Hoje, sexta-feira, é dia de mais um capítulo do projeto “Dúvida Trabalhista? Pergunte ao Professor!” dedicado a responder às perguntas dos leitores do JOTA, sob a coordenação acadêmica do professor de Direito do Trabalho e coordenador trabalhista da Editora Mizuno, Dr. Ricardo Calcini.
O projeto tem periodicidade quinzenal, cujas publicações são veiculadas sempre às sextas-feiras. E a você leitor(a) que deseja ter acesso completo às dúvidas respondidas até aqui pelos professores, basta acessar o portal com a #pergunte ao professor.
Neste episódio de nº 74 da série, a dúvida a ser respondida é a seguinte:
Pergunta ► Como ficam os afastamentos dos trabalhadores diante da nova Portaria Interministerial (MTP/MS) nº 14/2022?
Resposta ► Com a palavra, o professor Marcelo Ferreira Machado.
Na esteira da Lei 13.979, de 2020, que dispõe sobre as medidas que podem ser adotadas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do SARS-CoV-2, responsável pela pandemia da Covid-19, foi publicada no último dia 25 de janeiro a Portaria Interministerial do Ministério do Trabalho e Previdência e do Ministério da Saúde nº 14.
A portaria altera o Anexo I da Portaria Conjunta nº 20, da então Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia e do Ministério da Saúde, que havia sido publicada em 19 de junho de 2020, e que dispõe a respeito das medidas a serem observadas nos ambientes de trabalho visando à prevenção, ao controle e à redução dos riscos de transmissão da Covid-19.
Antes que se passe a uma breve análise dos pontos contidos na nova Portaria Interministerial nº 14 que influem nas relações trabalhistas, é importante não perder de vista duas noções iniciais.
Primeira, em se tratando de medidas para prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão do coronavírus em ambientes de trabalho, a portaria é uma fonte formal do direito do trabalho, vinculando a atividade das partes e as relações obrigacionais estabelecidas.
Segunda, a despeito do contrato de trabalho ser a “figura central” e a “razão de ser” do direito do trabalho, não sendo unicamente o contrato o regulador da relação jurídica do trabalho subordinado [1], é indubitável que as previsões contidas na portaria editada vinculam o agir estabelecido em contrato, tanto do empregador, quanto do empregado.
A par isso, reitere-se que a Portaria Interministerial nº 14 mantém a essência da Portaria Conjunta nº 20 quanto às medidas gerais e específicas que foram então estabelecidas para salvaguarda da salubridade dos ambientes laborais e a manutenção da atividade econômica das sociedades empresariais.
Pode-se enunciar que tais medidas envolvem estabelecer e divulgar orientações ou protocolos com a indicação das medidas necessárias para prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão da Covid-19 nos ambientes de trabalho, o que inclui:
- medidas de prevenção nos ambientes de trabalho nas áreas comuns da organização, como refeitórios, banheiros, vestiários, áreas de descanso e no transporte de trabalhadores, quando fornecido pela organização;
- ações para identificação precoce e afastamento dos trabalhadores com sinais e sintomas compatíveis com a Covid-19;
- procedimentos para que os trabalhadores possam reportar ao empregador, inclusive de forma remota, sinais ou sintomas compatíveis com o coronavírus, ou contato com caso confirmado da doença;
- instruções sobre higiene das mãos e etiqueta respiratória;
- estabelecimento de distanciamento social;
- desenvolvimento de higiene e limpeza de ambientes;
- promoção de ventilação dos locais de trabalho e áreas comuns;
- uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e outros de proteção, como máscaras cirúrgicas.
Em comparação à portaria de 2020, a substancial alteração ocorrida na atual diretriz interministerial se dá quanto ao período (ou períodos) de afastamento de empregados contaminados, suspeitos e contatantes, entendendo-se como contatante o trabalhador assintomático que esteve próximo de caso confirmado ou suspeito de Covid-19, entre dois dias antes e dez dias após o início dos sinais ou sintomas ou, sendo o caso de confirmação, da data da coleta do exame de confirmação laboratorial, nas seguintes hipóteses:
- ter tido proximidade em menos de um metro e por tempo superior a 15 minutos sem uso de máscara, ou com uso incorreto;
- contato físico direto;
- compartilhamento de ambientes domiciliares, ou análogos (como dormitórios);
- e, se em contato com caso confirmado, tenha permanecido a menos de um metro de distância durante transporte por mais de 15 minutos.
O anexo da portaria de 2020 estabelecia o afastamento por 14 dias nos casos confirmados, suspeitos e contatantes, podendo o retorno dos últimos se dar em tempo inferior, caso um exame laboratorial descartasse a presença do vírus ou houvesse assintomatização por mais de 72 horas.
A seu turno, a nova portaria interministerial estabelece a redução do afastamento do ambiente de trabalho para 10 dias para os casos confirmados, suspeitos e contatantes podendo, em qualquer caso, que o afastamento seja reduzido para 7 dias, sendo que essa redução será contada de forma diferente a depender de cada caso hipotético: para os confirmados e suspeitos, que estejam sem febre há 24 horas, sem o uso de medicamento antitérmicos, e com remissão dos sinais e sintomas respiratórios; e para os contatantes, que tenha sido realizado teste por método molecular ou teste de antígeno a partir do quinto dia após o contato, se o resultado do teste for negativo.
Enfatize-se que o empregador, seja na então Portaria Conjunta nº 20, seja na atual Portaria Interministerial nº 14, sempre esteve obrigado a manter a remuneração dos empregados afastados, por assumir os riscos da atividade empreendida, na forma do artigo 2º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Aliás, a manutenção das obrigações trabalhistas pelo empregador deve ser inclusive observada não apenas em hipóteses de afastamentos pontuais de empregados infectados, ou em suspeita, cujo contato tenha ocorrido com outros trabalhadores em igual ou similar situação, como também em situações de encerramento provisório e total das atividades em setor (ou setores) da empresa, ou mesmo de estabelecimento ou estabelecimentos do empregador.
Em todos esses casos ora citados, medidas devem ser tomadas para o regresso dos trabalhadores envolvidos, tais como assegurar a adoção de protocolos de prevenção previstos no anexo da portaria interministerial com a correção das situações que possam ter favorecido a contaminação dos trabalhadores nos ambientes de trabalho, além da própria higienização e desinfecção dos locais de trabalho e demais dependências da sociedade empresarial, acrescido do reforço da comunicação aos trabalhadores sobre as medidas de prevenção à Covid-19, bem como o constante monitoramento dos trabalhadores para garantir o afastamento dos casos confirmados, suspeitos e contatantes próximos de casos confirmados da Covid-19.
É certo que a atual portaria prevê, tal qual já dispunha a anterior, não ser exigida a testagem laboratorial para a Covid-19 de todos os trabalhadores como condição para retomada das atividades do setor ou do estabelecimento, porquanto não há recomendação técnica para esse procedimento.
No que tange à previsão do monitoramento dos trabalhadores com a finalidade de garantir a salubridade do ambiente de trabalho, que se dá pela identificação dos empregados confirmados, suspeitos ou que tiveram contato com o vírus, é preciso pontuar que o empregador é responsável por salvaguardar o respeito à privacidade do empregado, da sua intimidade, honra e imagem, em conformidade com o comando do artigo 2º da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Sendo a pandemia da Covid-19 um estado de calamidade pública, conforme reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020, e de emergência de saúde pública, conforme a já citada Lei 13.979/2020, o respeito à vida privada, à intimidade, à imagem e outros direitos que densificam a dignidade da pessoa humana deve ser observado quando da disponibilização e tratamento dos dados dos trabalhadores que tenham sido contaminados, ou em suspeita, ou em contato com contaminados ou suspeitos, para fins de fiscalização do poder público e veiculação aos órgãos públicos e entidades públicas que estejam estudando, pesquisando e monitorando as estatísticas de infecção promovida pelo vírus.
Disso cuidam o item 2.13 do anexo I da Portaria Interministerial nº 14 e o artigo 13 da Lei 13.709/2018, que estabelece, inclusive, a obrigação dos órgãos que receberem os dados enviados de manterem o anonimato e a segurança das informações repassadas.
Em suma, com relação à coleta e disponibilização de dados de empregados afastados provisoriamente do trabalho, o empregador deve se preocupar em não externá-los além dos limites legais, sob pena de gerar o dever de compensação por dano moral.
Some-se que a preocupação com a saúde do trabalhador e da integridade da salubridade do ambiente de trabalho deve ser mais estrita, quando houver trabalhadores em grupo de risco, tratando-se daqueles com 60 anos ou mais, com cardiopatias graves ou descompensadas (insuficiência cardíaca, infartados, revascularizados, portadores de arritmias, hipertensão arterial sistêmica descompensada); pneumopatias graves ou descompensadas (dependentes de oxigênio, portadores de asma moderada/grave, Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica); imunodeprimidos; doentes renais crônicos em estágio avançado (graus 3, 4 e 5); diabéticos, conforme juízo clínico, e gestantes de alto risco.
A Portaria Interministerial nº 14 estabelece que nos casos de trabalhadores em grupos de risco pode ser adotado o trabalho remoto ou o teletrabalho, conforme consagrado pela CLT em seus artigos 6º, 75-A a 75-E, devendo-se realizar os devidos ajustes no contrato de trabalho.
Porém, é preciso que se diga, em nosso entender, que a mudança do local da prestação dos serviços é possível, desde que compatível com a atividade exercida pelo empregado em questão. Caso contrário, a própria portaria estabelece no item 7.1.1 que sejam fornecidas máscaras cirúrgicas ou máscaras do tipo PFF2 (N95) ou equivalentes para a execução do trabalho presencial. Não caberá ao empregado se negar a prestar o trabalho nessas condições.
Ao fim e ao cabo, as Portarias nº 20, de 2020, e nº 14, de 2022, adotam medidas quase que idênticas de salvaguarda do trabalho em coletividade laboral e de desenvolvimento da atividade econômica. Mas não se pode perder de vista que as obrigações advindas da atual portaria interministerial também vinculam o comportamento do empregado. Assim sendo, embora caiba ao empregador monitorar os casos de suspeição, de contato e de confirmação da contaminação do coronavírus, o empregado também está obrigado a informar prontamente, por aplicação dos princípios da boa-fé e da lealdade, se se encontrar em uma das hipóteses tratadas pela Portaria Interministerial nº 14. Isso está previsto, aliás, no item 2.9, o que pode gerar sanções decorrentes do poder diretivo do empregador, a depender do caso a ser analisado.
E aqui, finalizando, independente de tudo quanto exposto, sendo certo que o ponto principal da nova portaria seja a redução do tempo de afastamento de empregados, não se exonera o empregador de adotar toda e qualquer medida em prol da segurança, da saúde e bem-estar sociais.
Afinal, já há gatilho na portaria recém-publicada [2] – ex vi item 4.2.2 (“Medidas alternativas podem ser adotadas com base em análise de risco, realizada pela organização”). A ordem social brasileira está compromissada com aqueles propósitos, nos quais figuram as relações trabalhistas, que se fundamenta nos incisos XXII e XXXIV do artigo 7º da Constituição Federal, bem como seu parágrafo único, além do inciso VIII do artigo 200 e artigo 225, todos da Constituição, que congregam como direito sociofundamental dos trabalhadores urbanos, rurais, domésticos e avulsos a redução dos riscos inerentes ao trabalho, vinculando tanto o poder público, quanto a sociedade, o que demanda da figura jurídica do empregador uma maior preocupação na ordenação da atividade econômica exercida, principalmente nos tempos de insegurança que estamos vivendo.
[1] AMADO, João Leal. Contrato de trabalho: noções básicas. 2.ed. Coimbra: Almedina, p. 14.
[2] Em verdade, também já havia na anterior Portaria Conjunta nº 20, igualmente no item 4.2.2.