Nicolao Dino

Encontra-se em pauta, para iminente julgamento pelo Pleno do STF, a ADI n. 5508, Rel. Min. Marco Aurélio. Acende-se um sinal de alerta em relação à aplicação e à efetividade de um dos mais importantes e atuais instrumentos de investigação voltados à macrocriminalidade. Trata-se de examinar, à luz da Constituição, se delegados de Polícia têm competência, ou não, para realizar acordos de colaboração premiada. A ação proposta pela Procuradoria Geral da República aponta corretamente a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei n. 12.850, de 2013, que atribuem também a delegados de Polícia iniciativa para tais acordos.
Também pendente de julgamento no STF a ADI n. 5567, Rel. Min. Alexandre de Moraes, de autoria do Partido Social Liberal, arguindo a inconstitucionalidade do art. 4°, § 14, do mesmo diploma legal, ao fundamento de que tal dispositivo violaria o direito fundamental à não incriminação e ao silêncio, considerado irrenunciável.
Alguns pretendem desqualificar o debate em torno dos rumos da colaboração premiada, sob o argumento de que seria mera disputa de espaços de poder entre instituições. Não é assim.
A questão é mais profunda, refletindo na segurança jurídica e na proteção da confiança legítima que os cidadãos devem depositar no Estado. Explico.
Como traços característicos de nosso sistema acusatório, a persecução penal cabe ao Ministério Público, titular exclusivo da ação penal. À polícia criminal compete basicamente a tarefa de investigar crimes, num estágio pré-processual. Os elementos de prova inicialmente coletados pela Polícia se destinam à formação do convencimento do Ministério Público, órgão que, presentando o Estado, pode realizar diligências, propor a ação penal ou, ainda, promover o arquivamento das peças de investigação, se não houver justa causa para iniciar um processo-crime.
O modelo processual brasileiro, calcado no princípio acusatório, pressupõe a existência de partes (acusação e defesa) atuando em Juízo. E – não custa lembrar – é o órgão do Judiciário que dá a resposta estatal definitiva quanto à configuração do crime, aplicando a correlata sanção, observados o contraditório (tese e antítese) e a ampla defesa. Essa é, em síntese, a regra do jogo destinado ao exercício da persecução penal e da jurisdição.
O instituto da colaboração premiada, meio de obtenção de prova para detecção ou aprofundamento de fatos e personagens numa rede criminosa, constitui uma relação de troca, um acordo no bojo da moderna Justiça consensual ou negociada. Assim, o investigado/réu colaborador obtém imunidade – parcial ou total, a depender do caso – ofertando ao Estado, em contrapartida, elementos destinados ao deslinde de atividades delituosas, e sem os quais, em muitas situações, não seria possível avançar nas investigações. Trata-se de um verdadeiro negócio jurídico entre partes, submetido a homologação do Judiciário, a quem compete o exercício do controle de legalidade, nunca de mérito. O juiz, tal como prevê a lei, não participa das negociações realizadas entre as partes, exatamente para preservar sua imparcialidade e sua equidistância em relação ao fato, atributos essenciais para o julgamento da causa, em momento posterior.
A eficiência que a colaboração premiada demonstra– como revelam inúmeras investigações em curso – tem despertado inúmeras reações contrárias ao instituto: ora buscam desqualificá-lo como “chantagem” ou violação ao “direito fundamental ao silêncio”, ora atribuem ao Ministério Público a prática de abusos em sua utilização. É preciso convir, para além da necessidade de permanente aprimoramento no emprego desse moderno instrumento, e, também, de quaisquer más intenções subjacentes a determinadas críticas lançadas, que estamos lidando com algo novo em nossa realidade. É necessário, pois, nesta incipiente democracia, assegurar tempo para aperfeiçoamento e sedimentação no manejo da ferramenta. Tumultuar a mecânica do funcionamento nada contribui para a consolidação dessa moderna e importante técnica de investigação.
Garantir ao investigado o silêncio quanto a fatos dos quais ele é protagonista debilita a força da colaboração premiada, ao mesmo tempo em que se ignora a plena possibilidade de renunciar ao exercício do direito ao silêncio, em troca de um benefício (medida premial) decorrente da colaboração. Isso é da essência da bilateralidade da negociação. A ADI n. 5567, sob essa perspectiva, parece não merecer êxito.
Em relação ao tema posto na ADI n. 5508, partilho da ideia de que a previsão de um terceiro personagem – o delegado de Polícia –, que não detém capacidade processual, na celebração de acordos de colaboração premiada gerará mais problemas que soluções. Sim, porque, não sendo o destinatário final dos elementos de prova que coleta, o delegado de Polícia não pode realizar juízo de valor jurídico-penal determinante sobre fatos ou provas no bojo de uma investigação, já que, como dito, no sistema acusatório, essa avaliação cabe, numa primeira etapa, ao Ministério Público e, em caráter final, ao Judiciário.
Ora, sendo vedada essa tarefa à autoridade policial, como outorgar a ela o poder de “negociar” imunidades e, quiçá, a concessão de perdão judicial?! Nesse ponto reside o risco de insegurança jurídica, pois, se não cabe ao delegado de Polícia a persecução penal em juízo, também não pode caber a tal agente público a capacidade de dispor, total ou parcialmente, de algo que não lhe incumbe, por força de expressa disposição constitucional.
Como reforço argumentativo, vale lembrar que o sistema processual brasileiro já convive, desde 1995, com outros instrumentos de justiça criminal consensual e negociada, como a transação penal, reduzindo os “espaços de conflito” em crimes de pequeno potencial ofensivo. Nesses casos, a proposta de transação cabe apenas ao Ministério Público, na sua condição de titular da ação penal, exatamente em razão de seus reflexos para o processo judicial.
Em conclusão, o acordo de colaboração premiada produz efeitos em relação a um processo judicial, somente podendo ser deflagrado por quem nele atua, em nome do Estado. A Polícia, sem embargo de suas relevantes funções no campo investigatório, não pode comprometer-se diretamente, perante um potencial colaborador, com a outorga de algo que, ao fim e ao cabo, não se insere no rol de suas competências constitucionais. Dito de outra forma, não pode prometer aquilo que não pode entregar. Caso contrário, produzir-se-á insegurança jurídica, comprometendo-se a confiança legítima do cidadão investigado sobre o resultado de sua eventual colaboração.
É fundamental buscar a máxima efetividade do instituto da colaboração premiada, aperfeiçoando permanentemente seu emprego. Sua implementação nos países engajados no combate à delinquência organizada deriva de expressa recomendação contida em atos internacionais, tais como a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo) e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida), dos quais, aliás, o Brasil é signatário. O momento histórico não é para improvisos, nem para cultivo de mais jabuticabas em nosso sistema processual.

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JOTA

Delegado de Polícia não pode realizar juízo de valor jurídico-penal determinante sobre fatos ou provas no bojo da investigação

Colaboração premiada em pauta

Delegado de Polícia não pode realizar juízo de valor jurídico-penal determinante sobre fatos ou provas no bojo da investigação