Marina Vezu Macedo de Oliveira

O deputado federal Hélio Lopes e outros colegas parlamentares propuseram o Projeto de Lei nº 4.626 de 2020, que objetiva aumentar as penas dos crimes de abandono de incapaz e de maus-tratos, previstos no Código Penal, e do crime de exposição da saúde e da integridade física ou psíquica do idoso a perigo, previsto no Estatuto do Idoso.
Os autores justificam tais alterações na irrisoriedade das penas hoje aplicadas a esses crimes que, segundo eles, estimulam a impunidade. Ademais, acreditam que o agravamento das penas poderá inibir a prática de delitos como esses, conforme consta no quarto parágrafo do relatório do projeto<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. 
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>O cenário dos crimes que estão na mira do mencionado projeto, não raras vezes, é o ambiente doméstico e familiar. É tanto que, no relatório do Projeto de Lei, os deputados trouxeram dados assustadores, que demonstram aumento significativo desse tipo de delito no momento de pandemia<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, já que pessoas da mesma família têm passado mais tempo juntas em seus lares.
As alterações basicamente consistem em: aumentar a pena do crime de abandono de incapaz (art. 133, caput, do Código Penal), que hoje é detenção de seis meses a três anos, para reclusão, de dois a cinco anos; nos casos em que o abandono de incapaz resulta em lesão corporal de natureza grave (art. 133, § 1º, do Código Penal), ou seja, em que se apresenta na forma qualificada, a proposta é aumentar a pena de reclusão, de um a cinco anos, para reclusão, de três a sete anos. E no caso em que resulta morte (art. 133, § 2º, do Código Penal), também forma qualificada do crime, aumentaria a pena que hoje é de reclusão, de quatro a doze anos, para reclusão, de oito a quatorze anos.
Para o crime de maus-tratos (art. 136, caput, do Código Penal), a proposta é aumentar a pena de detenção de dois meses a um ano, ou multa, para reclusão, de dois a cinco anos. Se do fato resultar lesão corporal de natureza grave (art. 136, § 1º, do Código Penal), sugere-se o aumento da pena de reclusão que hoje é de um a quatro anos, para reclusão de três a sete anos. Se resultar a morte (art. 136, § 2º, do Código Penal) a pena seria aumentada de reclusão de quatro a doze anos, para reclusão, de oito a quatorze anos. Os dois últimos resultados trazem as figuras qualificadas do crime de maus-tratos.
Por fim, para o crime previsto no Estatuto do Idoso, crime de exposição a perigo da integridade e da saúde, física ou psíquica, do idoso (art. 99, caput, da Lei nº 10.741, de 2003), a proposta é aumentar a pena de detenção, de dois meses a um ano, e multa, para reclusão, de dois a cinco anos. Para as figuras qualificadas, se do fato resultar lesão corporal de natureza grave (art. 99, § 1º), o projeto de lei quer aumentar a pena de reclusão, de um a quatro anos, para reclusão, de três a sete anos e, se resultar a morte (art. 99, § 2º), de reclusão, de quatro a doze anos, para reclusão, de oito a quatorze anos.
Em 2020, outra alteração legislativa <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L14064.htm#art2" target="_blank" rel="noopener noreferrer">(Lei nº 14.064, de 2020)</a> acrescentou novo parágrafo ao artigo 32 da Lei 9.605/1998 -que trata das sanções penais e administrativas aplicadas a condutas e atividades lesivas ao meio ambiente- aumentando a pena do crime de maus-tratos praticados contra cães e gatos que antes era de detenção, de três meses a um ano, e multa, para reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda do animal.
As penas que antes eram semelhantes, hoje chamam a atenção da sociedade por serem desproporcionais. Isso porque a pena prevista para o crime de maus-tratos (e delitos semelhantes) praticados contra pessoas (crianças, adolescentes, adultos ou idosos) é hoje, consideravelmente, mais baixa do que aquela prevista para o crime de maus-tratos praticado contra cães e gatos.
Inúmeras discussões têm sido travadas sobre a discrepância entre essas penas. Em setembro de 2020, inclusive, pouco antes de sancionar a lei que aumentou a pena de maus-tratos contra os animais, o presidente Jair Bolsonaro levantou a questão numa de suas “lives” na internet, mencionando que faria uma enquete na rede social sobre a alteração.
Tanto o Projeto de Lei nº 4.626 de 2020, quanto a Lei nº 14.064 de 2020, não surgiram em vão, tampouco foram produto de um estudo técnico e sistemático de revisão das leis penais, eles brotaram do clamor social. A Lei nº 14.064 de 2020, conhecida como Lei Sansão, foi uma resposta à sociedade, depois do caso em que um pitbull teve as suas patas traseiras decepadas por um homem em Confins/MG; o nome da Lei foi uma homenagem ao cachorro.
O Projeto de Lei que ora analisamos, por sua vez, surge como a resposta da resposta. Explico: após o aumento das penas para o crime de maus-tratos contra cães e gatos (resposta legislativa ao clamor social, diante do crime contra o pitbull que viralizou em todas as mídias), surgiram comparações e questionamentos, agora, acerca da discrepância entre estas e aquelas penas previstas para crimes semelhantes, porém praticados contra humanos. Foi então que o Projeto nº 4.626 de 2020 surgiu como resposta a esses novos questionamentos.
A vida animal vale mais do que a vida humana? É justo que o agente que pratica maus-tratos contra animais tenha pena maior do que a pessoa que pratica maus-tratos contra outra pessoa, contra uma criança, contra um idoso?
De fato, os bens jurídicos protegidos (vida humana e vida animal) e as respectivas penas são desproporcionais. Isso ocorre porque as mudanças na lei penal não têm ocorrido de maneira técnica, uniforme e sistematizada, de forma que o legislador considere o ordenamento jurídico como um todo e, a partir daí, altere e reformule o que for necessário.
<blockquote class="jota-article__eye">O que temos visto é o que chamamos em direito de “Direito Penal Simbólico”, a criação de leis na efervescência de fatos ocorridos na sociedade e do clamor público, jogando para a torcida o poder de decidir o quantum de pena e de vingança o acusado por um crime midiático merece.</blockquote>
O nosso Código Penal é de 1940, com diversas alterações posteriores; a Lei dos Crimes Praticados contra o Meio Ambiente é de 1998; o Estatuto do Idoso é de 2003 e as alterações de que ora tratamos são dos últimos anos: 2020 e 2021. São inúmeras leis, inúmeros artigos de lei, alíneas, incisos e detalhes que precisam ser considerados na sua inteireza antes de qualquer alteração legislativa. É óbvio que legislações de épocas tão diferentes necessitem, hoje, de reforma, revisão e alteração e é obvio também que elas precisam conversar entre si e considerar umas às outras, sob pena de permanente incoerência no ordenamento jurídico penal.
O Código Penal e a Legislação Penal Especial possuem uma lógica de ser que deve ser observada sempre que houver inovação legislativa. Há uma razão para cada pena ali prevista e, é no momento de cominação de penas que o legislador, de acordo com critérios políticos e técnico jurídicos, deverá valorar, junto à assessoria jurídica, os bens que estão sendo objeto de proteção pelo Direito Penal. É nessa fase que será individualizada a pena de cada infração penal, levando em conta a sua relevância, o bem jurídico protegido, o grau de lesividade e nocividade social.
Os princípios constitucionais penais são de suma importância para limitar e nortear a atuação do legislador nesse momento, seja na alteração de tipos penais já existentes, seja na criação de novos tipos. O legislador deverá observar o princípio da ultima ratio (que ensina que o Direito Penal será a última esfera jurídica de controle social) do qual decorrem os princípios da fragmentariedade e da subsidiariedade, também o princípio da proporcionalidade da pena e, sobretudo o da legalidade, na formulação dos tipos penais incriminadores e das penas a serem aplicadas. Trata-se das garantias fundamentais trazidas pela Constituição Federal.
É com esse espírito que as práticas forense e legislativa devem ser efetivadas. Para Ferrajoli, “o garantismo jurídico opera como doutrina jurídica de legitimação e, sobretudo, de perda da legitimação interna do direito penal, que requer dos juízes e dos juristas uma constante tensão critica sobre as leis vigentes (...)”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.O garantismo penal é, nesse sentido, um instrumento de aferição da validade da intervenção estatal nos casos concretos.
Somente após ter percorrido todo esse caminho técnico-legislativo a alteração será legítima. Do contrário, alterações legislativas feitas pontualmente, a partir de crimes cruéis que repercutem na mídia, como forma de atender ao clamor social por vingança e endurecimento da Lei Penal, transformarão o nosso ordenamento numa colcha de retalhos incoerente, feridora de garantias constitucionais e desproporcional, como vemos agora.
O Direito Penal tem como missão precípua proteger os bens jurídicos e não oferecer penas cada vez maiores aos crimes cometidos, de maneira indistinta e na intenção de dar à sociedade a resposta que ela espera. É ilusão pensar que o aumento de pena desestimula a prática de crimes. Se assim fosse, a nossa sociedade veria, com o passar dos anos, significativa queda nos índices de criminalidade e sabemos que não é o que ocorre. Os crimes seguem numa crescente disparada e são cada vez mais cruéis.
<blockquote class="jota-article__eye">Os resultados práticos dessas alterações legislativas urgentes que consideram fatos isolados e enquetes em redes sociais, com pano de fundo aparentemente eleitoreiro, só podem ser drásticos.</blockquote>
O que ocorre é a falsa sensação de solução do problema e a ilusão de que os crimes serão inibidos após o aumento das penas. Com isso, a sociedade fica contente e os representantes não assumem qualquer compromisso com a efetividade e a real solução para a criminalidade. Além disso, o ordenamento jurídico segue sendo um Frankenstein, muitas vezes com penas desproporcionais e incoerentes.
Redigem as leis, aumentam as penas e batem as mãos com ar de dever cumprido. Enquanto isso, as intervenções estatais são mínimas: pouco se vê em ações sociais e políticas públicas que têm efetiva intenção de minorar a quantidade absurda de crimes, sejam por meio de programas nas escolas com educação primária contra a violência (de todo tipo), sejam com a criação de mais casas de acolhimento para vítimas, ou mediante a realização contínua de operações especiais de combate à violência, campanhas pontuais contra a prática de crimes e educação de qualidade, dentre outras medidas ativas que visem o controle social.
Não ignoro o fato de o Direito Penal ser o ramo do direito mais próximo à sociedade, o que o torna midiático e imediatista. Também não nego a necessidade de serem alteradas as penas previstas pelo Projeto de Lei nº 4.626 de 2020, para conferir coerência ao ordenamento jurídico penal. Ocorre que se deixarmos o estudo jurídico penal e a boa técnica legislativa se esvair, dando lugar ao clamor social, teremos uma infinita atuação legislativa com resultados baseados em sentimentos primitivos de vingança, incoerentes, atécnicos e ineficazes.
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<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a>https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1992930&amp;filename=PPP+1+CIDOSO+%3D%3E+PL+4626/2020
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. Trad. Luis Flávio Gomes et alii. São Paulo: RT, 2002. p. 786-787).

direito penal

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JOTA

Uma análise sobre o Projeto de Lei nº 4.626 de 2020

A real necessidade de alteração das penas do Código Penal e do Estatuto do Idoso

Uma análise sobre Projeto de Lei nº 4.626 de 2020