Eduardo Salomão Neto

Considerações gerais
Levy &amp; Salomão Advogados recebeu convite para assinar coluna periódica no portal JOTA. Site novo, com propostas interessantes, jornalistas de brilho. A melhor maneira de comemorar é tratando de algo também novo no Brasil, a responsabilização criminal de membros da alta direção empresarial, que até há pouco não acontecia.
Os exemplos factuais não precisam ser ressaltados, pulam dos jornais diariamente. Faz lembrar um periódico famoso de algumas décadas atrás, especializado em crimes de sangue ocorridos nas periferias da cidade que se agigantava: dele se dizia que se espremido, sairia sangue. Pois bem, dos jornais de hoje pode-se dizer que se forem torcidos, de cabeça para baixo, cairiam documentos falsos.
Vamos ao tema. Muitos dos crimes praticados dentro de empresas têm a característica típica de exigirem a colaboração de várias pessoas. Exemplos são a lavagem de dinheiro em instituições financeiras ou empresas privadas, e outros crimes financeiros, assim como a corrupção ativa do artigo 333 do Código Penal: “Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício”.
Tomaremos a corrupção como matriz de exemplos nessa exposição por causa de notícias recentes da mídia brasileira. Lembrando que, de acordo com o Código Penal, ela é perseguida extraterritorialmente pela Justiça brasileira quando afeta o patrimônio da União, Estados, Municípios e Distrito Federal.
A intenção é abordar como se distribui a responsabilidade por condutas desse tipo na organização empresarial.
O crime organizativo e os atos neutros
Certos atos não deveriam ser, e não são, considerados criminosos, ainda que praticados com a intenção de que se realize conduta definida como crime.
O crime organizativo, de que é exemplo a corrupção ativa, é aquele praticado dentro de uma estrutura em que são presentes relações interpessoais complexas, hierarquizadas, e que não pode prescindir dessa complexidade, na maior parte dos casos, para configuração do tipo. O fato criminoso nesse tipo de delito normalmente terá sido praticado por mais de uma pessoa, o que pode induzir coautoria ou participação. Em ambos os casos, há interferência de mais de uma pessoa com a conduta penal.
Podem também estar presentes simples atos neutros não puníveis de alguns agentes. Trata-se de atos aceitos como não integrantes da cadeia de causalidade do delito, ficticiamente, embora de fato o sejam. Isso devido a seu caráter corriqueiro e em si mesmo desprovido de risco social. Seriam exemplos na vida empresarial a secretária que marca reunião onde será combinado o crime, o funcionário do setor de pagamentos que prepara o cheque, o mensageiro que o transporta, etc. Tomemos como exemplo alguém que, querendo livrar-se de cônjuge, estimula-o a viajar de automóvel com frequência, na esperança de que sofra acidente fatal. Se tal acidente ocorrer, estará presente a intenção de matar (dolo) e mesmo a causalidade, posto que sem o estímulo as viagens não teriam ocorrido. Falta, entretanto, o requisito de risco não permitido, pois é evidente que permitir ou estimular viagens de automóvel não constitui a incorrência de risco vedado pelo Direito. A exclusão de responsabilidade em relação a esses atos, vistos como causadores de pequeno ou nenhum risco jurídico em si mesmos, tem origem na doutrina alemã chamada imputação objetiva. Outro critério para determinar o ato neutro é a raridade da contribuição dada: quanto mais rara e menos facilmente encontrar sucedâneo, mais perto ficará a conduta de ser criminosa.
No Código Penal, o ato neutro é reconhecido no artigo 23, que considera não haver crime quando a conduta é praticada no exercício regular de um direito.
A doutrina do ato neutro aproveita principalmente a defesa de graus hierárquicos mais baixos, e não se presta à defesa da esfera de comando da empresa.
Responsabilidade paralela ou para o lado
Se a interferência de uma ou mais pessoas for hierarquicamente paralela, ou horizontal, indagação sobre seu grau de responsabilidade dependerá de análise factual sobre suas ações concretas, intenções, grau de envolvimento etc. Isso no caso de existir ação concreta para cometer o crime. Já no caso de omissão em agir, mais relevante se torna quem tinha efetivas atribuições estatutárias. De acordo com o artigo 13, § 2º do Código Penal, a omissão só ganha relevância em relação a quem tinha o dever de agir, ou presentes outras circunstâncias similares. Para os demais, omitir-se pode ser eticamente errado, mas não será crime.
Reponsabilidade vertical
Entretanto, questões juridicamente mais complexas se apresentam em caso de não existir atuação paralela, mas supostamente vertical, por meio de relações hierarquizadas de subordinação. Cumpre aqui analisar a responsabilidade do subordinado em virtude de ordens recebidas e a responsabilidade do superior em relação a ordens dadas, esta última nosso tópico central.
Responsabilidade vertical do subordinado
Não há dúvida de que subordinado que executa, ainda que por determinação de seu superior, ordem que implique crime, será penalmente responsável.
Mas três importantes exceções a isso se interpõem. As duas últimas têm o condão de substituir mecanismos em voga como a delação premiada, por meio de defesa efetiva.
A primeira já tratamos acima e é pertinente à exceção da imputação objetiva e exercício regular de direito para fins penais. Mesmo que haja enquadramento no tipo e dolo, não haverá crime em caso de a atividade do funcionário não causar risco relevante e vedado pelo Direito.
Além desses casos, devem ser analisadas duas circunstâncias subjetivas ao pretenso autor do crime que podem influenciar a própria formação da vontade, de forma a excluir o crime.
A análise deve se iniciar pelo artigo 22 do Código Penal: “Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem.”
Tal dispositivo permite a conclusão de que ordens hierárquicas, desde que não haja manifesta ilegalidade nelas, podem servir como elemento exculpatório. Exemplo seria ordem dada a funcionário de empresa para movimentação de conta a ser usada para pagamentos ilícitos. Ainda que presente a noção pelo subordinado de que os pagamentos ajudam ou podem ajudar a práticas de corrupção, não há ilegalidade manifesta. Abrir ou movimentar conta bancária é parte da atividade de uma empresa, e a ilicitude depende sempre de um ato externo à conduta, o delito de corrupção, de que o subordinado não terá participado, embora eventualmente saiba ou suspeite que esta é a destinação dos recursos.
Resultado que, aliás, atende a imperativos de justiça e conveniência criminal, pois a possibilidade de defesa do subordinado imputando a conduta a seu superior estimula a identificação da origem da prática criminosa dentro da organização. E isso através de transparente mecanismo de defesa, sem o efeito juridicamente desagregador de técnicas que parecem premiar criminosos, como a delação premiada.
O mesmo efeito poderia ser obtido por uma causa supralegal de exclusão de culpabilidade admitida por nossos tribunais, a inexigibilidade de conduta diversa. Esta é uma forma mitigada de estado de necessidade previsto no artigo 23, inciso I do Código Penal, que, ao invés de excluir o crime eliminando a antijuridicidade da própria conduta, exclui a punição dele pela própria situação em que se encontrava o réu, apta a impedir que tivesse ele arbítrio totalmente livre em relação a praticar ou não o delito. Fala-se em estado de necessidade quando a ação do agente do crime é voltada a afastar perigo não provocado por ele, e inevitável, e desde que pelo crime se sacrifique bem jurídico de hierarquia inferior ao bem jurídico favorecido pelo crime. Já a inexigibilidade de conduta diversa existe em circunstâncias análogas, com a diferença de que o bem jurídico sacrificado neste caso é de valor igual ou superior àquele que o crime prejudica.
A inexigibilidade de conduta diversa poderia ser aplicada a executivo que, para preservar seu emprego, cumpre ordem para a prática de crimes de corrupção. Caso em que sacrifica o bem maior, a boa administração pública, em benefício de bem menor, seu emprego. Para tanto, seria necessária a prova de que o sacrifício seria inexigível por muito oneroso, em vista de circunstâncias como doenças familiares, dependentes sem ocupação ativa e outros do gênero. Desde que provada a existência e origem da ordem, com punição do superior responsável.
Responsabilidade do superior hierárquico
Inversa ao problema do item anterior é a questão de saber em que medida responde o superior hierárquico por conduta comprovadamente criminosa do subordinado.
No julgamento do chamado mensalão (Ação Penal 470) prevaleceu tese de que o superior hierárquico é sempre responsável, quando controla a organização, ao que se dá o nome de domínio do fato (Tatherrschaft). Essa teoria, desenvolvida na Alemanha na década de 60, destinava-se simplesmente a discriminar entre autores de crimes de guerra ou políticos (por exemplo, o fuzilamento de fugitivos de Berlim Oriental), que poderiam receber pena de morte, e meros partícipes. Nunca dispensou a intenção de delinquir, a que chamamos de dolo. Sua aplicação de forma a eliminar a necessidade de prova do dolo no julgamento do mensalão foi um erro.
Aliás, erros judiciários sempre acompanharam a aplicação dessa doutrina, como no caso da Suprema Corte americana “In Re Yamashita” (1946). Nele, um general japonês foi condenado à morte por crimes supostamente praticados durante a Segunda Guerra Mundial, na defesa das Filipinas. O general Yamashita, com o desembarque aliado, havia se retirado para as montanhas, onde continuou a resistência até a rendição japonesa. Foi acusado de crimes que as tropas que havia deixado para trás haviam praticado na defesa de Manila, embora comprovadamente não tivesse com elas tido qualquer comunicação. Defendido por seis oficiais americanos perante a comissão militar a que submetido, foi executado sem prova de culpa. Dois juízes liberais da Suprema Corte, Murphy e Rutledge, foram contra a maioria. Vale a pena ler as sensatas palavras do primeiro: “apresentou-se a acusação genérica de que muitas atrocidades tinham sido cometidas e que o Requerente era o oficial comandante; em decorrência ele deveria ter faltado com seus deveres. Em períodos como o presente, em que emoções estão compreensivelmente exaltadas é difícil adotar atitude imparcial em casos como esse. E, entretanto é precisamente nesses momentos que essa atitude é mais essencial. Ainda que outros povos possam não compartilhar nossa crença no devido processo legal e na dignidade humana, não podemos dar rédea livre a nossas emoções desprezando os direitos de outros. Vivemos sob o império da Constituição, que corporifica as elevadas esperanças e aspirações do novo mundo. E ela se aplica tanto na guerra como na paz. De fato, um espírito de vingança fora de controle, mascarado de legalidade formal ao se lidar com um comandante inimigo vencido, pode causar dano mais permanente do que as atrocidades que motivaram a vingança. A confiança da sociedade na justiça e objetividade do Direito pode ser seriamente abalada. A fogueira do nacionalismo pode ser avivada ainda mais. E os corações humanos podem se tornar amargos e cheios de ódio, deixando de lado o ideal nobre de a ninguém se fazer o mal, e de se praticar a caridade com todos. Essas são as razões que me levam a dissentir da maioria.”
A falta de equilíbrio denunciada pelo juiz Murphy pode ser ocorrido também por aqui, estimulada pela revolta e sentimento de impotência com a corrupção. Felizmente, no entanto, tem prevalecido a regra de que, para haver responsabilidade penal, devem encontrar-se a existência de conduta imputável ao autor, e o dolo do autor qualificando tal conduta.
Em relação ao primeiro ponto, como regra a conduta punível é aquela ativa, um fazer. Dependeria a inculpação do superior de efetiva intervenção no processo criminoso. Isso poderia acontecer mediante participação direta nos atos materiais, juntamente com o subordinado, como no caso em que o superior e seu subordinado abrem conta em banco, para pagamento de valores ligados a corrupção, operando o subordinado as providências burocráticas, e o superior dirigindo os pagamentos e convencendo a instituição financeira depositária da lisura da conta.
Mais frequentemente, a intervenção do superior se limitará a ordem dada ao subordinado, caso em que se aplicam as considerações do item anterior sobre exoneração do subordinado de responsabilidade, com transferência ao chefe. Isso encontra importante exceção. Mesmo quando não age o superior hierárquico pode ser responsabilizado, desde que presentes os requisitos do artigo 13, § 2o, do Código Penal:
“A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:
<ol>
<li>a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;</li>
<li>b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;</li>
<li>c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.”</li>
</ol>
A responsabilidade penal, como projeção de princípios constitucionais e legais, no entanto, depende sempre da prova de dolo próprio. Na falta dela, não pode haver responsabilidade penal do superior hierárquico, como simples consequência direta da conduta do subordinado.
A partir desses princípios simples emerge a dificuldade de determinar em que medida a cegueira proposital deveria ser punida. Caso do superior que evita saber de transações suspeitas, seja adotando conduta passiva seja expressamente instruindo os subordinados a que de nada o informem. Em todos esses casos, há o dolo eventual do artigo 18, inciso I do Código Penal, pela assunção do risco de produção do resultado. A ignorância deve ser produto espontâneo do intelecto, sendo que a iniciativa de provocá-la evitando o conhecimento deve ser equiparada ao próprio conhecimento.
Princípio a ser interpretado com cuidado. Há importante diferença entre a disposição específica de evitar o conhecimento para se livrar de responsabilidade penal e a efetiva negligência resultado do descuido ou incompetência. No último caso, não há crime, pois os crimes empresariais exigem dolo e não admitem modalidade culposa. A questão é de fato, e seguindo princípio clássico, a dúvida deve ser interpretada em favor do réu.
Tome-se como exemplo dessas regras empresa cujo estatuto ou regulamento interno atribua ao diretor financeiro a supervisão do processo de cadastro para abertura de contas, enquanto que na prática tal função acabou sendo exercida pelo diretor administrativo. Ambos os diretores sabiam da existência de crimes de corrupção praticados com uso da conta e se omitiram. A responsabilidade penal tocará ao diretor administrativo apenas, por exercer ele efetivamente a função.
Não muda essa conclusão o acima mencionado artigo 13, § 2o, do Código Penal, dispondo que a omissão torna-se penalmente relevante, isto é, equipara-se à ação, tanto quando o superior tenha por lei obrigação de proteção, cuidado e vigilância, como também quando de qualquer outra forma assumiu a obrigação de impedir o resultado ou por seu comportamento anterior criou o risco de ocorrência do resultado. No primeiro caso, há efetiva designação jurídica de responsabilidade decorrente de função, tipicamente nos atos constitutivos e/ou regulamentos internos. Já o segundo caso cobre o exercício tácito de uma função, com acatamento dentro da organização, ainda que não formalizado. Isso poderia à primeira vista levar à conclusão de que também o diretor juridicamente encarregado da supervisão, mas sem atuação efetiva, seria responsável. O que seria conclusão incorreta. No caso dele, há falta de disposição de praticar através da omissão o tipo penal, por não ser factualmente responsável. Não está assim presente o dolo que integra o tipo. Exceção existiria apenas se o executivo juridicamente encarregado de área que pudesse prevenir a corrupção se omitisse conscientemente, de forma a deixar que pessoa menos preparada ou indisposta a agir assumisse o encargo, e falhasse. 
Conclusão
A prática do Direito tem tratado de maneira severa a alta direção de empresas brasileiras, por crimes cometidos dentro da organização. Às vezes com razão, quando pune a cegueira intencional e fabricada. Outras sem, ao aplicar curiosidades doutrinárias como a teoria do domínio do fato, sem exigir intenção criminosa dos líderes da organização.
Pouco importa. Como se defender disso? Dirigentes empresariais, brasileiros, e também estrangeiros, muitas vezes encontram segurança na linguagem da responsabilidade social corporativa e na adoção de programas de integridades uniformes, acreditando nas vantagens de não se destacar da multidão.
Mas esse não é o caminho. A lei tem exigências próprias e elas são mais de conteúdo do que de forma, punindo também a inação, ainda que cercada de formalidades.
A intenção de agir corretamente deve ser ressaltada por políticas de integridade adequadas, mas não pode prescindir de verdadeira disposição de evitar práticas antiéticas.
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 Este texto se baseia em palestra proferida por Eduardo Salomão Neto em 20 de Agosto de 2015 no Simpósio Jurídico Brasil Japão, realizado em São Paulo.

Businessmen in prison.

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Responsabilidade criminal da alta direção empresarial

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