanas encheram as paredes de artistas como Aislan Pankararu e Seba Calfuqueo.
A tendência parece duradoura: na 60ª Bienal de Veneza, entre 20 de abril e 24 de novembro de 2024 — que terá como curador, conforme anunciado no ano passado, o advogado brasileiro Adriano Pedrosa, primeiro latino-americano à frente da mostra — o Pavilhão do Brasil será totalmente indígena.
Também em São Paulo, duas exposições marcaram a importância da herança negra na cultura nacional: no MAM, houve a mostra “Mãos - 35 anos da Mão Afro-Brasileira”, que revisitou uma mostra montada em 1988 por Emanoel Araújo, e, no Centro Cultural Banco do Brasil, montou-se “Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira”, com 150 obras de 61 artistas negros. O Instituto Inhotim seguiu trilha semelhante e inaugurou a exposição “Terceiro Ato: Sortilégio”, em homenagem a Abdias Nascimento. O livro “Arte dos Mundos Negros”, de Anne Lafont, também trouxe novas perspectivas da história da arte no chamado Atlântico Negro.
No Rio, o MAR montou a elogiada coletiva ‘Funk’, com obras de mais de cem artistas. Aliás, essa expressão cultural também foi destaque no prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro. Na edição de 2023, o livro de Danilo Cymrot “O Funk na Batida”, das Edições SescSP, ficou entre os cinco finalistas na categoria ciências sociais. O livro é fruto da pesquisa de mestrado do autor, defendida na faculdade de direito da USP, na área de criminologia. Cymrot, mestre e doutor em direito pela USP, tem nome artístico de Danilo Dunas e, como poeta, artista, compositor e músico, vem despontando como compositor de trilha sonora para teatro.
Pesquisadores dedicados à arqueologia subaquática anunciaram também em 2023 avanços na descoberta de navios escravagistas naufragados na região de Angra dos Reis, Rio de Janeiro. O impacto dessa pesquisa arqueológica, que começa pela alteração do nome de navios negreiros para navios escravagistas, tem sido aproveitado pelas comunidades quilombolas. A contribuição da Arqueologia para compreensão das relações comerciais e sociais travadas em torno da escravidão, a partir do estudo da cultura material, dos restos mortais e da embarcação, soma-se às iniciativas para desconstrução do racismo estrutural no país e merece destaque na retrospectiva do ano.
Essa boa notícia chega justamente no ano da reinauguração do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, onde cerca de um milhão de pessoas desembarcaram durante o comércio transatlântico de negros escravizados. Em 2017, o Cais do Valongo foi declarado, pela Unesco, Patrimônio da Humanidade e desde então há um árduo trabalho de desenho e implementação de políticas públicas para consolidação do espaço como lugar de dor e memória.
Do ponto de vista institucional, a Portaria Iphan 135/2023 dispôs sobre a regulamentação do procedimento para a declaração do tombamento de documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos e ainda criou o Livro de Tombo de Documentos e Sítios Detentores de Reminiscências Históricas de Antigos Quilombos. A recriação da cota de tela foi mais uma medida legal de amparo do setor cultural. Outra iniciativa institucional importante foi a publicação pelo ICOM (International Council of Museums) da “Red List Brazil”, reunindo os objetos culturais brasileiros protegidos pela legislação e sob risco de tráfico ilícito.
A decolonialidade, com o debate sobre o colonialismo cultural, tem ganhado maior destaque na seara da repatriação de bens culturais e 2023 foi um ano importante para o Brasil nessa seara. Nosso país celebrou a devolução de um vasto e rico patrimônio paleontológico extraído ilegalmente do Ceará e que se encontrava na França. Autoridades brasileiras e dinamarquesas também acordaram que o raríssimo manto tupinambá deverá ser repatriado para o acervo do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Outra devolução importante, agora no âmbito doméstico, foi a decisão judicial final sobre a coleção de 3.524 artefatos arqueológicos e etnográficos da massa falida do Banco Santos que passou a integrar o acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP).
Os museus da Europa e da América do Norte certamente enfrentarão pressões ainda maiores para a restituição em 2024. Um argumento bastante comum nesses casos é o de que certos países não oferecem segurança a bens culturais repatriados. O argumento sofreu um duro golpe, no meio do ano passado, com as revelações de que um dos mais importantes curadores do Museu Britânico, em Londres, teria roubado 2.000 antiguidades da instituição durante os últimos 25 anos. O governo grego prontamente intensificou a sua luta pelo retorno dos Mármores do Partenon a Atenas. Representantes de Gana, Nigéria e Etiópia também apelaram ao museu londrino para que devolvesse os seus artefatos.
Dois eventos tristes e preocupantes de 2023 foram a continuidade da guerra na Ucrânia e a eclosão de violento conflito entre israelenses e palestinos após um ataque do grupo terrorista Hamas, em outubro, ambos com graves repercussões sobre lugares de valor cultural – locais religiosos, museus, edifícios de interesse histórico e/ou artístico, sítios arqueológicos, monumentos e bibliotecas. Os combates também reacenderam as discussões sobre obras de arte roubadas em tempos de guerra. Museus ucranianos acusam as tropas russas de expoliação. A França, por seu turno, aprovou uma nova lei para facilitar o reconhecimento e a devolução de obras de arte roubadas pelos nazistas.
No âmbito do Patrimônio Mundial Imaterial, duas novas manifestações musicais foram declaradas patrimônios da humanidade em 2023: o bolero e o canto lírico italiano, realçando o poder da música para a identidade cultural. Do mesmo modo, a Unesco reconheceu a atividade das parteiras como patrimônio cultural imaterial em oito países. No Brasil, 2023 também foi o ano da retomada da discussão institucional sobre o registro do ofício das parteiras como patrimônio cultural brasileiro. A expectativa é de avanço do tema em 2024.
Com efeito, o ano de 2023 marcou o aniversário de vinte anos da Convenção Unesco sobre o Patrimônio Cultural Imaterial. Houve eventos e celebrações ao redor do mundo, com participação de brasileiros, mas no Brasil, apesar do país ser signatário desta convenção, nada de muito significativo aconteceu para marcar a data.
Ainda na Unesco, o Brasil foi eleito, em dezembro de 2023, para o Comitê para a Proteção de Bens Culturais em Casos de Conflito Armado. O Comitê é o órgão mais relevante para a implementação dos dispositivos de proteção de bens culturais previstos na Convenção da Haia de 1954 e seus dois protocolos. Em maio, o país já havia sido eleito para fazer parte do Comitê da Convenção Unesco de 1970 sobre o combate ao tráfico de bens culturais. Nesse particular, é de se esperar, para os próximos meses, a publicação da necessária portaria que cria o Comitê Brasileiro de Luta Contra o Tráfico Ilícito de Bens Culturais, tema aliás de interesse do Mercosul.
No mundo dos leilões, dois fatos repercutiram no Brasil com especial interesse: em maio, a “Spider” de Louise Bourgeois, exibida por mais de 20 anos no MAM-SP, foi vendida por mais de 32 milhões de dólares na Sotheby's. Em outubro, a coleção de Emanoel Araújo foi arrematada por 30 milhões de reais para a Fundação Lia Maria Aguiar, de Campos do Jordão.
No ano passado, grandes polêmicas ainda ocorreram por conta do uso de inteligência artificial na arte. Dois eventos merecem destaque: um livro ilustrado por inteligência artificial foi retirado da lista de contemplados do Prêmio Jabuti, equanto que o fotógrafo Boris Eldagsen, depois de vencer um concurso internacional de fotografia com imagem gerada por IA, também perdeu o prêmio. Certamente, a inteligência artificial e sua utilização na arte continuarão a causar polêmica em 2024. O seu uso, porém, deve ser aprimorado para combater o tráfico de bens culturais. A tecnologia poderá se mostrar muito útil, por exemplo, para levantar red flags em leilões online e auxiliar promotores e policiais a detectar falsificações.
O ano de 2024 começa com muitos desafios. O conflituoso contexto geopolítico global e as alterações climáticas certamente produzirão efeitos diretos na cultura. A sustentabilidade e a valorização de grupos culturalmente diversos e a equidade e perspectiva de gênero hão de ser preocupações ainda maiores nas artes, na arquitetura e no delineamento de políticas culturais que protejam os bens coletivos. Descarbonizar a economia criativa, incrementar iniciativas, dos setores público e privado, que lidem com o impacto das mudanças climáticas no cotidiano das comunidades culturais mais vulneráveis e aprofundar o debate do valor das tarefas e conhecimentos ligados aos cuidados domésticos exercidos predominantemente pelas mulheres serão temáticas ainda mais frequentes neste ano de 2024. 