Alamiro Velludo Salvador Netto

Uma das características mais marcantes do sistema prisional brasileiro ao longo dos últimos anos, e para além das sabidas precariedades estruturais das unidades espalhadas por todo o território nacional, é o aumento massivo no número de pessoas encarceradas que pode ser observado. De acordo com os dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN) recentemente divulgados, o País atingiu, em dezembro de 2014, o número total de 622.202 pessoas presas, algo bastante expressivo se comparado aos dados relativos ao ano 2000, os quais apontavam para 232.755 pessoas com a liberdade cerceada. Chama ainda muito atenção o percentual de presos cautelares, sem condenação definitiva, os quais atualmente atingem o patamar em torno de 40%.
De todo modo, um ponto principal merece aqui ser destacado: se o aumento da população prisional masculina se mostra, por si só, já demasiado, o espanto maior refere-se àquela feminina. Neste período compreendido entre os anos de 2000 e 2014, se o encarceramento masculino se elevou em 220%, o feminino, ao seu turno, apontou cifras de 567%. Atualmente, as mulheres presas correspondem a 8% da totalidade, podendo-se dizer que a porcentagem de mães presas gira na faixa de 70% a 80%.
De acordo com dados levantados pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), das 37.380 mulheres encarceradas, 9.565 estão sujeitas a ambientes superlotados. A grande maioria está detida por crimes sem violência ou grave ameaça, principalmente o denominado tráfico doméstico de drogas. Vale ainda citar o caso de 342 mães com filhos menores de 6 anos de idade, 188 mães lactantes, 350 gestantes, 88 mulheres com algum grau de deficiência intelectual, auditiva, visual, física, múltipla ou cadeirante, 148 mulheres idosas, 1.204 com doenças transmissíveis, sendo 565 com HIV, 422 com sífilis, 58 com tuberculose, 82 com hepatite e 77 com outros tipos de doenças graves.
Soma-se a isso o diagnóstico acerca do abandono das mulheres encarceradas pela própria família e companheiros, além da distância especial das unidades prisionais em face do local de origem ou residência, acarretando substancial quadro de aplicação de penas cruéis e degradantes. Estas peculiares condições a envolver as mulheres foram, a propósito, objeto específico de preocupação das Nações Unidas, a merecer menção a Resolução 58/183, bem como as chamadas Regras de Bangkok, aprovadas pela Assembleia Geral da ONU em 2010 e responsável por traçar diretrizes para o tratamento das mulheres presas e de medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras.
Neste contexto, a presidência do CNPCP recebeu no mês de fevereiro de 2016 documento elaborado pelo Grupo de Estudos e Trabalho “Mulheres Encarceradas”, o qual foi conjuntamente subscrito por outras 214 entidades, congregando diversos e importantíssimos segmentos da sociedade civil brasileira. Postulam as entidades, embasadas em dados estatísticos e coerentes observações, a edição de decreto específico de indulto e comutação de penas para as mulheres.
No âmbito do CNPCP foi designada a imediata criação de Comissão Especial para a análise da proposta, composta pelos Conselheiros Gerivaldo Neiva (Presidente), Hugo Leonardo (Relator), Otavio Augusto de Almeida Toledo (Revisor), Leonardo da Costa Bandeira e José Roberto das Neves. Encerrados os trabalhos, a Comissão apresentou substancioso relatório e minuta para um específico decreto de indulto e comutação, aprovados unanimemente pelo Colegiado do CNPCP na reunião realizada em Brasília entre os dias 28 e 29 de março de 2016.
A minuta já encaminhada e recepcionada pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL/MJ), onde recebeu ainda oportunos aprimoramentos, contemplou diversas peculiaridades compatíveis com o gênero feminino. Dispõe de clausulas específicas para gestantes, mãos presas, avós presas, presas portadoras de doenças sexualmente transmissíveis, dentre outras.
O destaque maior, entretanto, diz respeito à possibilidade de concessão de indulto para presas condenadas por tráfico de drogas, desde que observados, evidentemente, alguns requisitos. É notório o encarceramento massivo produzido no Brasil pela Lei nº 11.343/2006, a qual, no caso das mulheres, acaba por submeter ao cárcere pessoas acusadas de tráficos domésticos, rudimentares ou simplesmente destinados à sobrevivência econômico-familiar.
Mais ainda, a minuta do Decreto se fez acompanhar de dois paradigmáticos pareceres de importantes acadêmicos que prontamente se manifestaram pela inconstitucionalidade da disposição da Lei dos Crimes Hediondos responsável pela vedação do indulto para toda e qualquer hipótese de tráfico. Na medida em que a Constituição Federal veda apenas a graça e a anistia nestas hipóteses, a lei ordinária não poderia ampliar o rol de vedação ao indulto, haja vista ser este último uma prerrogativa também constitucionalmente atribuída à Presidência da República. De acordo com Alberto Silva Franco, o indulto nestas hipóteses mostra-se plenamente constitucional, levando em consideração “situações concretas merecedoras de indulto, como, por exemplo, no caso das mulheres encarceradas nos termos do art. 33 da Lei 11.343/2006”.
Ao seu turno, Renato de Mello Jorge Silveira, Professor Titular de Direito Penal da USP, e após exaustiva análise dogmática dos institutos da graça, anistia e indulto, igualmente conclui que “a Lei nº 8.072/1990, portanto, jamais poderia limitar a concessão de indulto que, além de não se confundir com o instituto da graça, é devidamente permitido e autorizado pela própria Constituição. Nesse sentido, fica clara a absoluta impropriedade do art. 2º, I, da Lei nº 8.072/1990, bem como sua inconstitucionalidade”. Em suma, “a lei inferior não pode limitar o que a Lei Maior permite”.
Espera-se, agora, a sensibilidade da Presidência da República para com a proposta, sobejamente amparada pela sociedade civil e academicamente respaldada. A edição de um Decreto de Indulto e Comutação específico para as mulheres em comemoração ao “Dia das Mães” não é apenas um anseio de justiça, mas, principalmente, uma questão humanitária.

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JOTA

Entre os anos de 2000 e 2014, se o encarceramento masculino se elevou em 220%, o feminino apontou cifras de 567%

Indulto para mulheres: uma questão humanitária

Entre os anos de 2000 e 2014, se o encarceramento masculino se elevou em 220%, o feminino apontou cifras de 567%