Beatriz Rey

Luís Gustavo Faria Guimarães

A <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/camara-dos-deputados">Câmara dos Deputados</a> está sob ataque institucional por parte de seu próprio presidente. Com o objetivo de passar proposições que interessam a ele ou ao governo Jair Bolsonaro, Arthur Lira tem desrespeitado o rito legislativo com frequência.
Lira atua de duas maneiras. A mais evidente é a violação das regras estabelecidas pelo Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Aprovado por deputados em 1989 (e atualizado desde então), o Regimento guia o processo legislativo. É esse o documento que dita como se dá o trâmite das matérias, dando previsibilidade aos trabalhos na Casa. O Regimento também dá aos deputados de diferentes partidos voz no processo legislativo (respeitado o princípio da proporcionalidade partidária).
A imprensa tem registrado as manobras antirregimentais de Lira. Por exemplo, projetos de decreto legislativo de autoria de deputados do PSOL que tentavam alterar ou sustar medidas e atos tomados pelo governo Bolsonaro foram barrados por ele. O presidente da Câmara alegou “inconstitucionalidade” nas propostas e as devolveu para seus autores, contrariando o artigo 139, que determina o envio de tais proposições para análise em comissão. Outro caso é o da proliferação dos grupos de trabalho, que têm sido usados por Lira para substituir o trabalho das comissões (previso pelo artigo 24, que dá às comissões o poder de discutir propostas legislativas antes que elas cheguem ao plenário).
O exemplo mais emblemático de desrespeito ao Regimento ocorreu durante a aprovação da <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/153518">PEC do Estado de Emergência</a> (também conhecida como <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/pec-kamikaze">PEC Kamikaze</a>). Só nesse episódio, Arthur Lira desrespeitou o documento quatro vezes.
Ao receber a PEC do Estado de Emergência aprovada pelo Senado, Lira apensou-a à PEC dos Biocombustíveis, cuja tramitação estava em estágio avançado na Câmara. Com isso, pulou a etapa da análise da PEC pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) e a possibilidade da apresentação de emendas na Comissão Especial – quando houve o apensamento, tal prazo já havia se esgotado.
Aqui, Lira desrespeitou o artigo 142, segundo o qual só é lícito promover a tramitação conjunta de proposições que regulem matéria idêntica ou correlata (o que não era o caso) e o artigo 202, segundo o qual todas as PECs devem ser encaminhadas à CCJC e a uma Comissão Especial.
Para garantir apoio à PEC na votação em plenário, no dia 12 de julho, Lira tentou suspender a sessão até o dia seguinte, contrariando o artigo 70, que limita a suspensão de uma sessão legislativa pelo prazo máximo de uma hora. Por fim, sem oferecer nenhuma justificativa, Lira determinou que a sessão fosse realizada de forma integralmente remota através do Ato da Mesa 245/2022. Com essa manobra, permitiu o voto à distância entre a votação do mérito e dos destaques, facilitando a participação de deputados favoráveis à proposta (que estavam fora de Brasília).
E aqui está a segunda linha de atuação de Lira: a promoção de mudanças constantes e casuísticas por Atos da Mesa, que dispõem sobre o funcionamento das sessões e o regime de trabalho da Câmara.
Em junho de 2022, diante da proximidade do recesso parlamentar, ele autorizou a realização de sessões remotas às segundas e sextas-feiras, por meio do Ato da Mesa 243/2022. Com a realização dessas reuniões virtuais em dias que os parlamentares usualmente não estão em Brasília, Arthur Lira facilitou o esgotamento do prazo regimental de dez sessões para apresentação de emendas, acelerando a tramitação das PECs 11 e 15/2022, que tratavam do piso nacional da enfermagem e de biocombustíveis (como discutido, esta última serviu para o apensamento da PEC do Estado de Emergência).
Outro exemplo: a <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2270800">PEC 3/2021</a>, que trata das imunidades parlamentares, teve admissibilidade aprovada em fevereiro de 2021 diretamente no plenário e de forma virtual (e não via CCJC, como deveria acontecer). Para fazer isso, Lira deliberadamente atrasou a edição de Ato da Mesa dispondo sobre a volta do trabalho presencial e a reinstalação de todas as comissões (cujos trabalhos estavam suspensos desde 2020, por conta da pandemia). Apesar da manobra, a PEC gerou enorme controvérsia. Diante do risco iminente de derrota, ele recuou de sua intenção de votar o mérito da PEC das imunidades no plenário, remetendo-a para análise de uma comissão especial.
Em novembro de 2021, na votação da <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2293449">PEC 23/2021</a> (PEC dos Precatórios), Lira editou o Ato da Mesa 212/2021 para dispensar o registro biométrico dos parlamentares que estivessem em missão autorizada pela Câmara. Na prática, ao autorizar a votação remota por deputados que estivessem fora do país, ele aumentou o quórum, facilitando a aprovação da PEC entre o primeiro e segundo turno de votação.
As manobras de Lira diminuem a clareza sobre o regramento aplicável ao processo legislativo e comprometem a previsibilidade do funcionamento da Câmara. Lira também cria precedentes perigosos que podem ser utilizados com quaisquer fins por maiorias partidárias no futuro.
Por fim, a banalização do desrespeito aos ritos é danosa porque enfraquece o arcabouço institucional brasileiro e corrói a própria democracia. É urgente, portanto, resgatar o respeito pelo Regimento Interno e pelos ritos legislativos que ordenam a Câmara dos Deputados.

Votação de propostas. Presidente da Câmara, Arthur Lira (PP – AL)

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Manobras comprometem a previsibilidade do funcionamento da Câmara dos Deputados

Como Arthur Lira atropela o processo legislativo

Manobras de Arthur Lira diminuem a clareza do regramento aplicável ao processo legislativo e comprometem previsibilidade da Câmara