Pietra Vaz Diógenes da Silva

Caroline Stéphanie Francis dos Santos Maciel

Thábata Filizola Costa

A ideia de <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/metaverso">metaverso</a>, apesar de não ser nova, tem sido objeto de crescentes reflexões nos últimos meses. As discussões, catalisadas pelos novos projetos do Facebook — que em outubro de 2021 mudou seu nome para Meta —, partem do mesmo ponto: é inegável a profundidade do impacto das tecnologias de informação e comunicação na sociedade. Nesse sentido, a arquitetura da infraestrutura digital <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/metaverso-desafios-legais-13112021">influencia diretamente na qualidade de informação</a> e comunicação dos cidadãos.
Embora a definição de metaverso ainda esteja em construção, algumas características dessa tecnologia já podem ser identificadas: trata-se de um ambiente virtual tridimensional construído a partir de multi-tecnologias, que promove experiências ultrarrealistas de sociabilidade e de imersão espaço-temporal.
Se antes havia uma sólida fronteira entre o mundo analógico e digital, esses planos agora se misturam. Como apontou Luciano Floridi, não se vive mais ora no offline, ora no online, mas sim sempre no onlife: uma fusão indissociável de off e on, em um híbrido constante de realidade física e virtual [1]. Com isso, o mundo digital passa a interferir nos aspectos mais essenciais da sociedade, inclusive nos rumos políticos das nações.
Por mais que as tecnologias tenham alterado o modo como a humanidade se coloca no mundo, o rumo dessa revolução informacional ainda é incerto. <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/os-desafios-na-tributacao-do-metaverso-25012022">Sem uma regulação eficiente</a>, corre-se o risco de o mundo digital não só repetir os erros e problemas do mundo analógico, mas intensificá-los a níveis nunca antes vistos. Surgem, assim, preocupações de ordem social e econômica, tais como a exclusão digital e os riscos de abuso de posição dominante para fechamento de mercado.
Quanto ao primeiro aspecto, a desigualdade no plano físico mantém-se (e até mesmo intensifica-se) nos planos virtuais. Com relação ao metaverso, essa questão se apresenta desde a origem: poucas empresas dominantes concentram as possibilidades desse novo mercado, detendo os meios e as infraestruturas digitais necessárias para sua inserção no universo da realidade virtual.
Essa assimetria de poder gera, de um lado, usuários com ferramentas e conhecimento adequados <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/tribuna-da-advocacia-publica/comprei-virtual-land-e-agora-devo-pagar-itbi-18042022">para prosperar no metaverso</a> e, de outro, usuários marginalizados e digitalmente excluídos. Para adentrar no metaverso é preciso utilizar fones e visores, ou headsets, de realidade aumentada ou virtual. Embora certos espaços possam ser acessados por outros meios, como celulares e computadores, a experiência completa é possibilitada apenas com os demais equipamentos. O mercado de headsets já está concentrado: a Oculus, que foi comprada pela Meta já em 2014 [2], anunciou seu novo headset Oculus Quest 2<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> em outubro de 2020, e, de acordo com o International Data Corporation, foi responsável por cerca de dois terços do mercado global dos equipamentos de realidade virtual no primeiro trimestre de 2021 [4], com alcances ainda expressivos nos demais meses.
Quanto ao segundo ponto, as possibilidades de práticas anti-concorrenciais são grandes, mesmo porque o metaverso não depende apenas de hardware, mas também de software. O Meta também não fica para trás nesse sentido, já tendo adquirido diversas outras empresas do ramo de desenvolvimento, como Big Box VR, Unit 2 Games, Beat Games, Sanzaru Games, Ready at Dawn e Within [5].
A própria definição arquitetônica do espaço do metaverso é criada por seus desenvolvedores. Diferentemente do mundo analógico que habitamos, em que o espaço possível para ações humanas e <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/tokenizacao-direito-novas-oportunidades-atreladas-era-digital-27122021">os objetos passíveis de serem regulados</a> são dados pela natureza e pelas possibilidades materiais, as prerrogativas e limitações do metaverso são fabricadas, intencionalmente ou não, pelos códigos e algoritmos que o compõem.
Uma grande empresa poderia, por exemplo, restringir os meios utilizados para pagamentos, comunicações, interações, compras e vendas e qualquer forma de interlocução no metaverso exclusivamente aos oriundos de produtos do proprietário da infraestrutura. A dominância dessa aplicação por poucas empresas pode prejudicar, ainda, os usuários, que se veriam obrigados a aceitar termos de uso abusivos ou coletas excessivas de dados para se integrarem ao metaverso, reproduzindo o problema do consentimento que já é fato em plataformas digitais utilizadas para trabalho, educação e lazer: sem liberdade de escolha de fato, os usuários são obrigados a concordar com as decisões da empresa proprietária.
Apresentam-se, ainda, importantes desafios regulatórios que exigirão uma abordagem transnacional desse universo. Afinal, que país teria soberania para atuar no metaverso? Como harmonizar, por exemplo, problemas consumeristas entre usuários/avatares sujeitos, no mundo real, a <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/women-in-tax-brazil/os-desafios-da-tributacao-de-nfts-criptoativos-obras-de-arte-ou-bens-digitais-22042022">ordenamentos jurídicos com graus de proteção diferentes?</a> Como fiscalizar um universo virtual e em que grau deve o Estado intervir?
As questões ora discutidas não são meras abstrações: já se assiste a uma concentração significativa de nichos de mercados digitais por poucas empresas dominantes — como redes sociais, ferramentas de busca, mensageria instantânea, marketplaces, delivery de comida — que abusam de seu poder de mercado nas relações com seus colaboradores, com os usuários e com outras empresas. Essa constatação é observada em inúmeras investigações de outras jurisdições por autoridades antitruste e de proteção de dados. O maior exemplo é a aprovação do Digital Markets Act (DMA) pela União Europeia [6], prevista para acontecer ainda este ano.
Nesse contexto, os usuários e as empresas concorrentes devem ter garantido o seu direito ao acesso não discriminatório às ferramentas e infraestruturas digitais essenciais. Isso significa que as empresas proprietárias de plataformas digitais essenciais ao metaverso não podem aplicar condições não isonômicas ou discriminatórias, arbitrariamente excluindo contas ou conteúdos, ou estabelecendo requisitos comerciais ou técnicos que limitem o acesso, sob pena de realizarem fechamento de mercado ou limitarem o exercício da personalidade digital e da liberdade expressão dos usuários.
Além disso, o princípio da interoperabilidade — isto é, a comunicação comercial e operacional entre diferentes aplicações e plataformas — exercerá um importante papel no metaverso. É importante que se exija a ampla interoperabilidade entre as aplicações para que o usuário consiga trocar com facilidade de provedor de serviço, impedindo a formação de silos de mercado. No mercado de telecomunicações e de pagamentos, a obrigatoriedade de observância de condições de interoperabilidade estabelecidas pelo respectivo órgão regulador foi essencial para a abertura, inovação e competitividade do mercado.
No contexto brasileiro de regulação desse futuro metaverso, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e o Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (Cade) exercerão importante papel de assegurar, dentro de suas competências, o direito de acesso não discriminatório e a interoperabilidade sistêmica.
Para além dos riscos de mercado, merecem reflexão também os aspectos determinantes da inclusão ou exclusão social no metaverso. No panorama do capitalismo de vigilância, estar nas redes sociais faz parte dos direitos à autodeterminação, à personalidade (agora na perspectiva digital), e existe um elevado risco de manipulação algorítmica, que filtra conteúdo e exclui contas sem que o usuário tenha acesso, com transparência, às decisões envolvidas nesses processos [7]. O direito à personalidade é ameaçado, bem como a própria cidadania, pois se há um novo plano de existência e de possibilidades de vivência, ainda que digital, criam-se novas camadas de exclusão e aprofunda-se a marginalização oriunda da exclusão digital, problema que está longe de ser resolvido.
Fala-se na utilização do metaverso para a criação de experiências imersivas educacionais ou, na medicina, de modo a possibilitar o intercâmbio entre pessoas e tecnologias e proporcionar ao usuário, os melhores tratamentos e soluções para seus problemas de saúde, com os melhores profissionais [8]. No entanto, quem teria acesso a essas aplicações?
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) do IBGE [9] publicada em 2020 revelam que, no Brasil, 47,8% dos alunos da rede pública de ensino com idade entre 13 e 17 anos têm acesso a computador ou notebook e a internet em casa. Na rede privada, esse percentual é de 89%. Afinal, o metaverso significaria a reprodução dessas desigualdades ou seu aprofundamento?
Pelo exposto, fica evidente que a digitalização de problemas sociais e econômicos profundos não levará à sua superação. Para que a tecnologia seja emancipadora, inclusiva e inovadora, é preciso que as autoridades brasileiras assegurem, através da regulação, que o metaverso seja construído, desde o princípio, em consonância com os valores democráticos, republicanos e com a legislação de proteção de dados e de defesa da concorrência.
O acesso não discriminatório, a interoperabilidade e a proteção dos direitos de titulares de dados exigem que a arquitetura do metaverso observe padrões de Privacy by Design e de Fairness by Design, conferindo ampla transparência e liberdade de escolha aos usuários finais e profissionais de infraestruturas digitais essenciais. Essa atuação deve ocorrer ex ante, para se evitar a consolidação de condições discriminatórias e desiguais de acesso. A história brasileira mostra bem que é muito mais difícil lidar com esses problemas sociais depois que criam raízes profundas e complexas. O metaverso está chegando e é preciso, desta vez, antecipar-se às dificuldades e impedir o surgimento de privilégios, bem como a continuidade de exclusões. 
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[1] FLORIDI, Luciano (Ed.). The Onlife Manifesto: Being Human in a Hyperconnected Era. Londres: Springer Open, 2015. 255 p. Disponível em: <a href="https://link.springer.com/book/10.1007/978-3-319-04093-6">https://link.springer.com/book/10.1007/978-3-319-04093-6</a>. Acesso em: 20 abr. 2020.
[2] FACEBOOK compra empresa de óculos de realidade virtual por US$ 2 bilhões. G1, São Paulo, 25 mar. 2014. Disponível em: <a href="https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2014/03/facebook-compra-empresa-de-oculos-de-realidade-virtual-por-us-2-bilhoes.html">https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2014/03/facebook-compra-empresa-de-oculos-de-realidade-virtual-por-us-2-bilhoes.html</a>. Acesso em: 20 abr. 2022.
[3] INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Divulgação trimestral. 4º trimestre de 2021. Disponível em: <a href="https://sidra.ibge.gov.br/home/pnadct/brasil">https://sidra.ibge.gov.br/home/pnadct/brasil</a>. Acesso em: 20 abr. 2022.
[4] Facebook leads the VR headset market in Q1 2021 but there's plenty of room for others, according to IDC. International Data Corporation, 30 jun. 2021. Disponível em: <a href="https://www.idc.com/getdoc.jsp?containerId=prUS48041621">https://www.idc.com/getdoc.jsp?containerId=prUS48041621</a>. Acesso em: 20 abr. 2020.
[5] NEWTON, Casey. Meta’s real antitrust problems are only beginning: Why an FTC inquiry into the company’s VR ambitions matters more than the lawsuit ruling. The Verge, 12 jan. 2022. Disponível em: <a href="https://www.theverge.com/22879623/meta-facebook-antitrust-problems-ftc-vr-virtual-reality">https://www.theverge.com/22879623/meta-facebook-antitrust-problems-ftc-vr-virtual-reality</a>. Acesso em: 20 abr. 2020.
[6] EUROPEAN COMMISSION. Digital Markets Act: ensuring fair and open digital markets, 2020. Disponível em: &lt;<a href="https://ec.europa.eu/info/strategy/priorities-2019-2024/europe-fit-digital-age/digital-markets-act-ensuring-fair-and-open-digital-markets_en">https://ec.europa.eu/info/strategy/priorities-2019-2024/europe-fit-digital-age/digital-markets-act-ensuring-fair-and-open-digital-markets_en</a>&gt;. Acesso em: 20 abr. 2022.
[7] ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução de George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
[8] NING, Huansheng et al. A Survey on Metaverse: the State-of-the-art, Technologies, Applications, and Challenges. Disponível em: <a href="https://arxiv.org/abs/2111.09673">https://arxiv.org/abs/2111.09673</a>. Acesso em: 20 abr. 2022.
[9] INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2020. Educação. Tabela 3.13. Disponível em: <a href="http://www.ibge.gov.br">http://www.ibge.gov.br</a>. Acesso em: 20 abr. 2022.
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O equipamento é comercializado pelo preço médio de R$ 2.500,00. Dados da PNAD Contínua do IBGE indicam, para o trimestre encerrado em janeiro de 2022, que o trabalhador brasileiro (de 14 anos de idade ou mais) recebe habitualmente, como rendimento real médio, R$ 2.447,00.

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JOTA

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