Renato de Mello Jorge Silveira

Existem várias contradições na modernidade. A oposição das facilidades e das dificuldades advindas da internet é um bom exemplo desse estado de coisas. Interessante, pois, aqui, de se propor a leitura de uma facilidade e de outra dificuldade.
Primeiramente, seria de se falar de uma das facilidades trazidas pela modernidade. Inegavelmente o mundo virtual que acompanha a internet em muito facilitou a vida do profissional do Direito. Os operadores jurídicos, de modo geral, hoje têm facilidades inegáveis, recursos infindáveis, e o vasto mundo condensado em telas de computadores. Nesse contexto, parece obrigatória a menção de espaços como o JOTA – Notícias jurídicas que fazem diferença – os quais, cuidadosamente, direcionam as notícias e propiciam debates a grupos específicos – no caso o jurídico – de maneira absolutamente primorosa. Não era outra coisa a se esperar, aliás, de jornalistas da envergadura e brilho de Laura Diniz, Barbara Pombo, Felipe Recondo, Felipe Seligman, Iuri Dantas e Fernando Mello.
Procurando abrir campos de discussão, essa reunião de alguns dos mais destacados jornalistas do ramo, deu início ao ousado projeto que hoje se mostra aperfeiçoado neste sítio eletrônico. Entendendo, paralelamente, que deve haver também uma interação da Academia, da dogmática abstrata, com a prática, foi aberto o espaço para que professores das mais diversas áreas da mais que centenária Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo pudessem colaborar com temas postos à discussão.
A proposta inicial, portanto, é que os docentes também venham a debater com os demais operadores do Direito para apresentar suas posições. Iniciando esse labor, é de se ter em conta que no campo penal, onde a publicação de determinadas questões nem sempre espelha a mais correta das verdades, isso parece fundamental. E foi justamente uma dessas aparentes anomalias que agora é destacada.
De fato, um bom exemplo disso pode ser visto e encontrado, recentemente, na recente divulgação, por alguns meios, da denegação da liminar no HC 131.861/PR, em sede do Supremo Tribunal Federal, ocorrido em dezembro último. Alguns órgãos de imprensa noticiaram que o Supremo estaria, então, a negar o entendimento dado pela Lei nº 12.971/2014, segundo a qual, eventuais acidentes de trânsito que resultassem morte e em que se verificasse que o motorista havia ingerido substancia alcóolica, deveriam ser considerados crime culposo, à teor do que agora se vê no art. 302, § 2º, do Código de Trânsito Brasileiro. Verifique-se, pois, que a ideia passada seria de que a noção combatida era a da lei, e nenhuma outra.
A notícia – vista como a transmissão de uma ideia entre emissor e receptor – parece falha, pois não foi essa, à inteireza, a informação emitida pelo Supremo Tribunal. É bem verdade que a decisão do Ministro Gilmar Mendes (que unicamente indeferiu a liminar pleiteada) asseverou que, ao menos aparentemente, a modificação legislativa não teve o alcance apontado. Disse, pois, que o critério de distinção entre os tipos penais do homicídio (art. 121 do CP) e do homicídio de trânsito (art. 302 do CTB), pareceria seguir sendo o dolo e a culpa. Não teria havido, portanto, modificação das figuras básicas desses tipos penais que indique em direção contrária. Pelo contrário. A mesma Lei 12.971/14 introduziu no Código de Trânsito Brasileiro qualificadoras ao crime do art. 308 – racha. Afirmou, então, que de acordo com as novas figuras, o agente que, ao tomar parte no racha, e causa lesão corporal de natureza grave ou morte, responde pelo crime em modalidade qualificada, desde que o resultado tenha sido causado apenas culposamente. A lei deixa claro que as figuras qualificadas são aplicáveis apenas se “as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo” (§§1º e 2º). Logo, se o agente assumiu o risco de causar o resultado (lesão corporal grave ou morte), por eles responde na forma dos tipos penais autônimos do Código Penal.
Além disso, derradeiramente ponderou que o agravamento de pena promovido pela modificação legislativa é modesto. O total da pena privativa de liberdade para o tipo qualificado seguiria idêntico ao tipo base – 2 a 4 anos. É certo que, na figura qualificada, a detenção foi substituída por reclusão. Isso pode ser levado em conta pelo aplicador, especialmente para agravar o regime inicial de cumprimento de da pena ou afastar sua substituição por penas restritivas de direito. Ainda assim, nem sequer se pode afirmar que o tratamento mais grave trará um apenamento mais rigoroso na maioria dos casos. Dessa forma – pontofinalizou – a leitura da lei não aponta para a supressão ou redução do espaço de aplicação do dolo eventual a crimes praticados na direção de veículos automotores.
Entretanto, é de se perguntar: isso implica dizer que o Supremo Tribunal Federal nega vigência ao art. 302, § 2º, do Código de Trânsito Brasileiro? Por óbvio que não. A menção feita pelo Relator, ainda que lateral, em primeiro lugar não foi a razão fundamental da negativa da liminar, que se deu por aparente infringência à Súmula 691, e apenas isso. Em segundo lugar, não se nega, como se pode imaginar em primeiro plano, que a distinção entre o homicídio do Código Penal e do Código de Trânsito se dê em sede do elemento subjetivo. Apenas se verifica, à inteireza, que a consideração objetiva em relação à ingestão de substância alcóolica não mais pode ser utilizada para a configuração da criação de risco, como proposto pelo art. 18, I, segunda parte, do Código Penal.
É de se notar, entretanto, que a grande contribuição colocada pela Lei nº 12.971/2014, foi estabelecer, normativa e objetivamente, que descabe a consideração, assumida desde alguns anos por parte de setores do Ministério Público e da Magistratura, de que, seletivamente, em alguns casos, homicídios promovidos por motoristas embriagados deveriam ser considerados como dolosos, pois neles haveria a criação de um risco em ingerir substância alcóolica e, ao depois, dirigir. Essa dúvida, bastante fortificada pela aparente construção volitiva no dolo no Brasil, pretendeu ser superada pela nova legislação. E, é de se convir que o foi, para o bem ou para o mal.
Verifique-se que esta não fez, de modo algum, tábua rasa da distinção subjetiva entre o art. 121, do Código Penal, e o art. 302, do Código de Trânsito Brasileiro. Apenas assegurou que a ingestão objetiva de bebida não tem a capacidade de aperfeiçoar o ideário subjetivo da criação de um risco desaprovado. Em tese, a construção é correta, até mesmo porque outras considerações podem servir para asseverar situação de dolo, aperfeiçoando o que boa parte da construção dogmática atual entende por prova do dolo.
O inusitado da questão é que a transmissão inicial da ideia, feita por alguma sorte de meios de comunicação, parece ser a de que a decisão do Ministro Gilmar Mendes se deu, basilarmente, contra a ideia defendida na presente leitura do art. 302, §2º, do Código de Trânsito. Não o foi. Essa noção somente é colocada lateralmente. O que parece ser imprescindível, aqui, e em um momento em que os precedentes parecem assumir tanta importância, é que se saiba exatamente o que e sobre o que está a se debater.
Apenas a título de recordação, é de se frisar e de se ter em conta que o novo diploma apenas procurou sanar uma dúvida que causava mais insegurança jurídica do que qualquer outra coisa. Recorde-se, ainda, que a missão do Direito Penal, por outro lado, não é vingativa ou repressiva, mas, sim, preventiva. E crime de homicídio se mantém, quer na realidade penal quer no da legislação de trânsito. Impunidade, portanto, não existe. O que existe, sim, é uma adequada medida sancionatória variável para situações desiguais. Apenas isso. Felizmente em um cordial sistema de freios e contra-pesos, os perigos eventuais de certas divulgações noticiosas podem ser compensados na mesma velocidade.

céu

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JOTA

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