Og Fernandes

Em matéria de campanhas políticas e não sendo exatamente um jovem, repito a última frase do épico l-Juca Pirama, de Gonçalves Dias: "Meninos, eu vi". Oque não vi, ouvi, seja nas estradas nem sempre asfaltadas que percorri na judicatura seja no lento escoar do tempo.
Na semana em que se comemora 87 anos do Tribunal Superior Eleitoral e do voto feminino, escrevo sobre o comício no cenário de um Brasil que migrava do campo para a cidade. Tempos cantados por Luiz Gonzaga e contados, principalmente, por Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder, e Victor Nunes Leal, em Coronelismo, Enxada e Voto.
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<blockquote class="jota-article__eye">A televisão mal chegara ao país na década de 1950. Internet, a mãe do 
palanque eletrônico através das mídias sociais dos nossos dias? Nem pensar.</blockquote>
A conexão pioneira ocorreu às 22h30 do dia 29 de outubro de 1969, entre as Universidades da Califórnia e o Instituto de Pesquisa de Stanford. As lutas políticas mais sofisticadas aconteciam nos jornais, rádios, cinemas ou em discos de propaganda que tocavam nas vitrolas das classes média e rica.
Quem é desse tempo, há de se lembrar do jingle, ainda disponível no Youtube, gravado pelo sambista carioca Jorge Veiga, num disco de vinil de 78 rotações por minuto, incentivando o eleitor a "jangar". Trocando em miúdos, o marqueteiro da época inventou um verbo para pedir votos em favor de João Goulart, o Jango, candidato a vice-presidente da República, numa coligação de partidos com Juscelino Kubitschek, em 1955. Jango teve votação superior a JK (3.591.409 x 3.077.411).
Desconfio que a causa não estava naquela propaganda entoada por Jorge Veiga, um mulato de bigodes bem aparados que adorava brilhantina no cabelo, mas que ficou conhecido por cantar o soçaite nas gafieiras do Rio de Janeiro, além de uma música de gosto duvidoso chamada "Bigorrilho". Em compensação, o slogan de Juscelino – Peixe Vivo – continua na memória popular, em especial entre os mineiros.
<blockquote class="jota-article__eye">Campanha, campanha mesmo para o povão acontecia nos comícios de rua, nos palanques de madeira instalados nas praças dos bairros ou no centro da cidade.</blockquote>
A liturgia do comício, em regra, começava pela manhã. Um caminhão descarregava os insumos: madeiras, estacas, lâmpadas, bandeirolas, cartazes, caixas de fogos, um precário sistema de som e fios que eram estendidos em torno da praça, ligados por um "gato" na rede elétrica para a reprodução da voz nos alto-falantes.
Tudo deveria estar pronto no início da tarde. Enquanto isso, um carro de som circulava nos arredores e tratava de convidar os moradores das redondezas para o grande evento da noite, azucrinando os ouvidos mais sensíveis.
<blockquote class="jota-article__eye">Se o comício fosse no centro da cidade, programava-se o início dos discursos para o pôr do sol, atraindo o distinto público que saía do trabalho.</blockquote>
Nos bairros, o falatório começava mais tarde, ocupando o horário depois do jantar, num tempo em que somente havia novelas no rádio. Para ambas situações, a função começava com um locutor contratado pelos candidatos tentando empolgar a massa. Às vezes, o speaker praticava crime hediondo contra o vernáculo, mas se fosse um radialista famoso, o sucesso do palanque estava garantido: era uma oportunidade para a população humilde ver os ídolos do rádio em carne e osso
O comício aquecia com os discursos dos candidatos menos ilustres. No entorno do palanque, no meio da poeira das ruas sem calçamento daquela época, distribuíam-se as “chapinhas” com os ouvintes, papéis recortados com foto, número e mensagens dos postulantes às eleições. Os candidatos pagavam a pessoas do local para esse serviço (Pensando bem, não seria uma captação ilícita de sufrágio?).
Tudo deveria se encaminhar para uma epifania, no instante do discurso final, seguramente um candidato a deputado, senador, prefeito, governador ou, quem sabe, até a presidente da República. A depender dos redutos eleitorais, o candidato chegava a realizar até três comícios por noite. Quanto mais falatório em palanques distintos, mais esperança de ser eleito. Comícios à moda antiga traduziam investimentos numa poupança de votos, computados no final de cada semana.
Era, porém, no interior desse vasto país do século passado que a mobilização para os comícios sofria temperamentos, para usar uma expressão diferente de censura. Sob o efeito do caciquismo político, a liderança do município que permitisse a influência de adversários ou perdesse as eleições estava destinada a uma concordata, quase falência, moral. Calar-se diante da promessa de humilhação? Como diria Machado de Assis, "nunca dos nuncas", custe o que 
custar.
Transcrevo uma frase do Ministro Victor Nunes Leal, do STF, que exibe o 
cenário sócio-político comandado pelos proprietários rurais, naquelas lonjuras do Brasil: "A força eleitoral empresta-lhe prestígio político, natural coroamento de sua privilegiada situação econômica e social de dono de terra. Dentro da sua esfera própria de influência, o "coronel" como que resume em sua pessoa, sem substituí-las, importantes instituições sociais".
Nas minhas andanças pelo Judiciário, conheci chefes políticos interioranos de mentalidade moderna, verdadeiros empreendedores no meio rural do Nordeste, capazes de serem tolerantes com a liberdade e o pensamento dos que enxergam o mundo de outra maneira. Noutros casos, parece que tinham como lema a frase espirituosa de Millôr Fernandes: "Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim".
<blockquote class="jota-article__eye">Essa é uma história de um comício à moda antiga e trata de um palanque que poderia ter acontecido com personagens incomuns para os costumes da cidade.</blockquote>
Com a redemocratização do país, em decorrência da vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial, o Partido Comunista Brasileiro saiu da ilegalidade. Vários integrantes daquela facção foram eleitos deputados federais para a Constituinte de 1946, entre eles, o pernambucano Gregório Bezerra, que liderou a Intentona Comunista de 1935 em Pernambuco, foi preso, mas anistiado pelos novos ares democráticos.
Gregório Lourenço Bezerra, natural do município de Panelas, no agreste do Estado, foi sargento do Exército de poucas letras e muita atuação política, o que o levou a uma vida de clandestinidade e sucessivas prisões, com rápidos intervalos em liberdade. Atuava politicamente no Recife, na região metropolitana e na zona da mata, uma terra marcada pela agricultura da cana-de-açúcar, a gerar conflitos entre usineiro e camponês.
Naqueles anos de novas legendas partidárias, as cidades marcadamente açucareiras eram dominadas por chefes políticos do PSD, exceto uma delas, território da UDN, partido com pretensões aristocráticas. Ali, o comando político não permitia a influência do PSD, do PTB, partido de Getúlio Vargas, muito menos do PCB. Gregório Bezerra não teria vez e votos.
<blockquote class="jota-article__eye">Tido como valente e disposto ao enfrentamento, o líder comunista resolveu afrontar a elite daquele município udenista e agendou um comício na praça central da cidade.</blockquote>
O que seria inaceitável no regime do Estado Novo, já superado, tornou-se um desafio para os líderes locais, em tempos de abertura: Gregório Bezerra, não! Democracia assim seria exagerada.
Naqueles novos tempos, contudo, impossível descumprir as regras do regime democrático. Havia juiz eleitoral pronto para fazer prevalecer a lei. O comício não infringia as normas e foi marcado. Houve alvoroço no campo. As chamadas lideranças camponesas erigiram, felizes, o palanque no lugar indicado. Oposicionistas ao governo municipal convocaram os correligionários de toda zona da mata sul pernambucana.
Mas havia um quê de estranho na cidade, no dia do comício. Objetivamente, nada indicava empecilho para aquela festa política, mas se percebia algo no inconsciente dos expectadores e políticos, um clima de desconfiança, de que o encontro poderia não dar certo. Violência? Não. A polícia segurança ao evento. Então, o que haveria de errado? Silêncio. Ninguém sabia.
<blockquote class="jota-article__eye">Dito e feito. Na hora marcada, quando tudo parecia se encaminhar para a quebra do tabu político, inesperadamente o centro da cidade é tomado por uma boiada que avança serelepe para a praça central.</blockquote>
A cena, segundo a história oral que me foi transmitida, mais parecia a Guernica de Picasso. Barulho de gente e de bois em disparada, crianças se perdendo dos pais, palanque destruído, pequenos comerciantes com mercadorias destroçadas, casas invadidas, desespero.
Comício não houve. Gregório e seus camaradas desatrelaram do lugar. O município continuava uma cidadela invencível para o partido vermelho. O político comunista viveria até 1983, tempo suficiente para ver o PCB entrar novamente na proscrição, sofrer novas prisões, ser exilado e retornar ao país nas asas da anistia. Matuto doutrinado por Moscou, pôde, quem sabe, compreender que o homem é o lobo do próprio homem; que a garça saracoteia na água suja sem tisnar os pés; mas fazer comício diante de uma manada de bois, impossível.

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JOTA

Tido como valente, o líder comunista resolveu afrontar a elite do município udenista e agendou um comício na praça central da cidade

Comícios à moda antiga – uma crônica

Tido como valente, o líder comunista resolveu afrontar a elite do município udenista e agendou um comício na praça central da cidade